O tema do fim da história é comumente associado ao filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel, muito em função das interpretações que Alexandre Kojève fez da Fenomenologia do Espírito (1806). Em tempos mais recentes, o cientista político Francis Fukuyama, a partir da influência de Kojève, retomou o assunto para afirmar que após o colapso do socialismo real, a democracia liberal ocidental firmou-se como a “solução final” do governo humano, significando, nesse sentido, o “fim da história” da humanidade.
Tanto Kojève quanto Fukuyama acreditam que a dialética histórica chega a uma resolução final com o mundo moderno interpretado por Hegel, que seria o da autoconsciência absoluta, que emergiu a partir da Revolução Americana (1776) e Revolução Francesa (1789), chegando à sua síntese final com a batalha de Jena (1806), declarando não a vitória do liberalismo, mas que este seria o modelo a ser implementado progressivamente no mundo, a última forma de organização social das sociedades humanas.
Para outros hegelianos como Slavoj Žižek e Terry Pinkard, Hegel não defende um fim da história, muito menos que ele se realize com a democracia liberal. Para estes, se há algum fim no sistema hegeliano ele é de natureza provisória, um balanço das experiências acumuladas visto de modo retrospectivo.
Na verdade, essa controvérsia sobre uma suposta teoria escatológica em Hegel não é nova. No século XIX, os chamados hegelianos de direita (ou velhos hegelianos) e hegelianos de esquerda (ou jovens hegelianos) já debatiam o assunto. Os primeiros apostavam que Hegel chegara ao capítulo final da filosofia, que à época era ainda de conciliá-la com a religião, além de justificar a plena conformidade do estado prussiano com os propósitos da razão, e a tarefa do presente seria apenas a realização de pequenos ajustes e reformas. Esta posição conciliatória rapidamente sofreria crítica dos hegelianos de esquerda, colocando em xeque uma suposta aporia na lógica hegeliana entre o sistema (atemporal) e a história (temporal), dando preferência à última, por quererem liberar os homens do “ópio” da religião e para afirmar a historicidade de forma irrestrita. Não obstante, entre os próprios jovens hegelianos iria aparecer um outro fim da história com Karl Marx, crente na ideia que as contradições do capitalismo (burguesia x proletariado) seriam superadas pela implementação do comunismo. Ou melhor, para Marx, o capitalismo seria o último capítulo da pré-história humana, e a história começaria, portanto, com a implementação da sociedade comunista.
Seja como for, foi Kojève que tornou mais ampla e sistematizada a discussão sobre o fim da história. Fugido da URSS em 1926, o filósofo russo se estabelece na França, e, num lance de sorte, substitui Alexandre Koyré na École Pratique des Hautes Études no ano de 1933. Sua ideia inicial era continuar o seminário do colega, cujo título era “A filosofia religiosa de Hegel”, mas, na realidade, foram comentários exaustivos sobre pontos que ele considerava mais marcantes dentro da Fenomenologia do Espírito (dialética do senhor e do escravo e saber absoluto). Foram nesses seminários (que podem ser consultados no livro Introdução à Leitura de Hegel) que Kojève passou a desenvolver a ideia do fim da história, um estudo acompanhado pelos mais ilustres intelectuais franceses à época (Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Georges Bataille, Frantz Fanon, Jacques Lacan, entre outros), o que contribui para tornar Hegel um autor mais popular entre o público acadêmico francês.
Em suas leituras da Fenomenologia do Espírito entre 1933 a 1939, teremos uma interpretação antropológica, combinada com a luta de classe de Marx, e com os temas de Martin Heidegger sobre a temporalidade e a finitude do ser aí (Dasein). Aqui a dialética do senhor e do escravo aparece como o motor da história, e a verdade se constituiria apenas com o fim da história após a supressão do tempo dentro da lógica do conceito absoluto (saber absoluto).
É preciso ressaltar que a conclusão de Kojève sobre o fim da história se difere consideravelmente da versão marxista. Para ele, esse fim não seria de uma sociedade absolutamente sem classes, mas onde as desigualdades fossem residuais, como identificou na Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial com a social-democracia (“Trinta Anos Gloriosos”): daí em diante não haveria mais grandes conflitos e o comunismo não passaria de um anacronismo. Guerras e revoluções sangrentas não seriam mais necessárias, substituídas pela satisfação econômica e pela falta de vontade das pessoas em arriscarem a vida, o que levaria a humanidade a uma espécie de retorno à sua animalidade dócil, como o cachorro contente em dormir todo dia, sem se preocupar se o outro cachorro é melhor que ele etc.
