ARMITAGE, David; GULDI, Jo. Manifesto pela história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
Quando confrontados por outras disciplinas e áreas do conhecimento científico, em contextos frequentemente diagnosticados com sendo “de crise”, tornou-se comum e até esperado que os historiadores recorram ao tempo como objeto último de sua especialidade. Para nos atermos ao âmbito da escola francesa dos Annales, que de modo geral tem influenciado a historiografia nos últimos cem anos, e em particular constitui o lugar do debate teórico no qual se insere a obra por ora analisada, podemos citar a clássica definição de Marc Bloch (2001, p. 55), de que “a história é a ciência dos homens no tempo”, ou a conhecida metáfora de Fernand Braudel (1965, p. 288), de que “o tempo adere ao seu pensamento como a terra à pá do jardineiro”, esta inclusive utilizada por Jo Guldi e David Armitage (p. 27) no seu Manifesto pela história. Antes de analisar o livro em questão, porém, gostaria de comparar sua perspectiva teórica com a de outra tradição historiográfica, a fim de delinearmos uma importante premissa necessária à principal apreciação que será desenvolvida no final desta resenha.
Para o historiador alemão Reinhart Koselleck (2014, p. 280), a história “só poderá persistir como ciência se desenvolver uma teoria dos tempos históricos”, de certo modo aproximando-se, portanto, das observações feitas por seus colegas franceses. Contudo, Koselleck faz questão de afastar suas formulações teóricas da conhecida divisão tripartite de Braudel, que precisaria ser “desconectada do circuito paralelo das durações longas, curtas e situacionais para ser reconduzida a um padrão antropológico comum, básico, que comporta distintos estratos de tempo” (Ibid., p. 13). Obviamente, não se trata de negligenciar o caráter dialético das durações braudelianas, tampouco de negar a importância da duração em Koselleck, mas sim de chamarmos a atenção para uma concepção de tempo histórico visto predominantemente como agente de mudança, no primeiro, e como múltiplas temporalidades disponíveis sobretudo como simultaneidades, no segundo. Além disso, das relações entre experiência e relato que constituem a base dos “três tipos de aquisição de experiência histórica” desenvolvidos por Koselleck – registrar, continuar e reformular a história – resulta uma implicação fundamentalmente epistemológica entre tempo e história que não está necessariamente presente na teoria de Braudel, ao menos não no modo como dela se apropriam os autores do Manifesto pela história.
David Armitage nasceu na Grã-Bretanha, mas desenvolveu sua carreira profissional nos Estados Unidos. De formação inicial em literatura inglesa, doutorou-se em história pela Universidade de Cambridge em 1992, com uma tese sobre o império britânico nos séculos XVII e XVIII. Como professor, trabalhou por onze anos na Universidade de Columbia e desde 2004 está vinculado à Universidade de Harvard. Além disso, é professor honorário na Universidade de Sydney, na Austrália, e no Queen’s University de Belfast, na Irlanda do Norte. Ao todo, escreveu e organizou mais de dezessete livros, muitos deles premiados e traduzidos para diversas línguas. Dentre os mais importantes, destacamos The ideological origins of the British Empire (2000), The Declaration of Independence: a global history (2007), Foundations of modern International thought (2013), Civil wars: a history in ideas (2017) e The history manifesto, escrito em coautoria com Jo Guldi em 2014. Atualmente se dedica a um estudo de história global sobre a longue durée.
Jo Guldi também é especialista em história do império britânico, especificamente na relação entre a expansão do Estado, o desenvolvimento do capitalismo, as políticas fundiárias e suas inscrições na paisagem. Estudou em Harvard e na Universidade de Chicago, foi professora assistente na Brown University e atualmente trabalha na Southern Methodist University (EUA). Além do Manifesto pela história, é autora de What is the spatial turn e Roads to power: britain invents the infrastructure state (2012), onde examina as rodovias da Grã-Bretanha no período entre 1740 e 1848. Seu trabalho mais recente é uma pesquisa sobre as reformas agrárias e suas implicações na demarcação das fronteiras do império britânico, que deverá resultar em publicação intitulada The long land court. Em parceria com Chris Johnson-Roberson, Guldi é criadora do Paper Machines, um programa de computador que possibilita a organização e indexação de grandes acervos documentais em forma de textos, projetado para facilitar as pesquisas das ciências sociais e humanas nos chamados big data disponíveis na internet.
