História Literária, Cânone e Literatura Brasileira

Um dos maiores problemas que, atualmente, se pode constatar no âmbito dos estudos literários é a relativa incapacidade que os pesquisadores revelam diante do problema do cânone literário, na medida em que seu estabelecimento se distancia, cada vez mais, da realidade da criação literária propriamente dita e, consequentemente, acaba desaguando no mais puro impressionismo crítico.

Nesse sentido, algumas tentativas de historicização da produção estético-literária brasileira, dentro dos mais tradicionais estudos de literatura, mostram-se completamente insatisfatórias, não conseguindo dar conta da dinâmica que a criação artística requer para se manifestar, comprometendo, assim, o próprio papel desempenhado pelas pesquisas na área da literatura, o qual, no mínimo, deveria redundar numa melhor compreensão das obras literárias.

O problema não é apenas de natureza taxionômica, mas parece se tratar de uma singular incapacidade, por parte da crítica, de expandir seus princípios de interpretação estética. Para que se possa “estabelecer”, por exemplo, um determinado cânone literário, faz-se mister considerar, além das particularidades inerentes à própria obra, aspectos que lhe são, aparentemente, de todo alheios, como os elementos relacionados à produção e à recepção literárias. Em outras palavras, o estabelecimento de um quadro historiográfico que contemple satisfatoriamente obras e autores de uma determinada cultura literária carece de uma consideração particular de cada obra analisada, mas também de uma contextualização adequada delas, a fim de que se possa estabelecer parâmetros para a compreensão dos recursos estéticos de que o autor se utilizou no seu processo de criação artística. Desse ponto de vista, poder-se-ia afirmar, de antemão, que fatores como a nacionalidade do autor, a região onde a obra foi engendrada, a abordagem cronológica ou a língua em que a obra fora redigida, analisados isoladamente, pouco auxiliam no trabalho de instituição de uma historiografia literária factível e condizente com a complexidade da produção artística. É necessário, antes de mais nada, que se estabeleça uma conjunção de vários outros aspectos que, efetivamente, contribuem para a realização plena de uma determinada obra, fatores que vão das condições sócio-históricas em que a obra fora criada ou as relações institucionais que seu autor estabelecia durante sua vida produtiva até aqueles concernentes aos meios de divulgação ou sua recepção pública.

É óbvio que a constituição de qualquer manifestação artística não depende exclusivamente do meio pelo qual ela se exprime. Mas se é precisamente na conjunção dos aspectos formal e conteudístico que compõem a obra de arte que se deve buscar o caminho para uma interpretação minimamente coerente, então não podemos deixar de lado – ao menos no âmbito da historiografia literária – os elementos contextuais, responsáveis pela inserção efetiva das obras de arte no circuito literário de uma determinada cultura. Como já se afirmou uma vez, “num país de tradição escrita tão recente e precária como o Brasil, e consequentemente com uma história de leitura, enquanto prática social, tão incipiente, não deixa de ser curioso que as histórias literárias só muito raramente, e sempre em surdina, se ocupem das condições de produção e circulação dos livros. Esta mal-amada faceta da literatura também faz parte dela, tanto quanto as entrelinhas que a crítica investiga e interpreta e cujo valor se assinala ao longo de um eixo que não só sacramenta certos textos como maiores ou menores, mas também lhes outorga ou denega estatuto de literariedade”.[1]

Assim, o êxito do estabelecimento de um cânone literário equânime vai depender, antes, da capacidade do crítico em conciliar aspectos diversos de uma mesma obra, ou seja, aspectos interiores e exteriores à obra. Genericamente falando, elementos de natureza espacial e temporal (exteriores) e elementos de natureza formal e temática (interiores).

Há uma distância muito grande entre as diversas perspectivas empregadas no trabalho de instituição canônica no âmbito da literatura. Com efeito, as obras submetidas à abordagem historiográfica nem sempre correspondem à expectativa do crítico literário, resultando, por vezes, numa atividade um pouco estéril e fastidiosa e, o que nos parece pior, levando o crítico a lançar mão de atitudes seletivas cômodas e conservadoras. Carecendo de um fundamento mais consistente, tais atitudes falham, por assim dizer, por empregar uma abordagem parcial das obras literárias, desconsiderando seus principais elementos constitutivos: utilizar-se de um cabedal analítico simplificado para se estabelecer um determinado cânone literário é, no mínimo, uma atitude contraproducente, na medida exata em que acaba por prejudicar uma futura análise e compreensão das obras que compõem o conjunto proposto. Esta atitude simplista não revela senão uma compreensão reducionista da própria atividade literária, fato que passa a comprometer de maneira cabal um trabalho mais elaborado e rigoroso de historiografia literária, pelos vícios que cria e pelos preconceitos que gera.

Não obstante, há muitas perspectivas críticas relacionadas à literatura que se revelam exequíveis expressando praticamente todas as particularidades que uma obra apresenta e abrangendo toda a complexidade estrutural que lhe é peculiar. Tais perspectivas revelam-se, assim, uma atividade percuciente de análise e interpretação dos fatores extra e intraliterários que toda obra necessariamente contém.

Não é difícil, por outro lado, perceber as causas da dificuldade de classificação das obras literárias, na tentativa de agrupá-las em torno de um mesmo e único princípio historiográfico. Com efeito, a atual situação dos estudos literários carece completamente – em relação a outras manifestações artísticas – de uma autonomia essencial às suas atividades críticas. Nesse sentido, os trabalhos de historiografia quase sempre se mostraram um pouco arrivistas, na medida em que tomaram de empréstimo fundamentos classificatórios próprios de outras disciplinas, resultando num conjunto canônico pouco consistente e demasiadamente subserviente a certas categorias alheias à atividade literária propriamente dita.

Urge atentar para esse problema com o maior desprendimento e boa vontade possíveis, mas sobretudo com uma maior flexibilidade diante dos problemas que o estabelecimento de um cânone com vistas à instituição de uma história literária apresenta.

 


 

[1] LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A Formação da Leitura no Brasil. São Paulo, Ática, 1996, p. 117.

 


Referência

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A Formação da Leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996.

 

SOBRE O AUTOR

Maurício Silva

Possui doutorado e pós-doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo; é professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação (Capes 5), na Universidade Nove de Julho (São Paulo); atuou como pesquisador da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (2012 a 2013) e como pesquisador-residente da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo (2016-2017); é autor de livros diversos, como A Hélade e o Subúrbio. Confrontos Literários na Belle Époque Carioca (São Paulo, Edusp, 2006), A Resignação dos Humildes. Estética e Combate na Ficção de Lima Barreto (São Paulo, Annablume, 2011), O Sorriso da Sociedade. Literatura e Academicismo no Brasil da Virada do Século (1890-1920) (São Paulo, Alameda, 2012) entre outros.

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