Conferência apresentada no evento Humanidades Encantadas em outubro de 2021.
Entre os dias 18 a 22 de outubro nos reunimos para afirmar sem regras a vida e o sonho num momento no qual, infelizmente, somos atravessados pela morte, pela perplexidade, pela exaustão física, mental, emocional causada não só pela pandemia, mas pela sua particularidade política no Brasil. Algumas categorias se tornaram centrais para tentar nomear o absurdo no qual estamos imersos: “necropolítica”, “estado suicidário”, “necro-bio-poder” e outras teorias importantes, cuja adequação à nossa realidade é impossível questionar. No entanto, preferimos aqui explorar um caminho também disponível para as ciências humanas percorrerem.
Elas têm sido marcadas por uma disposição que eu gosto de chamar “encantamento”. Parte da História, da Filosofia e de outras disciplinas – dentro de suas especificidades e das suas limitações – têm manifestado a necessidade de uma forma de pesquisar, de escrever, de pensar, de lecionar que procuram ir além do caráter exclusivamente técnico e pragmático do conhecimento. Uma parte das Humanidades, ainda que pequena talvez, querem mais do que conhecer e publicizar conteúdos e conceitos ou produzir sínteses sobre nossa realidade mais imediata.
Há uma abertura para experiências menos canônicas e menos convencionais, que procura pensar a partir de um acolhimento do que está ao nosso entorno, mais próximo às manifestações da cultura e da história popular, das filosofias, ontologias e saberes não exclusivamente ocidentais, das artes, das demandas mais existenciais, dos desafios ético-políticos, dos afetos, dos sonhos. Não é obviamente um fenômeno inédito, mas com algum novo fôlego.
Essa disposição é uma reação crítica ao longo processo que Weber denominou “desencantamento do mundo” ou Nietzsche chamou de “morte de Deus”, isto é, a gradual perda de confiança nos sentidos, no corpo, nos afetos, na arte, no mistério, no indizível, nos mortos, nos saberes ancestrais, na natureza. O encantamento/reecantamento, trata-se, então, de uma resposta a um processo histórico que por vezes se confunde com a própria história do ocidente, cuja força residiu em posicionar determinadas realidades com base em expectativas universais violentas que denegaram a diferença.
Entre as consequências legadas pelo desencantamento do mundo, está hoje a generalizada crença de que já não podemos construir outros futuros que diferem significativamente daqueles mais aterrorizantes que se apresentam para nós. Parece cada vez mais difícil imaginar e, sobretudo, realizar coletivamente mundos para além daquilo que está dado. O real foi reduzido ao que pode ser visto, ao que pode ser dito e ao que está disponível. Assim, nós o simplificamos em narrativas lógico-formais, em conceitos e enunciados que se esgotam em si mesmos. Isso é o desencanto: a redução e a morte da pluralidade da vida, dos seus mistérios, dos seus detalhes, dos seus caminhos múltiplos.
As ciências humanas convencionais se prestam ao desencanto quando se limitam apenas aos diagnósticos de nosso próprio tempo, abrindo mão da construção responsável e crítica por outros futuros possíveis. O ocidente é cada vez mais impelido a acreditar diante dos seus desafios coletivos que “não há nada mais a fazer”, gerando uma perda de energia na mobilização dos futuros, ou impondo soluções imediatistas que soam inalcançáveis. Tudo isso gera oscilações ora demasiadamente pessimistas ora demasiadamente otimistas (como “tudo vai passar”, “isso vai acabar”), mas que mesmo quando otimistas não se traduzem em ações concretas capazes de reorganizar decisiva e coletivamente os desafios globais.
