Estranho o mundo da arte. O mundo que não quer fazer parte de nada: desprendimento místico e particular do ortodoxo, do estruturado, do sagrado. A arte, ao querer reclamar seu espaço, provoca-o amargamente à sua plena evanescência, à sua morte. Maurice Blanchot já avalizava o peso limítrofe da morte na produção artística, sua constante relação com a perda –  perda da linguagem dos deuses, perda do referencial, do objeto-A (para citar Jacques Lacan) – seu sumiço quintessencial. Onde some, a arte deve aparecer.

Faz-se por ora oportuno atestar que este texto não se desdobra sobre uma produção artística particular, ou sobre qualquer artista. Nada insere na lacuna em branco um nome de registro, uma carteira de identidade, uma certidão de nascimento: não: a arte não se baseia nos nomes – ao contrário da História. O personagem histórico – e este pode ser o acontecimento, o sujeito, a época, o mar (para lembrar Braudel e le Méditerranée ou as pedras de Jules Michelet) – fala, ou deve ser conferido a ele um lugar para a fala. Mas de que maneira elaborar as palavras? E o que dizer? Tudo diz de si, dentro da diferença, ali onde opera o registro da mudança e da permanência, para o caso da compreensão histórica. Resta-nos apostar na narrativa, na fábula, na ficção: um dos elementos da poética de inventar passados. Estranho o mundo da arte. Ali onde ela acrescenta sentido, metaforiza as coisas, faz ver, isto é, “põe sob os olhos” (para citar Aristóteles). Certamente hoje se torna chocante compreender como uma coisa pode ser de uma forma e não de outra. Como a forma muda. Como a história é outra e pode ser contada de outra maneira. Atesta-se claramente o estertor do problema da representação e da verdade. Não se narra, se evidencia. Não se elabora sentido para as coisas, mas se fetichiza a coisa nela mesma: o “tempo é duro”, “veja a crise”, ou até mesmo a total banalização da pandemia que toma conta de todos. Todos sintomas de uma absurda falta de imaginação, imaginação histórica e artística.

Estranho o mundo da arte, que dialoga com a morte – experiência radical – mas que vê-se desabitada em um mundo sem imaginação. Imagino como seria a ficcionalização de um dado discurso sobre a pandemia do coronavírus. Quero dizer: como se dará a produção de narrativas, artísticas ou não, mas certamente criativas e criadoras de caminhos e possibilidades de elaboração, ou melhor, “perlaboração” (para usar um termo caro aos psicanalistas) do trauma da pandemia? Em Freud, o “trabalho de luto” tem a ver com a libertação do sujeito de um permanente estado de repetição do trauma, ali onde ele “trabalha” seu passado através da lembrança controlada. A “pulsão de morte” que parece lembrar o mundo da arte (e aqui entende-se a poética, a fabricação de sentidos, imagens, escritas), na qual as repetições se dão ao nível das tendências ou debates contemporâneos – a “obsessão” dos intelectuais e artistas, para lembrar a palavra cara a Roland Barthes – deve criar ou recriar um lugar habitável, um familiar mundo da arte, espaço de acolhida, imaginação e transformação para o duro tempo em que vivemos.

 

 

 


Créditos na imagem: Getty Images. Repodução. Disponível em: https://super.abril.com.br/especiais/pulsao-de-morte-voce-contra-a-sociedade/

 

 

 


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