Os “tempos modernos” e suas respectivas formas políticas são resultado de novos valores, necessidades materiais e, acima de tudo, uma nova weltanschauung (visão de mundo) fundada a partir, ou tendo como marco, a revolução francesa. As feridas causadas pela industrialização (o labor fabril, o êxodo rural), a crescente interconectividade global, e a secularização, ao menos no Ocidente, tiveram como remédio as três ideologias clássicas: liberalismo, conservadorismo e socialismo. Interessante notar como essas três grandes narrativas oferecem distintas interpretações do mesmo objeto, a contemporaneidade, logo, formando léxicos, apontando problemas, delineando soluções e oferecendo sonhos específicos a cada uma delas. Por exemplo, ao definir seu protagonista, socialistas evocaram “a comunidade”, liberais emanciparam o “indivíduo” e conservadores defenderam “a família” (WALLERSTEIN, 1995).
Entretanto, para este ensaio, pouco importam as diferenças. Interessa-nos pensar suas semelhanças no tocante à modernidade, refletir sobre o que se confunde na prática cotidiana de qualquer uma dessas três ideologias e suas mutações. Algumas das características são de mais direta visualização. O entendimento da história como um processo contínuo de evolução (teleologia), por exemplo, fica claramente expresso nas utopias que ocupam os imaginários políticos – o comunismo, o livre-mercado. Sobre estes, é curioso como almejam um futuro sem Estado, justamente uma das tecnologias mais celebres da modernidade e, sem a qual, não é possível pensar o presente. (FOUCAULT, 2012; WALLERSTEIN, 1995).
Se o Estado, uma abstração, passa a ser o detentor da soberania, como o poder se distribui, é exercido? Os modernos Estados-nação foram formados a partir da inversão da máxima de Clausewitz, a política é a persistência da guerra, ou seja, o poder estatal é formado a partir de constantes enfrentamentos dispersos desde o âmago da sociedade até seus limites. O que há de novo nessa inversão é perceber que a partir da transição do poder soberano (o rei e seu feudo) para o poder disciplinar (o Estado e o indivíduo), logo, do controle da morte para o controle da vida, a soberania se dissipou em meio às dezenas de instituições que formam o Estado, o aparato burocrático-jurídico (FOUCAULT, 2012).
Segundo as necessidades que se desenvolvem na era moderna, o soberano, Estado-nação, não mais tem como principal interesse a terra. Seus objetos centrais de controle, desenvolvimento e proteção passam a ser as populações, sua força de trabalho e saúde. Nesse sentido, mais uma vez é convocada a “ciência” e, com ela, desenvolvidas técnicas e métodos para gestão desses corpos, a estatística, o bilhete de identidade, o patrão, a carga horária, etc. Esse conjunto de tecnologias pode ser definido como práticas biopolíticas, o exercício do poder sobre a vida, tendo em vista a maximização de sua força de trabalho, longevidade e produtividade. Além disso, esse biopoder provocou a medicalização da vida e a transição de conceitos médicos para a análise social, em paralelo, possibilitando a validação do discurso racista segundo conceitos científicos, no que ficou conhecido como eugenia. Essa teoria das raças buscou classificar os indivíduos segundo padrões biológicos e características físicas, tendo como tipo ideal o europeu branco. A construção da eugenia como um “saber científico” serviu como justificativa para dominação europeia dos povos subalternos, substituindo ou atualizando, segundo padrões modernos, o discurso racista anteriormente embasado na religião – o índio sem alma, o africano descendente de Caim. Como veremos adiante, a partir de um efeito bumerangue, práticas como a eugenia ou o campo de concentração, inicialmente experimentados nas colônias, serão transportados de volta ao interior da Europa e usados em suas populações (FOUCAULT, 2012; GRAHAM, 2013).
Desde Hobbes e o conceito do contrato social como proteção do homem perante o estado de natureza, o povo – forma unificante de representar o coletivo de pessoas – prevaleceu perante a multidão. O primeiro é uno, singular, assim como suas vontades e desejos; já o segundo, passa a ideia de “confusão”, interesses desconexos e objetivos diversos. O Estado lida com o povo, a multidão é vista como caos, corpo estranho, e, por isso, deve ser assimilada por meio de um processo de normalização ou eliminada em defesa da sociedade. Com isso, caminhamos para duas características que serão analisadas a partir da experiência do Estado nazista – pensando o nazismo como a modernidade levada ao extremo –, o efeito totalizante (normativo) e o biopoder expresso na relação carnal entre Estado e ciências biológicas, seja no léxico ou nos aparelhos estatais (FOUCAULT, 2012; VIRNO, 2004).