A edição original do History manifesto, de língua inglesa, é do ano de 2014, e a estratégia da disponibilização gratuita do livro para livre acesso na internet, através do site oficial da Cambridge University Press, constitui um fator que não pode ser desprezado na tentativa de compreender a sua rápida difusão mundial. Difusão esta relacionada ainda às imediatas traduções para o chinês, o coreano, o japonês, o turco, o russo, o italiano, o espanhol e o português (SOUZA, 2019). A versão brasileira, com tradução de Modesto Florenzano, ficou por conta do Grupo Autêntica, que em 2018 incluiu a obra na destacada coleção História e Historiografia, colocando Guldi e Armitage ao lado de grandes intelectuais de renome internacional, como Antoine Prost, Michel de Certeau, Arlette Farge, Serge Gruzinski e François Hartog.
A primeira frase do Manifesto pela história – que por sinal faz referência, assim como o título da obra, ao Manifesto comunista de Marx e Engels – apresenta o diagnóstico principal a partir do qual Guldi e Armitage se posicionam: “um espectro está assombrando a nossa época: o espectro do curto prazo” (p. 07). Através de um gráfico que demonstraria o que classificam como o “crescimento extraordinário” do uso do termo short-termism entre os anos 1975 e 2000, o autor e a autora defendem que a expressão, traduzida para o português como “visão de curto prazo”, estaria relacionada a uma acelerada crise contemporânea que se manifesta no âmbito do ambiental, do social e do geopolítico (p. 07-09).
Após advogar em favor das universidades como lugares privilegiados para a prática de um pensamento de longo prazo, mas ao mesmo tempo limitadas pela crescente submissão das pesquisas ao controle privado, é formulada a tese que dá título à introdução: “a fogueira das humanidades”. De acordo com Guldi e Armitage, nesta nova busca pela relação entre passado e futuro, “a história – enquanto disciplina e objeto de estudo – pode ser justamente o árbitro de que precisamos nesta época crítica”, entretanto isso em um contexto onde “as humanidades estão ‘em crise’” (p. 15). Apresenta-se uma série estatística bastante questionável – como veremos – que supostamente indicaria a redução média nos recortes temporais das teses de Doutorado defendidas nos Estados Unidos a partir de 1975, para atribuir uma correlação causal entre a profissionalização da disciplina histórica, a crise de short-termism e uma atual perda de influência política por parte dos historiadores. Dessa forma, a partir de uma equação simples e direta em que tal situação seria superada pela prática oposta de um long-termism, o autor e a autora recomendam “a ampliação das escalas de tempo”, definida como o “retorno da longue durée” braudeliana (p. 17).
O Capítulo 1 busca delinear “o surgimento da longue durée” com Fernand Braudel, cuja teorização em 1958, de acordo com Guldi e Armitage, “oferecia a única maneira de escapar do presentismo do pós-guerra”, especificado como uma “abordagem míope, amarrada ao poder e centrada no presente” (p. 30-31). De modo mais geral, o próprio grupo dos Annales é explicado em sua ambição de “encontrar na longue durée a relação entre a ação humana e o meio ambiente”, contudo, advertem que “tratava-se de um tempo geográfico, mas não geológico” (p. 28-29), o que será fundamental para compreender as especificidades do retorno da longue durée na atualidade, articulada a perspectivas inéditas, como o conceito de Antropoceno. Mas a reflexão vai além. Na busca pelo resgate do que poderíamos chamar de uma nova historicidade para a história, descrito no título como “avançar olhando para trás”, reivindica-se a concepção que desde a Antiguidade até o advento da modernidade viu na história um repositório de múltiplas experiências do passado, que guardariam ensinamentos aplicáveis ao presente e ao futuro. Posicionamento que leva o historiador Fernando Nicolazzi a apresentar a edição brasileira do Manifesto pela história como “uma espécie de historia magistra vitae para os tempos digitais”. Mesmo reconhecendo uma ruptura historiográfica na virada para o século XIX, Guldi e Armitage alegam que “as visões de longo prazo sobre o passado permaneceram vinculadas à ação política e às discussões públicas sobre o futuro” (p. 34). Dessa forma, colocam diferentes tradições historiográficas, como o marxismo e Escola dos Annales, sob um abrangente conceito de longue durée, sem fazer menção, por exemplo, às profundas transformações provocadas pelas teleologias universalistas que marcam a experiência moderna do tempo.
