Entre heróis, soldados e escravos: reflexões sobre as expedições de 1519 na América e no Oriente

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Nos últimos meses, dois eventos completaram 500 anos e motivaram uma série de publicações a respeito do encontro entre diferentes culturas, o processo de expansão europeia no período das Grandes Navegações e, até mesmo, sobre o inacreditável debate acerca da Terra plana[1].

Em 8 de novembro de 1519, após meses de ataques a grupos nativos, invasões de cidades e templos, alianças com elites locais e disputas com outros espanhóis, Hernán Cortés entrou na capital asteca de México-Tenochtitlán, onde se encontrou com Montezuma.

A efeméride motivou os mais diversos produtos. Desde eventos[2] e obras acadêmicas, como o livro de Matthew Restall[3], a especiais de televisão, séries[4] e até mesmo o encontro pessoal entre descendentes de Cortés e Montezuma como parte de um documentário dirigido por Miguel Gleason[5].

No México, a chegada dos espanhóis à região no século XVI já vinha sendo alvo de intensos debates, especialmente após o pedido de perdão pela violência relacionada à conquista enviado pelo presidente Andrés Manuel López Obrador à Coroa espanhola e ao Vaticano abordado em texto anterior[6].

Alguns meses antes, em 10 de agosto de 1519, a expedição liderada por Fernão de Magalhães, português a serviço dos espanhóis, partia de Sevilha em busca das cobiçadas especiarias orientais através de uma rota a Oeste, seguindo a lógica anteriormente explorada por Cristóvão Colombo até desembarcar inadvertidamente no continente americano.

Em ambos os casos, com raras e louváveis exceções, as comemorações, textos e postagens em redes sociais concentraram suas atenções em uma leitura personalista e heroica dos eventos, dando continuidade a uma longa trajetória de interpretações que abordam complexos processos históricos a partir das ações de alguns poucos líderes.

Dentro dessa perspectiva, Cortés e Magalhães são retratados não como comandantes de expedições ligadas ao ainda embrionário Império Espanhol, mas, a depender do gosto do freguês, como símbolos da expansão do Ocidente e do cristianismo pelo mundo, da destruição de culturas nativas por uma força invasora ou pioneiros do que poderíamos denominar como Idade Moderna.

Essas leituras carregam, muitas vezes, uma forte carga de simplificação e anacronismo. Magalhães nunca pensou sua expedição como um projeto de circum-navegação. Seu objetivo era retornar à Espanha pelo Oceano Pacífico, contornando novamente a América no estreito ao sul que recebeu seu nome. A volta ao mundo acabou sendo resultado não de um projeto, mas da decisão tomada por uma tripulação doente, enfraquecida e que havia sofrido enormes baixas, incluindo a morte de seu líder. Continuar a viagem sempre a oeste significava viajar por uma rota mais rápida e que já havia sido mapeada por expedições portuguesas anteriores, como a de Vasco da Gama.

Em relação a Cortés, a centralização em torno de sua figura ignora não apenas o complexo cenário cultural da região no período, como também das forças lideradas por ele. Historiadores como Eduardo Natalino dos Santos vêm ressaltando a impossibilidade de se analisar os eventos ocorridos no período como um simples embate entre espanhóis e indígenas. As forças lideradas por Cortés eram multiculturais, com os espanhóis sendo uma parcela de talvez não mais do que 5% do total. Além disso, para muitos grupos nativos, como os tlaxcaltecas, a queda dos astecas concretizada em 1521 com a morte do último líder resistente, Cuauhtémoc, estava longe de significar uma derrota[7].

Outra tendência recorrente nas análises sobre ambos os eventos é a tentativa de nacionalizar acontecimentos ocorridos há 500 anos. Na Espanha, o pedido de perdão feito pelo presidente mexicano foi rebatido por lideranças conservadoras como um ataque ao país e sua contribuição histórica. Do outro lado do Atlântico, a destruição da capital asteca foi muitas vezes interpretada como o marco de nascimento da nação mexicana, reforçando uma identidade que destaca a mestiçagem como um de seus principais aspectos. Interpretação visível ainda hoje, por exemplo, na Praça das Três Culturas, localizada no centro histórico da Cidade do México, que contém uma célebre placa cuja inscrição afirma que os eventos liderados por Cortés não podem ser lidos como uma vitória nem uma derrota, mas como o doloroso nascimento do povo mestiço que forma o México atual.

Já no caso de Magalhães, o quinto centenário reascendeu o debate entre portugueses e espanhóis a respeito da expedição liderada por ele até ser emboscado e morto por nativos filipinos. Também nesse caso, a leitura nacionalista está presente. Lapu Lapu, o lendário líder nativo que teria comandado o ataque que resultou na morte de Magalhães, em 1521, continua sendo visto como um herói das Filipinas, símbolo da resistência contra forças invasoras presente ainda hoje em monumentos e nas insígnias das forças policiais do país.