Para compreender como, através dos mecanismos legais da República de Weimar, o Estado nazista é germinado e floresce, finalmente, na instauração do Estado de exceção, é importante que nos debrucemos sobre a teoria de Carl Schmitt. O autor, como Foucault, traz a guerra ao centro de sua teoria da política e do Estado: a afirmação da soberania ocorre através do uso da força como repressão a iniciativas separatistas ou contestatórias, em última instância, “o Estado é a guerra civil continuamente impedida” (SCHMITT, 2015), o controle da violência por outra ainda maior. Ademais, contrário ao positivismo jurídico, hermético e universal, propõe a primazia do executor perante à norma, na qual a ideia do direito, um elemento transcendente, necessita de um indivíduo ou instituição que o efetive na realidade. Isto é, a aplicação da lei estará sempre submetida a um processo subjetivo segundo três fatores: contingência, regra e interpretação (CASTELO BRANCO, 2011; SCHMITT, 2015).
Essa teorização, voltada à ação, pretende desarmar o rule of law positivista com o objetivo de emancipar a política. Nesse processo, declarando a decisão política, contrária ou favorável a lei, como delineadora e consubstancial ao direito. Por isso, em sua interpretação da constituição alemã de 1919, defende que o guardião da constituição seria o representante da unidade política e não o tribunal constitucional, responsável pelas leis constitucionais. Isso se deve exatamente à distinção proposta entre constituição e leis constitucionais, estando a segunda subordinada à primeira que, por sua vez, é a efetivação da unidade política, da forma do Estado. Essa interpretação submete o poder judiciário ao executivo, propiciando, ao representante da unidade política, um poder soberano inquestionável, legitimado pela vontade popular. Sendo assim, podemos depreender três proposições fundamentais para a formação do Estado nazi: (i) em detrimento de interesses individuais resultantes de um Estado liberal burguês, o soberano deve manter a unidade política e defender o interesse nacional; (ii) para tal, esse líder tem autonomia de ação, inclusive, podendo convocar um estado de exceção que rompe com a normalidade jurídica (o estado de direito); (iii) ou seja, o soberano é quem decide sobre e na exceção, estando acima e além das limitações constitucionais (CASTELO BRANCO, 2011; SCHMITT, 2015).
Ao retomar o conceito de povo, aquele que compõe uma nação, aquele representado por um Estado, invariavelmente devemos retornar à soberania e ao discurso histórico que a efetiva como tal. Novamente, a revolução francesa nos será útil como marco histórico, afinal, ela simboliza a superação de um discurso por outro: ao cortar a cabeça do rei, a revolução pretende romper com a continuidade, estabilidade, da qual emana o poder régio, isto é, um poder ancestral, legitimado pela história dos reis, das grandes conquistas, do Império Romano. Essa narrativa dará lugar ao conceito de mudança, instabilidade, revolução, no que Foucault chamou de contra-história, uma história da guerra das raças, quiçá, dos oprimidos. O paradigma revolucionário infectará o interior dos impérios multiétnicos europeus do séc.XIX, acarretando uma série de insurgências contra o poder estabelecido em nome da emancipação dessas etnias, povos subjugados. Entretanto, a afirmação desses novos Estados-nação ocorrerá mediante a negação do outro, mais claramente na oposição colonizador e colonizado, mas, também, no interior das metrópoles, instaurando uma espécie de racismo de Estado. Nesse sentido, o caso nazista é exemplar: a guerra das raças se traduz na busca de um inimigo interno, um invasor, como na analogia médica, que infecta o corpo, nesse caso, social (o povo) e o impede de se desenvolver. Assim, os judeus se tornaram objeto do racismo de Estado, a personificação de todo mal que um dia feriu o povo germânico, o inimigo que o separa da glória eterna, consequentemente, alvos de uma política de esterilização (ESPOSITO, 2008; FOUCAULT, 2012).
A outra face desse poder normativo que emana da guerra de raças é a criação de um tipo ideal, um sujeito social que esse discurso pretende defender, o ariano. Em sua criação, serão mobilizadas duas forças: uma histórico-simbólica, construída a partir da história da opressão e emancipação do povo germânico, elaboração de uma mitologia própria, e uma narrativa utópica, um futuro prometido, apenas alcançável sob a liderança do Furher; outra, biopolítica, interessada na produção do sujeito ariano por meio das tecnologias do Estado, uma política sobre a vida. O regime nazista, mesmo na relação com seu povo, aquele que o racismo de Estado busca defender, sujeita a vida (bíos) à política, ao interesse do Estado; tornando literal a proposição de Espósito: “uma política construída diretamente sobre o bíos está sempre exposta ao risco de subordinar violentamente o bíos à política” (ESPOSITO, 2008, p.32).