Mas uma viagem ao Japão em 1959 parece ter mudado de forma substancial a opinião de Kojève sobre o fim da história. Por lá, encontrou algo bastante peculiar: uma sociedade a quase três séculos em condição pós-histórica por não ter registrado nesse período guerras civis ou guerras externas. Ele se impressionou com os japoneses nobres que, sem mais guerras para travarem, se inclinaram para o esnobismo. Teria sido este estado de esnobismo a criar um outro tipo de ação negadora, superando em muito aquelas lutas sangrentas e históricas. Tal situação, independente de desigualdades econômicas e sociais, teria levado a sociedade japonesa para um estado de funções altamente formalizados, sem qualquer conteúdo humano no sentido histórico, como do suicídio gratuito. Não haveria qualquer conteúdo de luta social e política, nenhum projeto de arriscar a vida em função de valores históricos. O temor de Kojève é que isso se espalhasse para o mundo pós-histórico ocidental, reativando o humano num sentido ruim do termo.
Além disso, mesmo Kojève tendo tornado Hegel mais popular na França, a maioria dos ouvintes dos seminários não endossavam a tese do fim da história. Enquanto o filósofo russo acreditava na democracia liberal como ponto final de desenvolvimento ideológico da humanidade, as promessas burguesas, desenvolvidas sobretudo com o Iluminismo, pareciam ruir com a ascensão de regimes totalitários e suas práticas irracionais e genocidas. Tanto à esquerda (com o comunismo) quanto à direita (com o fascismo), havia uma forte inclinação à crítica sistemática da democracia liberal.
Somente com o fim da Guerra Fria e com o colapso da União Soviética, que o tema do fim da história reaparecia nas discussões intelectuais. Neste contexto é publicado em 1989 o artigo polêmico de Fukuyama, The End of History? (O fim da história?) na revista The National Interest. Fazendo uma leitura de Hegel via Kojève sobre a teoria do reconhecimento e sua crença na coerência evolutiva das ciências naturais, Fukuyama defendeu que o desgaste do sistema alternativo (socialismo real) era a prova final sobre a vitória da democracia liberal e, portanto, teríamos chegado ao fim da história, não dos acontecimentos, mas do ponto de vista ideológico. Nem mesmo as novas ameaças ao mundo ocidental, como o fundamentalismo islâmico, seriam capazes de rivalizar com a hegemonia da democracia liberal pelo mundo.
Contestado à esquerda e à direita, em 1992, Fukuyama amplia sua tese do fim da história com a publicação de The End of History and the last Man (O fim da história e o último homem). Uma das questões levantadas nesta obra é que deveríamos voltar a Hegel, via Kojève, transcendendo a perspectiva materialista da história por uma luta por reconhecimento que contemplasse diversos problemas como a honra, o prestígio e o sentimento de superioridade.
Em termos históricos, Fukuyama considera que a estrutura de dominação da dialética do senhor e do escravo explica o surgimento de sociedades aristocráticas, baseadas justamente no ethos guerreiro. Tal estrutura teria sido diluída no mundo moderno somente com as revoluções burguesas dos EUA (1776) e da França (1789), abolindo, ao menos no plano formal, a desigualdade entre senhores e escravos. Seria a Revolução Francesa que implementa no aqui e no agora a ideia de liberdade do cristianismo, onde o escravo supera o medo da morte, arriscando sua vida, que depois se espalhou pelo mundo com o exército de Napoleão.
Por isso Fukuyama defende que Hegel nos oferece um liberalismo distinto da tradição anglo-saxã e dos seguidores da constituição americana, para quem o liberalismo significa certos direitos naturais, autopreservação e que no fim é o direito da propriedade privada. Para o filósofo alemão, é o reconhecimento mútuo entre cidadãos racionais, da dignidade de cada um, que não se reduz a ganhar dinheiro ou da parte da alma por desejo, refletida na constituição moderna (democracia liberal). Hegel nunca foi um defensor cego do estado, reforça Fukuyama, mas da sociedade civil (que desejava a preservação da propriedade privada e da atividade política independente do controle do estado), e isso lhe inspira ver na democracia liberal a realização concreta do reconhecimento recíproco, tanto nos anseios materiais quanto imateriais dos homens.