Problematizar essas interpretações tradicionais e ainda recorrentes não se restringe a uma questão meramente acadêmica. Questionar a centralidade de Cortés e Magalhães ou o anacronismo que associa embates ocorridos em uma ilha do Pacífico e no Vale do México há cinco séculos com o surgimento de países centenas de anos depois permite alargar nossa visão sobre esses eventos e seus reflexos.

No caso americano, o destaque aos grupos nativos que participaram do conflito junto aos espanhóis não pode ser utilizado como argumento para minimizar a violência praticada pelos europeus, mas sim para reforçar a imagem dos indígenas como agentes e não apenas como vencidos. Aspecto esse fundamental para repensarmos o lugar ocupado pelos indígenas dentro das narrativas históricas e das identidades nacionais.

Ao buscarmos escapar da explicação simplista nativos vencidos x europeus vencedores, outras lógicas, questões e personagens ganham espaço. Como exemplo, mas longe de ser um caso único, podemos citar a trajetória de Juan Garrido, ex-escravo de origem africana que lutou ao lado de Cortés. Anos depois, Garrido enviou uma carta à Coroa espanhola solicitando reconhecimento por seus feitos, que segundo o próprio incluíam vitórias militares e a introdução do trigo em solo mexicano.

O mesmo pode ser dito em relação à expedição de Magalhães. Ampliar o olhar revela um cenário muito mais complexo, com contatos, trocas e conexões entre diferentes partes do mundo que escapam à visão tradicional sobre o período das navegações. A própria tripulação da expedição é um indicativo, sendo composta não apenas por espanhóis e portugueses, mas também por bascos, italianos, alemães, gregos, ingleses e franceses.

Antonio Pigafetta, integrante e autor de um dos principais relatos sobre a primeira viagem de circum-navegação, destaca a importância dos nativos para os rumos da expedição. Em especial, o cronista ressalta a atuação de Enrique, escravo pessoal de Magalhães de origem malaia que havia circulado por diferentes partes do Oriente, Europa e América. Impedido de obter a liberdade após o assassinato de seu senhor, Enrique teria conseguido se livrar dos europeus ao organizar uma revolta junto com líderes nativos locais que forçaram a expedição a partir às pressas.

Além de pessoas, Pigafetta também destaca a circulação de produtos, revelando conexões entre diferentes partes do mundo muito anteriores à chegada dos europeus. Na região de Bornéu, por exemplo, a expedição de Magalhães teve contato com moedas e porcelana de origem chinesa. A principal hipótese atual é a de que esses produtos teriam chegado a essa região do Pacífico mais de um século antes, através das expedições realizadas durante a dinastia Ming sob o comando do eunuco de origem muçulmana Zheng He.

Dessa forma, podemos observar um cenário muito mais complexo e multifacetado do que o apresentado nas tradicionais abordagens sobre a conquista e as navegações que as retratam como um processo inevitável e unilateral, resumido a uma expansão dos europeus pelos quatro cantos do mundo. Que trajetórias como as do africano Juan Garrido e do malaio Enrique estimulem, cinco séculos depois, interpretações que destaquem um mundo mais plural e conectado.

 

 

 


NOTAS

[1] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/09/ha-500-anos-comecava-viagem-que-provou-que-a-terra-e-redonda.shtml Acesso em: 06/02/2020.

[2] Entre outros, podemos citar a jornada “1519: o quinto centenário da circum-navegação da Terra e da Conquista do México: conexões, diálogos e trajetória”, realizada na Universidade Federal de Ouro Preto (21/10/2019), em que uma primeira versão das reflexões presentes nesse texto foram apresentadas.

[3] RESTALL, Matthew. When Montezuma met Cortés: the true story of the meeting that changed History. Nova York: Harper Collins, 2018.

[4] Hernán, Amazon Prime Video, 2019.

[5] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/09/cultura/1573267197_977811.html Acesso em: 06/02/2020.

[6] https://hhmagazine.com.br/a-conquista-do-mexico-entre-o-passado-e-o-presente-as-repercussoes-em-torno-do-pedido-de-perdao-pelos-conflitos-de-500-anos-atras/ Acesso em: 06/02/2020.

[7] SANTOS, Eduardo Natalino dos. As conquistas de México-Tenochtitlan e da Nova Espanha. Guerras e alianças entre castelhanos, mexicas e tlaxcaltecas. História Unisinos, v. 18, n. 2, p. 218-232, 2014.

 

 

 


Créditos na imagem: Cortés y Moctezuma. El encuentro. Anónimo Siglo XIX. Oleo sobre tela. Museo Nacional de Historia.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Luis Guilherme Assis Kalil

Luis Guilherme Kalil é professor de História da América Colonial e América Independente na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Líder do grupo de pesquisa "História das Américas: fontes e historiografia" (UFOP/CNPq) e pesquisador associado aos grupos "LAméricas. Estudos e pesquisas em História da América Colonial" (UFMT/CNPq) e "LAMI. Laboratório de Mundos Ibéricos" (UFRRJ/CNPq). Possui experiência na área de ensino e pesquisa em História, com ênfase em História da América.

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