Uma das principais – e mais polêmicas – teses do livro, é a defesa de que a longue durée, transformada em “instrumento canônico na escrita de histórias” com interesses públicos e ambições políticas ao longo do século XX, teria se convertido no que chamam de uma “longa duração impura”, “à medida que os historiadores da geração baby-boom foram a certa altura abandonando o engajamento direto […] para se dedicar a temas de micro-história”, permitindo assim que o pensamento de longa duração passasse ao “domínio de outros escritores sem formação histórica específica” (p. 45-46). A imprecisão semântica com que Guldi e Armitage se utilizam do conceito de micro-história será alvo de consistentes críticas por parte da historiadora Lynn Hunt, como veremos adiante. Antes, cabe insistirmos na equação que conjuga profissionalização, crise de short-termism e perda de engajamento, por oposição à prática de uma longue durée transmutada quase que em uma panaceia historiográfica. Partindo deste princípio, e mais uma vez colocando o marxismo ao lado perspectivas bastante diferentes, como os exemplos de vidas ilustres da teologia e da filosofia política, o autor e a autora recomendam “três abordagens do pensamento histórico, em termos públicos e éticos, sobre como delinear nosso futuro comum” (p. 48). São eles o pensamento contrafactual, o pensamento utópico e o pensamento sobre destino e livre-arbítrio.
Neste apartado, a meu ver, adentra-se as principais contribuições que o Manifesto pela história tem a oferecer, e que já havia sido sugerido no apontamento sobre longue durée e Antropoceno. Trata-se da relação entre o ambientalismo contemporâneo e suas implicações para com a ciência histórica, especialmente no modo como este fenômeno afeta as concepções de tempo histórico. Para sugerir o livre-arbítrio como uma alternativa aos prognósticos apocalípticos dos climatologistas e economistas, por exemplo, Guldi e Armitage indicam que “os estudiosos veem-se obrigados a compreender as diferentes escalas temporais”, o que os leva a alegar que “o discurso sobre o meio ambiente está destinado a aterrissar exatamente no campo da história” (p. 49). No intuito de criticar a inexorabilidade das mudanças climáticas, o autor e a autora recorrem ainda à tradição utópica para defender que a “proliferação de passados e de sociedades alternativas nos abre um horizonte de múltiplos possíveis futuros alternativos” (p. 55). Por fim, ao mencionar a importância do pensamento contrafactual, apontam que “uma verdadeira sustentabilidade esvaziaria de racionalidade o poder de alguns termos como ‘progresso’, ‘desenvolvimento’ e crescimento’” (p. 51-52). Apesar da interessante conclusão de que “a cronologia horizontal de uma idade que se segue à outra foi sendo substituída, no que se refere à nossa maneira de conceber o tempo, por um fluxo topológico de ‘modernidades múltiplas’ que se cruzam e entrelaçam” (p. 57), as reflexões sobre as simultaneidades dos tempos históricos ou a função epistemológica da narrativa, ainda que insinuadas, não são desenvolvidas. No transcorrer do livro predominará uma dedicação ao aspecto da duração, com vistas a convencer o leitor de que “a longue durée tem [também] uma finalidade ética” (p. 58).
O Capítulo 2 delimita o período posterior a 1968 como o momento chave de “retirada da longue durée”. Por um lado, a rebeldia dos movimentos juvenis é creditada a uma geração de historiadores que teria se insurgido também contra a prática de historiadores mais velhos, que priorizavam os estudos de longa duração. Em paralelo, a opção pelo passado breve seria uma consequência da intensificação da profissionalização acadêmica da história neste período, haja vista que “o domínio em matéria de arquivos tornou-se o índex da especialização e a concentração temporal fez-se sempre mais necessária” (p. 68). Para Guldi e Armitage, foi nesse cenário, ao qual se acrescentam ainda a emergência concomitante da “história vista de baixo” e das viradas linguística e cultural, que o “passado breve produziu a escola fundamentalista redutora de horizontes temporais conhecida como ‘micro-história’” (p. 70). Um gráfico Ngram da frase “saber cada vez mais sobre cada vez menos” tenta demonstrar a referida superespecialização da história, contudo, os dados mostram que a expressão teve um crescimento até 1940 para então entrar em uma fase de retração que só seria alterada a partir dos anos 1990. Mesmo assim, o autor e a autora insistem que, “na década de 1970, nunca havia acontecido de uma geração inteira de historiadores profissionais se rebelar tão decisivamente contra o pensamento da longue durée” (p. 75-76). Neste contexto, as longas versões da história teriam ficado por conta de teóricos sociais como Foucault e Habermas, já que os historiadores estariam centrados no “aqui e agora do presente imediato” (p. 80), abandonado que tinham as teorias da modernização ou do marxismo, por exemplo, em favor de novas perspectivas que iam da micro-história à pós-modernidade, passando pela virada antropológica ou pelo pensamento pós-colonial.