Por isso é importante encontrar uma disposição afetiva que nos convida a descobrir e a fazer irromper passados que foram violentamente silenciados e imaginar e percorrer outros futuros, construindo, assim, outras poéticas de mundo. O que acontece, então, nesse processo de encantamento/reencantamento do mundo junto às Humanidades é um compromisso para uma prática que torne nossas ciências entusiasmadas, isto é, preenchidas de vida e de sonhos. De vida e sonhos diferentes. Estar entusiasmado literalmente significa ter o corpo cheio de deuses, estar incorporado de deuses, da criação. As Humanidades Encantadas, então, são aquelas com algum entusiasmo, mas um entusiasmo crítico, para lembrar o caráter de possibilidade, de transformação da história, de movimento a partir da diferença, sem esquecer, contudo, daqueles que vieram antes de nós e virão depois, cujo sofrimento e alegrias nos constituem, nos assombram e nos inspiram.
II
Um espaço privilegiado para este encontro com o caráter múltiplo, infinito, não lógico, dissonante e, por isso, encantado da vida são os sonhos. Eles são espaços de transgressão do nosso tempo, da nossa realidade mais imediata. Temos aprendido ou podemos aprender com as filosofias ameríndias que para suspender o céu e adiar o fim do mundo tem que ter sonho, nos alertam David Kopenawa e Ailton Krenak. Outro filósofo e escritor ameríndio, Kaká Werá diz que com os olhos da vigília vemos apenas uma pequena parte do mundo. Para as partes invisíveis serem descobertas com mais vigor, em A terra dos mil Povos, ele sugere que é “necessário ativar o encanto para imaginarmos como são as faces do real que não se expressam por palavras” (2020, p. 71). O sonho é, então, um lugar particular para articulação das nossas imagens de mundos (desses e outros).
Por isso tenho gostado de pensar os sonhos junto também de Sidarta Ribeiro e Reinhart Koselleck, como um espaço de visualização, experimentação e de apreensão de realidades latentes, não necessariamente “visíveis” ou “aceitáveis”, mas já possíveis na realidade histórica (como camadas de tempo/espaço ainda não acordadas). Na atividade psíquica noturna, experiências e expectativas (passados e desejos, nossos e de nossos antepassados), se confundem, se reprogramam, são experimentadas, são testados, são combinados e recombinados. Também nos relacionamos de forma muito singular com os objetos, com a natureza, com a tecnologia. O impossível, o absurdo (aquilo que a linguagem não controla) se apresenta sem pudor. O que significa que nossos sonhos possuem a capacidade de apreender realidades latentes e de inspirar realidades possíveis.
Então, o lugar para o qual o sonho nos lança nem sempre é o mesmo para a qual a ciência convencional evoca, do método, do controle, da lógica. Os sonhos, dos mais absurdos aos mais realistas, resguardam um mistério, elementos não comunicáveis plenamente ou que escancaram realidades que nem sabemos como nossas. Por isso, podem adquirir uma força expressiva tanto para a percepção da realidade histórica, quanto para sua (re)imaginação devido à forma própria do sonho de (des)articular a linguagem (deslocando a vivência e a narração da temporalidade e da espacialidade convencional). O sonho performa uma experiência de verdade muito particular, e por isso, contém uma potência de nos reaproximar do caráter de transformação da história. Sonhar oferece uma percepção alargada do tempo e do espaço e da possibilidade de os transgredir. Os sonhos produzem uma radical diluição das fronteiras entre a imaginação e a facticidade, construindo um espaço de relação única com a realidade.
Desse modo, a atividade onírica presentifica e subverte passados e futuros que nos assombram e encantam, do qual não dispomos controle (porque não somos xamãs). Assim, podemos talvez aproximar a experiência do sonho à noção de espectro de Derrida – quando denomina espectro “o que não é dócil ao tempo, pelo menos ao que assim chamamos” (Derrida 1994, p. 13). Rafael Haddock-Lobo junto a Derrida propõe uma atividade filosófica que dá o nome de uma “espectrologia” ou uma “ontologia assombrada” que tem um papel importante nos estudos de Filosofia Popular que ele propõe. As aparições espectrais só poderiam ser pensadas em sua infinita pluralidade e no movimento mesmo de seu aparecimento.
