Um menino e seu tatu, aqui importa muito a qualidade de tatu e a de menino.
O tatu era desses que viram bolinha escura, tatuzinho pequeno. Pequeno também era o menino, este era essencialmente menino antes de tudo. Ambos existiam tão profundamente que, caso quisessem, poderiam ordenar a lua que girasse ou ao mar que congelasse, assim seria, pois suas existências eram plenas, eram feitos de terra e algumas pedrinhas. E assim seguiam, existindo e consentindo com tudo, consentiam com as horas, com a horta, com a fome e com o pão, eram coniventes à inundação e à sede, às escadas sem piso e às árvores sem frutos. Tudo lhes era passível.
O menino, guiado pela força natural que governa o mundo a eras, um equilibrista sem platéia; se inclinava e pendurava nas pontas dos degraus.
-Ah! Seu menino atrevido, vai se machucar! Exclamava sua bisavó da janela branca por de cima do jardim, este que beirava a escada de degraus irregulares.
-Êta! Não vá ciscar na terra, hein menino! Te torço a orelha, malcriado… A voz agitada vai se distanciando e diminuindo, abafando e se dissolve no som de tampas, pratos e panelas.
A criança que já esperava pelo sumiço da voz, inerte de cínica obediência, sobe em um salto o que faltava para seus olhos ultrapassarem a altura do murinho de blocos. Seus olhos arregalados e desnudos, coisa bonita e comum entre cientistas e sonhadores, examinam a vista geral do jardim de hortaliças coloridas de sua bisa, esta que por ele é chamada singularmente de vó-bisa.
Sua visão atenta agora começa a buscar minuciosamente por tatuzinhos, caramujos e seus caminhozinhos cintilantes.
Tem um prazer enorme em quebrar a casca-casa oca e abandonada dos caracóis e quase se pode ver uma lágrima formando-se em seu olho, quando amassa um bichinho escondido de medo. Mas, nada poderia fazer sobre isso, seu corpinho amava o mundo sensível. Entretanto também, mais tarde veio a desenvolver uma técnica de por contra o Sol as casinhas espiraladas.
Assim o menino fuçava, e lá pelas tantas daquela tarde, parou seus olhos úmidos e vorazes, como são os de criança e de bicho. Havia achado um tatu, Não, o tatu. Era um tatuzinho bolinha de jardim, de aparência comum, mas a ele não enganaria, era um tatu com coisa humana de gente.
A relação dele com os tatus era boa, e não poderia ser diferente, eram animaizinhos tão calmos e generosos. Ele os achava, pais, mães e filhos-tatus, os reunia em sua palma ou no topo do tijolo ondulado e esperava por suas metamorfoses. Um a um, eles se apresentavam e faziam ciranda a roda da mão menina. O menino se divertia. Encantado pela miudeza animada dessas criaturinhas. Assim os amava, nunca jamais havia machucado sequer uma patinha de tatu, lhe eram caros.
Mas voltando ao extraordinário ocorrido do tatu desperto.
Essas coisas ocorrem na vida de milhões, mas mesmo assim são sempre esquecidas, como se fossem sonhos que pela manhã parecem lembranças e na noite seguinte já não são mais nada.
Ele pegara o tatu junto a outros muitos e os colocava na mão como fazia cotidianamente. Todas as bolinhas foram se alongando e se desmanchando, uma a uma, sendo sempre uma nova forma. Logo após alguns momentos, ainda havia uma bolinha quieta, o menino esperou. Com uma paciência avessa a sua condição de ser, ele esperou de olhos atentos. Tatuzinhos simpáticos iam e vinham por entre seus dedos e da forma como apareceram voltaram a terra, e aquele um imóvel lá se manteve.
Havia passado uma eternidade, ou talvez cinco minutos, quem saberia? O menino, já desanimado, ainda vigiava a mão que agora descansava sobre o muro, quando houve o primeiro movimento. Era ele. Era o tatu dorminhoco.
Com toda delicadeza, também avessa, ele aproximou a mão ao rosto para assim documentar em êxtase, o acontecimento tão aguardado.
O tatu cinza e pequeno como os outros, tornou-se completamente de bola a tatu. Mas havia algo de estranho, aquele parecia um pouco menor do que seus semelhantes, e parecia talvez saber disso.
Espanto.
Parecia mais do que isso, não podia ser, mas era. Aquele tatu sabia que era pequeno e sabia também que era tatu.
Um incômodo incomum tomava do fígado a espinha da criança, ele não sabia.
Mas o tatu bolinha, sim.
O bichinho, agora, encarava o menino, e tomado novamente de espanto aproximou mais a mão do rosto. E como um míope que cerra os olhos e vislumbra,
Ele viu:
O tatu sabia de algo a mais. O menino, ele era também pequeno, assim o notara. O ente humano, além disso, percebeu em fatalidade o que era, e ao perceber, neste súbito instante, deixava de ser.
O menino se dera conta de sua meninice. Era ele então…
Era ele menino.
Créditos na imagem: Tatu-menino, colagem do autor do texto.
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