É neste ponto do livro que se retoma o gráfico utilizado na introdução, com o objetivo de apresentar novamente uma suposta redução média de 75 para 35 anos nos recortes cobertos pelas Teses de História nos Estados Unidos a partir de 1975 (p. 67). No entanto, em artigo publicado na Revista dos Annales em 2015, Lynn Hunt adverte que, segundo compreensão do próprio compilador destes dados, Benjamin Schimidt, houve um alongamento dos recortes temporais a partir de 1965, porém concentrados em períodos cada vez mais recentes, levando-a a questionar: “a História não sofreria mais de ‘presentismo’ do que uma visão de curto-prazo?” (p. 193). Um presentismo na própria forma de short-termism, responderiam Guldi e Armitage indiretamente e em outro lugar (2015, p. 551). As duras críticas de Hunt prosseguem, com a acusação de que o autor e a autora “confundem micro-história e história cultural”, na medida em que à primeira “é feita a atribuição de todos os males pelo simples motivo que ‘micro’ sugere ‘menor’, mas o verdadeiro alvo da crítica desses autores seria, na verdade, a ‘virada cultural’” (p. 193). A historiadora discorda ainda das causas diagnosticadas no Manifesto pela história, pois a perda de espaço no debate público contemporâneo não adviria de uma crise moral inerente à profissionalização ou às escolhas teóricas e metodológicas internas à disciplina histórica nas últimas décadas, mas sim dos efeitos da democratização contínua do ensino superior aliados a uma crescente precarização do trabalho docente na maioria das universidades dos Estados Unidos.
No Capítulo 3 desenvolve-se o tema que julgo de maior relevância. A partir da contraposição entre as previsões apocalípticas dos climatologistas sobre a inevitável destruição dos ecossistemas e a crença de alguns economistas no contínuo desenvolvimento tecnológico, Guldi e Armitage manifestam a necessidade de um tipo de pensamento de longo prazo sobre as mudanças climáticas e econômicas que “não pertenceu nunca nem à ciência nem à economia, mas à história” (p. 98). Exemplificam sua proposta mais uma vez a partir do Antropoceno, ao apontar que as discussões que se seguiram à proposição deste conceito no ano 2000 estiveram centradas nas interpretações acerca das causalidades de acontecimentos do passado, o que converteu o debate público “essencialmente numa controvérsia de história” (p. 100). Em seguida, relacionam o surgimento da ideologia do progresso às doutrinas modernas de exploração do meio ambiente, assim como às concepções evolucionistas de superioridade de classe e de raça, que permanecem no livro sem ser aprofundadas desde as temporalidades específicas que denotam. Contudo, este gesto possibilita ao Manifesto pela história passar de uma posição ambientalista para uma crítica das desigualdades e da atual crise de governança, ambas provocadas pelas contradições do sistema capitalista ocidental.
Guldi e Armitage concluem, conforme sua tese, que as “mitologias fundamentalistas sobre o clima, a governança e a desigualdade, começaram a se difundir aproximadamente na mesma época em que os historiadores começaram a se concentrar em escalas temporais sempre mais reduzidas” (p. 125). Essa época seria a década de 1970, que vira nascer tanto a micro-história quanto o que o autor e a autora classificam como uma “história crítica”, por eles apontada como uma prática que “pode nos ajudar a dizer qual lógica manter para o futuro e qual descartar” (p. 111). Há ainda entusiasmo com o que seria o retorno da longue durée no final dos anos 1990, revelado pelas novas abordagens como a Grande História, a História Profunda e principalmente o Antropoceno, cujas escalas temporais seriam respectivamente cosmológica, arqueológica e climatológica, portanto radicalmente diferentes da concepção braudeliana, mas que não são discutidas.