Outro aspecto singular do biopoder no regime de Hitler reside em sua relação com vida e morte. Afinal, existem dois tipos de biopoder, o afirmativo, aquele que nutre a vida, faz viver, e o negativo, aquele que deixa morrer. Na Alemanha nazista, ou seja, num mesmo espaço geográfico, essas duas formas coexistiram com a persistência do poder soberano, aquele que faz morrer, tendo, talvez, o paradigma da imunidade como seu elo: para preservar a vida, imunizar o povo (ariano) da doença, é necessário eliminar o corpo estranho (judeus) com base em uma prática de assepsia. Diferente das práticas de vacinação que buscam introduzir pequenas doses da doença em prol de uma imunização preventiva – isto é, no contexto do Estado, a docilização da “sub-raça” no interior do cotidiano social –, pretendeu-se eliminar completamente o antígeno através de práticas higienista, de limpeza, efetivadas em métodos de extermínio. Os campos de concentração/extermínio – experimentados inicialmente nos territórios coloniais, como na resposta espanhola às insurreições cubanas na guerra de independência[1] – são um ponto chave na análise da coexistência desses dois tipos de poder. Devemos nos atentar a distinção entre o campo de concentração, trabalho forçado, e o campo de extermínio, deixar morrer e fazer morrer. O segundo representa de forma clara a persistência do poder soberano em uma nova formulação na qual a morte é um instrumento de gestão das populações (necropolítica). Enquanto o primeiro, com base na perspectiva de Agamben, reduz o sujeito a uma existência simplesmente biológica, o bíos dá lugar ao zoe (“vida nua”, desprovida de qualquer sentido político), um limbo entre vida e morte (ESPOSITO, 2008; FOUCAULT, 2012; MAZOWER, 2008; MBEMBE, 2003).
O que possibilita a violenta reemergência do poder soberano, fazer morrer, nas sociedades contemporâneas? O estado de exceção. Esse dispositivo jurídico que serve para delimitar a regra é, ele mesmo, o instrumento que permite que, em meio a uma sociedade voltada à produção de vida, existam espaços, períodos e situações, nos quais a regra pode ser quebrada. Da gestão desse ambiente onde resistência e suicídio se confundem, onde a morte é a regra, nasce um novo tipo de poder, de política, a necropolítica. Para além da capacidade de fazer morrer, trata-se da gestão do terror, a morte esvaziada de seu valor categórico, como visto no poder régio. Segundo Mbembe, as colônias são o estado de exceção por excelência, onde primeiro se praticou o necropoder, e o nativo, o zoe primordial (FOUCAULT, 2012; MAZOWER, 2008; MBEMBE, 2003).
Finalmente, a experiência nazi configura um objeto de análise por, ao mesmo tempo, reunir três tipos de poder característicos desse período: (i) o poder normativo, seu efeito totalizante e disciplinar; (ii) o biopoder, as políticas e tecnologias sobre a vida; (iii) o necropoder, a política de morte e os métodos de extermínio. O meio necessário para existência absurda e harmoniosa desses poderes foi o estado de exceção, convocado de dentro do sistema liberal democrático. Ademais, os dois autores que abordam mais diretamente o tempo presente – Esposito e Mbembe – são bastante diretos no diagnóstico entre poder, excepcionalidade e regra: cada vez mais, aquilo que está além da política margeia seus limites e se insere no cotidiano como regra. Em nome da segurança, na incessante narrativa da guerra de raças, na defesa contra um inimigo interno ou externo, o estado de direito é submetido à exceção. Nesse sentido, o nazismo representa tanto o reflexo quanto a distorção da modernidade.
REFERÊNCIAS
CASTELO BRANCO, P. H. V. B. Secularização inacabada : política e direito em Carl Schmitt. Curitiba: Appris, 2011.
ESPOSITO, R. Bíos : biopolitics and philosophy. Minnesota: University of Minnesota Press, 2008.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade, curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
GRAHAM, S. Foucault’s boomerang – the new military urbanism. Development Dialogue, (58), 37–48, 2013. Retrieved from https://www.opendemocracy.net/en/opensecurity/foucaults-boomerang-new-military-urbanism/
MAZOWER, M. Foucault, Agamben: Theory and the Nazis. Boundary 2, Vol. 35, pp. 23–34, 2008. https://doi.org/10.1215/01903659-2007-024
MBEMBE, A. Necropolitics. Public Culture, Vol. 15, pp. 11–40, 2003. https://doi.org/10.1215/08992363-15-1-11
PITZER, A. Concentration Camps Existed Long Before Auschwitz | History | Smithsonian Magazine, 2017. Retrieved from https://www.smithsonianmag.com/history/concentration-camps-existed-long-before-Auschwitz-180967049/
SCHMITT, C. O conceito do político.Lisboa: Edições 70, 2015 [1932].
VIRNO, P. A Grammar of the Multitude. Massachusetts: Semiotext(e) foreign agents series, The MIT Press, 2004.
WARLLESTEIN, I. M. After liberalism. Nova Iorque: New Press, 1995.
NOTAS
[1] PITZER, A. Concentration Camps Existed Long Before Auschwitz | History | Smithsonian Magazine, 2017
Créditos na imagem: O Globo / Reprodução disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/um-classico-sobre-o-surgimento-do-nazismo.html
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Vinicius Rosalvo de Oliveira
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