Seguindo a lógica de Fukuyama, a abolição da dialética do senhor e do escravo significa uma espécie de síntese dos dois, preservando o reconhecimento do senhor e o trabalho do escravo. No entanto, o mesmo admite que existem formas que contrastam com o reconhecimento racional, como o nacionalismo, mantendo em outro nível a dialética senhor/escravo. Uma nação se torna o senhor e a outra o escravo, enquanto num estado realmente liberal, todos são reconhecidos como homens (universal) e não por algo como a nacionalidade, etnia ou raça. “O estado universal e homogêneo que aparece no final da história pode, portanto, ser visto como repousando nos pilares gêmeos da economia e do reconhecimento” (FUKUYAMA, 1992, p. 204), desencadeado pelas ciências naturais e pela luta por reconhecimento.
Não é de se estranhar, portanto, que à luz de eventos como a queda do muro de Berlim (1989) e da dissolução da URSS (1991), Fukuyama tenha identificado finalmente o “fim da história”. Era o triunfo da sociedade democrática liberal, ou seja, da sacralização da democracia representativa e do livre mercado. Com o colapso do “socialismo real”, a sociedade liberal não teria mais um inimigo capaz de lhe fazer frente e, portanto, o único desafio restante seria o de aperfeiçoá-la. Estava se estabelecendo, de acordo com o autor, uma sociedade em condição pós-histórica.
Por outro lado, Fukuyama tinha consciência que tal processo não teria um alcance global imediato. Para fazer parte de um mundo pós-histórico seria necessário para qualquer país se desenvolver industrial e economicamente, além, é claro, de estar num regime político liberal. Assim teríamos a seguinte divisão do mundo: o mundo pós-histórico seria aquele que as nações são pacíficas entre si, praticantes do liberalismo econômico e político e de um nacionalismo expresso mais na vida privada; já o mundo histórico seria aquele ainda preso em conflitos (religioso, ideológico, nacional) com velhas formas de poder político, como no Iraque e na Líbia; haveria também movimentos de transição do mundo histórico para o pós-histórico, como a URSS e a China, mesmo não sendo democráticos, a economia destes países mostrava-se mais burguesa, forçando seus líderes se abrirem ainda mais à economia internacional.
Apesar de Fukuyama ter resistido às críticas e defender ainda a democracia liberal como um modelo ideal de organização política e econômica, nas últimas décadas ele também tem revisado sua tese sobre o fim da história. No final do século XX, por exemplo, lhe preocupava que os avanços do neoliberalismo e do consequente aumento da concentração de renda pudesse colocar em risco a qualidade de vida das pessoas do mundo pós-histórico. Mais preocupante que isso, seriam as novas descobertas e avanços científicos, que estaria colando em xeque não apenas a tese do fim da história, mas a própria filosofia hegeliana, já que a liberdade humana estaria sendo ameaçada principalmente pela biotecnologia, cujo potencial ameaça abolir a ideia mesma de humanidade. Ou seja, embora ainda hoje o nome de Fukuyama seja o mais importante sobre as discussões sobre o fim da história, ele mesmo não tem mais tanta certeza se isso ainda é plausível de ser defendido.
REFERÊNCIAS
FUKUYAMA, Francis. “A Reply to My Critics”. The National Interest no. 18 (Winter): 21-28, 1989.
__________________. Francis Fukuyama: “A democracia liberal precisa de reformas” [03/05/2012]. São Paulo: Revista Época. Entrevista concedida a Rodrigo Turrer.
__________________. Nosso futuro pós-humano: consequências da revolução da biotecnologia. Tradução de Maria Luisa X. de A. Borges. – Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
__________________. Reflections on the End of History, Five Years On. In World History: Ideologies,Structures, and Identities, edited by Philip Pomper, Richard Elphick, and Richard T Vann. Malden, Mass: Blackwell Publishers, 1998.
_________________. The End of History – 20 Years Later. Interview by Nathan Gardels, October 31, 2009. Disponível em <http://www.huffingtonpost.com/nathan-gardels/the-end-of-history—- 20_b_341078.html> . Acesso em 11 out. 2012.
________________. “The End of History?” The National Interest (Summer 1989): 3-18.
________________. The End of History and The Last Man. New York: Avon. Books, 1993.
KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2002
LÖWITH, Karl. De Hegel a Nietzsche: La quiebra revolucionaria del pensamento el siglo XIX. Buenos Aires, Katz, 2008.
PINKARD, Terry P. Saber absoluto: por que a filosofia é seu próprio tempo apreendido no pensamento. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, Ano 7, no13, Dezembro – 2010: 07-23.
SINNERBRINK, Robert .Understanding Hegelianism. Chesham: Acumen Press, 2007.
ŽIZEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. Tradução Rogério Bettoni, Editora Boitempo, 2013.
Créditos na imagem: Reprodução: O liberalismo em seus limites, BOITEMPO, 2020.
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Renato Paes Rodrigues
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