O Capítulo 4 aborda um tema metodológico que não guardaria relação direta com a problemática discutida no livro, a não ser que consideremos os trabalhos recentes de Guldi com os chamados big data no já mencionado projeto do Paper Machines. Entretanto, a construção de uma conexão causal direta entre a crise do pensamento de curto prazo e a profissionalização da história, que passa por uma especialização nas pesquisas em arquivos, tal qual formulada no Manifesto pela história, induz as reflexões para o apontamento de que “a natureza das ferramentas disponíveis e a abundância de textos permitem superar a dificuldade de elaborar uma história que seja ao mesmo tempo de longa duração e baseada em documentos de arquivo” (p. 144). Concordo que, com o grande acúmulo de informações que no advento da internet se tornam cada vez mais acessíveis e analisáveis, “a história tem um papel importante a desempenhar, […] sobretudo quando o elemento temporal é decisivo para compreender os mecanismos causais e as correlações” (p. 161). Porém, não acredito que resida necessariamente aí alguma possibilidade ou necessidade do renascimento de “universidades que formem estudantes capazes de transformar os big data em uma história de longue durée” (p. 170). Tampouco que tais decisões partiriam de “questões a um só tempo éticas e metodológicas” (p. 176), como afirmam Guldi e Armitage. Da mesma forma, a produção de histórias “que possam circular entre os leitores sob a forma de relatos concisos e de fácil exposição” (p. 137), constitui apenas uma das demandas e possibilidades de novas práticas historiográficas.
A Conclusão, que leva o título de O futuro público do passado, retoma o posicionamento de que uma pretensa reconquista de espaço político por parte dos historiadores envolveria também um retorno do pensamento de longo prazo “que, por um lado, extrai o melhor do trabalho de arquivo e, por outro, produz grandes quadros históricos sobre questões de interesse comum” (p. 178). A esta tendência, Guldi e Armitage acrescentam outras duas: “uma ênfase nas ferramentas digitais e de visualização” e “a necessidade de novas formas de relato suscetíveis de serem lidas, compreendidas e assumidas pelos não especialistas” (p. 178). Decorre daí um novamente citado entusiasmo com a Grande História, a História Profunda e o Antropoceno, abordadas sob uma perspectiva a que chamam de “crítica”. Com uma aparente contradição em relação à sua tese, o autor e a autora acreditam que “o renascimento da longue durée irá continuar a obra da micro-história, de desestabilizar as narrativas da modernização, da história liberal e de outras formas de pensamento teleológico” (p. 181). Seu Manifesto pela história consiste em defender que “os historiadores podem constituir-se nos guardiões contra as perspectivas paroquiais e contra o endêmico short-termism” (p. 187), conclamando – mais uma vez ao estilo Marx e Engels – na última frase: “Historiadores do mundo, uni-vos! Há um mundo para ganhar – antes que seja muito tarde” (p. 188).
Devido à excepcional difusão e a quantidade de discussões suscitadas pela publicação do History manifesto, a edição de abril de 2015 da American Historical Review promoveu uma seção da AHR Exchange dedicada ao livro, espaço que a revista reserva ao debate entre autores de diferentes posicionamentos. A crítica – a meu ver exageradamente dura – discorda desde a própria intenção da obra, passando pelo diagnóstico que ela faz da contemporaneidade até as alternativas que apresenta. Para Deborah Cohen e Peter Mandler, a ideia autoritária de um “manifesto pela história” soa neste caso particularmente mal, já que os historiadores não seriam soldados que atuam em uma única frente de batalha, mas sim estudiosos engajados com uma rica diversidade de práticas. Assim como fizera Lynn Hunt, a crítica acusa a equivocada interpretação dos dados sobre a redução nos recortes temporais das teses de História nos anos 1970, e a partir de outras metodologias constroem argumentos que rejeitam peremptoriamente a existência atual de uma crise de short-termism. Ao mesmo tempo, tentam demonstrar, com bons exemplos, que as abordagens de longa duração não seriam necessariamente as mais adequadas para a compreensão histórica dos problemas da atualidade. Talvez as únicas questões em que Cohen e Mandler concordem com o Manifesto pela história seja em ver os métodos quantitativos e digitais como ferramentas úteis no repertório do historiador, e na necessidade de engajamento social dos estudiosos fora da academia, quesito no qual, ao contrário do livro, alegam que os historiadores nunca estiveram tão bem.
