LEITURA REPETENTE

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Sempre li Clarice. Sempre, desde sempre Lispector. Digo sempre, desde os treze anos. Há muitos anos. Não comecei com A mulher que matou os peixes, nem com livro sobre coelho, muito menos com compilação de contos populares, relidos reescritos por ela. Comecei nos bancos do pátio do Colégio de São Bento, o de São Paulo, no Largo São Bento, não o do Rio de Janeiro. Lia Clarice nas horas de intervalos de aulas, quando não fazia aulas de ginástica.

Comecei Clarice pelo fim: Um sopro de vida – pulsações. Soube-a morta por um poema de Ferreira Gullar copiado no rosto em branco, na folha de rosto do exemplar que uma moça me emprestou.

A leitura dos treze anos não prestou. Não entendia Lispector pelos fantasmas, pelo espectro, pelos plasmas, nem pelos ectoplasmas. Não entendia Clarice escritora compondo narrador de livro em livro sobre livro de Ângela. Muito menos percebia autor/autora. Entendia Clarice pelo espectro solar. Pelos chacras. Pelas chácaras que se abriam frente às leituras moralistas corretoras dos corredores e salas de aula do colégio.

Eu era repetente. Clarice se repetia em páginas porque pensava (sem muita certeza, como ainda hoje) que ela falava de uma mesma coisa o tempo todo. Coisa-palavra, palavra-coisa. Palavra me coitava. Perdi a virgindade com essa leitura. Virgindade de frente e de trás. Por todos os lados fui deflorado por ela.

Tenho até hoje o exemplar do livro emprestado. Nunca o devolvi. Ele era meu. Só poderia, pelo tempo que quisesse. Quis pelo tempo do para sempre. Mesmo que pudesse comprar outro exemplar, nunca fiz isso. No imaginário de ginásio, outro não seria aquele, emprestado-roubado, transgredido. Outro não teria o poema do Gullar. Outro seria novo. Eu não era mais novo. Eu era usado, usadíssimo. O livro combinava comigo. Fazia decoro.

Li mais do que uma vez Um sopro de vida. Lia Rilke em conjunto, fazendo par de despedidas. Cada leitura, outra vez no era uma vez. Os instantes já eram instantes-já. Já eram, já foram.

O livro de Clarice nunca ficou na estante. Falo de estantes já-já. Não é ainda o instante de falar de estantes. A Hora da Estrela só li só mais tarde. Sabendo já ser dos últimos que após escritos matavam Clarice Lispector, que disse morrer, ao jornalista, quando terminou de compor a não-obra prima sobre não só a nordestina. Disso, trato também quando me ocupar de estantes, ou logo após as estantes para ser mais preciso.

Li os contos de Clarice, em várias edições antológicas organizadas pós-morte. Em outras compilações, em organizações feitas pela própria escritora. Não nomeio os volumes porque se avolumam na memória, avolumados na vida empírica, nas editoras, nas livrarias. Prefiro fazer brevidade de títulos. Li o Ovo e a galinha, substituindo termos por corpo e alma, por sugestão de Rosa-Rosinha, amiga judiadinha. Heresia com o texto? Talvez. Experiência saborosa tal qual chocolate na boca e água de chuveiro do lado de fora do corpo. Leitura transistórica, tresleitura? Talvez. Porém, a galinha poderia estar para chocolate-corpo, assim como o ovo para água-alma. Em escritas que supõem arbitrariedade (não só do signo, dos significados) das coisas vivenciadas, das transitoriedades da vida, das epifanias não epifanias, malogradas, improváveis, em lugares pouco epifânicos, invenções valem dispositivos interventivos o quanto valores valem.

Valorei e valorizei sempre Clarice Lispector. Atribuí significados. Houve tempo em que fazia coragem, dispêndio, usava o tempo em sebos, alfarrábios à procura não de poesia, mas de edições (poéticas em prosa) das prosas editadas de Clarice em primeiras edições. Era e não era um fetiche da obra de arte, do objeto livro, do livro como objeto, da mercadoria. Não era um fetiche capitalista, embora em capitalismo inserido. Era um desejo de primeiro, que entendi mais tarde ser bobagem. Era uma vontade de viver o livro editado fresco, na época de seu lançamento.

Naquela época, já nem sei quantos anos tinha. Juntei várias primeiras edições. Não formei uma coleção. Toda vez que ficava injuriado, jujuru sapo na lagoa, pensava em vender as primeiras edições do Lustre, de Água Viva, d’Onde estiveste à noite, d’ A Maçã no escuro etc. Era raiva, ira não de Clarice. Da vida. Das pessoas. De mim mesmo, provável. Era tentativa de desprendimento. Não acúmulo, sei lá que coisa era.

Ler Clarice sempre foi uma coisa. Aqui me concentro em Macabéa coisa pouca, tutaméia, a d’ Hora da estrela. Em Olímpio arrivista, e no escritor-personagem do livro.

Antes, o instante de falar já de estantes. Não coloco os livros de Clarice em estantes, nem longe, nem perto de mim. Não os coloco no escritório, nem na sala. Os livros de Lispector moram no meu criado-mudo que, embora quieto-mudo, é o lugar mais lugar para eles. Sabemos o quanto são falantes os textos de Clarice. Escrituras em livros romances não-romances, não morte de romance; romances modernos, contos, novelas, crônicas, conselhos irônicos a donzelas, noivas, jovens esposas, mulheres velhas, lidos como lidos, como livros; principalmente, conselhos para sustentar filhos, lidos positivamente como conselhos de prosa deliberativa. Livros cor-de-rosa nada Rosa.