Os fantasmas dos passados e dos futuros, e que não são bem, nem do passado e nem futuro, são de um não-lugar e de um não-tempo, exige uma postura filosófica oposta à da tradição ocidental convencional na medida em que trazem consigo, performam a diferença. Esta estaria próxima da prática do exorcismo, do afastamento, da negação e do controle. Desse modo, “a tarefa do filósofo precisa consistir em uma espécie de invocação, aceitação e acolhimento de todo outro que aparecer, pois a lógica da aparição é a do acontecimento, já que nunca, de fato, saberemos o que ou quem virá” (Haddock-Lobo, 2020, edição Kindle). Diante do que apresenta os dois filósofos, eu sugiro como provocação, que o mundo dos sonhos é um dos acontecimentos possíveis da espectrologia – um modo de estar com fantasmas – gosto muito de quando Derrida diz que isso é uma política, “estar-com os espectros seria também, não somente, mas também, uma política da memória, da herança e das gerações”. Sonhar é uma forma de política, um espaço possível do jogo do assombramento e do encantamento – a aparição não capturável dos espectros – e isso como condição do que foi e abertura para o que há de vir.
III
Que o futuro se tornou em diferentes níveis uma fonte de angústia a partir da pandemia e de sua condição política não parece algo difícil de constatar. Atravessamos o desencanto. Mais importante talvez do que esse diagnóstico seja a pergunta sobre o que faremos com ele, o que faremos com a suspensão de sentidos tão radicais que tomam a forma de um sofrimento agudo, de um sofrimento histórico? Como nos assombrarão mais de seiscentos mil mortos? Como os deixaremos nos encantar? Essas questões não podem se esvair de nós.
Quero então compartilhar sonho:
Uma cigana caminha solitária pelo deserto. Seu percurso está repleto de incontáveis antigos relógios de pêndulo. Eles explodem aleatoriamente, como as pedras do deserto, à medida que ela peregrina. Ao longe, vê um jornalista reportando o que parece ser o fim do mundo. Então, entende que as explosões indicam que é a vida se acabando. Os relógios que explodem como pedras são pessoas. Ela segue cuidadosamente na direção contrária ao homem que noticia o fim.
Gosto de pensar que esse sonho termina como na obra A cigana adormecida de Henri Rousseau. Após a longa caminhada pelo deserto, a cigana adormece com sua roupa colorida, ao lado de um bandolim, do cajado e de seu jarro de água. Temos o efeito poético da lua, das estrelas e a presença de um leão que a espectra, quem sabe deseja devorá-la, quem sabe a guarda. Após caminhar na direção contrária ao fim do mundo, ela encontra o rio e sorri enquanto dorme, vaga e sonha com os pés descalços. Dormir e sonhar com os pés e o corpo no chão parece ser um caminho possível para enfrentar o deserto que tem crescido no nosso entorno, mas que não pode crescer dentro de nós.
REFERÊNCIAS
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DERRIDA, Jacques. Exórdio. In.: Os espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho, o luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 9-13.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
HADDOCK-LOBO, Rafael. Os fantasmas da colônia: Notas de Desconstrução e Filosofia Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020 – Edição Kindle.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
KOSELLCK, Reinhart. Ficção e realidade histórica. In.: GUMBRECHT, Hans; RODRIGUES, Thamara. (Org.). Reinhart Koselleck: uma latente filosofia do tempo. São Paulo: Unesp, 2021, p. 109-129.
KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In.: NOVAES, Adauto (Org,). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 201-204
KRENAK, Ailton. Ideais para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2019.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
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RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite. A história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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RODRIGUES, Thamara de Oliveira; RANGEL, Marcelo de Mello. Temporalidade e crise: sobre a (im)possibilidade do futuro e da política no Brasil e no mundo contemporâneo. Maracanan, v. 18, p. 66-82, 2018. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/article/view/31309
SAFATLE, Vladimir. Bem vindo ao estado suicidário. Blog N1 edições. Pandemia crítica. 2020. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/textos/23.
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WERÁ, Kaka. A terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio. São Paulo: Peirópolis, 2020.
Créditos na imagem: Reprodução. A Cigana Adormecida. Henri Rousseau, 1897.
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Thamara Rodrigues
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