Embora falantes, textos de fala, não de língua, porque criam situações de fala, não se satisfazem no sistema da língua, abstraem o abstrato da língua, rompendo com tiranias linguísticas, o criado-mudo cai bem para livros de Clarice. Princípio não paradoxal propriamente. Contraste de coisas, inclusões.

No vazio do mudo, do mundo criado-mudo, as letras sentidas, inventadas, rearranjadas, dialogadas, dialetais, dialógicas dos tecidos finamente confeccionados por Clarice, falam mais. Ficam gritantes, erguem estantes.

Depois, há uma razão amorosa, particular, que menos conta, mas não posso deixar de contar: estando os livros de Lispector no criado-mudo de meu quarto, ao lado de minha cama, ficam mais perto de mim enquanto durmo. Eles moram no meu quarto, local intimíssimo. São leituras possíveis no impossível de quando não os leio. São livros que sempre leio. Várias vezes, de perto. São leituras de câmara, não de arenas, nem de teatros.

Sempre desde os treze. Certo que um dia, há muitos anos me perdi em Clarice. Então, decidi não mais ler seus livros. Passaram-se quase trinta anos de absoluta privação. Daí me encontrei hoje. Ontem. Outro dia. Já não me lembro mais em que instante-já que já passou. Voltei a ler a Lispector. Clarice luz claríssima, caríssima. Posso voltar a me perder. Mesmo perdendo-me nela, sei também achar-me com ou sem ela. Esse encontro é definitivo. Definitivo mistério que não se desfia, que não se definha, não se amesquinha, mas desafia.

Comecei Clarice aos treze, pelo fim. Sempre desde sempre Clarice felicidade clandestina. Meu criado-mudo é minha rede de amante. Às vezes, desloco um volume do criado-mudo, levando-o à cama. Finjo que ele se perde em meio a lençóis, que se perde entre pernas em meio a minhas pernas, agarro o livro com braços e mãos de polvo, coisa apertável com olhos e corpo. Bizarra forma de vida. Cafona relação de leitura. Kitsh aproximação de livro, gente, cama. Para compor melhor (ou pior) o quadro, o quarto em que Clarice mora comigo: Roberto Carlos, das Canções que você fez pra mim seria trilha. Trilha de livros trilhados à voz de Maria Bethânia. Livros repatriados, com outras cidadanias. Estranhamentos de estranhamentos, nunca acanhamentos tacanhas.

De todos os lidos livros de Clarice não tenho preferido. Todos queridos amantes, todos livros-livros, lidos-lidos, todos livros lidos livres. Entretanto investigo A hora da estrela. Cumpro o prometido linhas antes de digressões escaldantes.

Li A hora da estrela em livro, depois em cinema. Furto-me falar do filme, porque oitava arte demais para mim, porque oitava acima. Afinal, de cinema sou um pobre amador. Acorda, amor.

Li o livro. Li sobre o livro, o que disseram a seu respeito. Não tudo, que tudo não aguento. Tudo muita coisa. Tudo é paranoia. A Hora da Estrela, hora de dramatização da ficção da linguagem. Livro de epifanias (no plural), não apenas uma; a do escritor-personagem, com a revelação que ele, Rodrigo S. M., tem (recebe) ao ver, (de relance) a nordestina (Macabéa) na rua, ao se deparar com o tipo; epifania acrescida, paralela, em concorrência com a epifania que Macabéa tem (recebe ou sofre) quando do episódio da Madama Carlota e ao morrer, já um desdobramento do episódio, como metáfora continuada epifânica da revelação da cartomante. Alegoria de poetas.

Entretanto, como em Drummond, da “Máquina do Mundo”, do Claro Enigma, a epifania de Macabéa é não-epifania, ou falsa epifania, pois moderna, fraturada. Com a diferença que no poema de Drummond há uma recusa, na de Maca não há recusa; em ambas as situações, uma impossibilidade do mistério.

Disseram do livro: Benedito (bendito) Nunes, João Adolfo Hansen, entre tantos outros, entre mestres e mestrandos refutáveis. Outros doutores useiros e vezeiros em vieses que não me atrevo. Um amazonense (não Belmiro) e um vindo do interior de São Paulo não são pares complementares (convergências/divergências), mas tem hipóteses pertinentes: naufrágio da introspecção, “estrela de mil pontas”. O primeiro pensa identidade entre Clarice, escritora-Clarice, personagem-escritor e Macabéa. O segundo propõe homologia, afinidade, identidade de discursos entre as vozes, os atos de fala, da personagem-escritor, Macabéa e escritora Clarice (não necessariamente nessa ordem). O primeiro pensa na crise da linguagem, morte do romance etc., enquanto o segundo não. Eu, embora fale a partir do que leio deles, falo a partir do que leio dela, do falo de Clarice. Falo a partir da clave em que ela conclama a linguagem, falo no etc. do et coetera, entre outros plurais de linguagem. Linguada minha língua no beijo de língua do atropelamento do peixe em milagre.

Leio Clarice desvirginado desde sempre. Desde os treze anos de idade. A moça que me emprestou Um Sopro de Vida anda sumida. É de tamanha magreza que não tenho certeza ter corpo. Encolheu da memória. Agora, será que existiu? Era um ectoplasma? Existiu no mistério da palavra (ainda existe), como Clarice, no incômodo do professor de física (das aulas de laboratório, com luz de serviço apagada) que via meus olhos desviarem das trajetórias da luz das experiências, voltando-se para as letras tingidas no livro em ambiente de trevas: nem só de literatura vive o homem; de física, principalmente, me disse o docente.

Um problema que nunca resolvi com o professor de física: o pathos sempre foi em mim, desde os treze, não a Paixão Segundo GH, mas foi (é) paixão por CL. Questão de química, não de fisis. Cardiologia, não lógica, nem pediatria.

 

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Autor: Editora Rocco/Divulgação

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

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