Em sua réplica, Guldi e Armitage (2015) reconhecem a profusão de críticas negativas e positivas que se seguiram ao seu trabalho, defendendo que é da natureza de um manifesto ser polêmico e provocativo. Perceptivelmente contrariados com a avaliação em questão, respondem que de fato os historiadores não são soldados, que não lutam em uma única frente, mas que também não são ovelhas, pois não querem ser guiados, mas em qualquer comunidade complexa as escolhas individuais se agregam em tendências discerníveis. Dessa forma, contra-argumentam que o posicionamento de Cohen e Mandler seria uma cômoda defesa de manutenção do status quo e parte de uma costumeira espécie de apologia aos negócios e ao mercado. Lançando mão de novas análises de caso e recorrendo a outros bancos de dados e séries estatísticas, negam o caráter controverso e procuram reafirmar a existência de uma evidente crise nas ciências humanas em geral, e na disciplina de história em particular, a partir da década de 1970, assim como sua tese mais ampla de que a nossa cultura contemporânea sofreria de uma “endêmica visão de curto prazo”, que teria no retorno da longue durée uma alternativa potencializada pelos big data.
A meu ver, o problema do Manifesto pela história seja talvez mais de periodização do que de objetivo, proposta ou diagnóstico, haja vista que, independente da existência ou não de uma crise das humanidades ou da história no pós-1968, as reflexões de Guldi e Armitage contribuem para uma preocupação que parece sempre acompanhar os historiadores e outros cientistas sociais: a divulgação do conhecimento para além da academia e a maior participação destes especialistas na formulação de políticas públicas. De todo modo, essa questão certamente não se explica apenas por uma relação causal direta entre a profissionalização da história enquanto disciplina, conquistada por uma especialização do historiador que passa pelo trabalho com os arquivos, que por sua vez leva-os a optar por recortes temporais cada vez mais reduzidos, como procuram fazer crer o autor e a autora. Reside aqui o aspecto mais controverso do Manifesto pela história, na medida em que esta equação serve de princípio para que se estabeleça uma oposição excessivamente generalizadora entre micro-história e longue durée, negligenciando grande parte do sofisticado pensamento em teoria da história desenvolvido no século XX em nome de uma correlação semântica simplista e até truculenta que restringe “micro” e “longue” apenas às escalas de duração. No entanto, é justamente a partir desta recomendação manifesta pelo pensamento de longa duração que Guldi e Armitage adentram, com relevantes contribuições, as novas abordagens historiográficas que têm o recorte temporal drasticamente expandido pela busca em explicar, se não uma atual crise ambiental, ao menos as recentes preocupações de cunho ambientalista – e desse fenômeno ninguém há de discordar. Contudo, mesmo neste aspecto, o livro permanece limitado às durações, deixando de analisar, por exemplo, a fundamental relação entre as distintas experiências de tempo e seus respectivos regimes epistemológicos no campo da história, que na contemporaneidade estão sendo radicalmente alterados pela construção de novos conceitos, como o de Antropoceno. Nesse ponto, para finalizar, retomamos nossa apreciação inicial.
Na abertura desta resenha, procurei estabelecer uma breve premissa sobre a produção do conhecimento histórico que diferencia uma concepção de tempo visto predominantemente como escalas de duração, em Braudel, e outra concepção, em Koselleck, que privilegia as múltiplas temporalidades disponíveis como simultaneidades. Recorro agora àquilo que Michel de Certeau (1982, p. 65) chamou de “despertar epistemológico” na produção historiográfica, compreendida a partir de uma relação que combina um lugar social, uma prática científica e uma escrita. Articulando estes dois pensamentos, gostaria de arriscar sugerir uma espécie de lugar epistemológico do historiador que “observa”, resultante de um regime de temporalidade constituído tanto pela experiência “observada” quanto pelo próprio processo de construção do relato, que por sua vez envolve uma concepção de tempo histórico definida a priori, vinculada ao “lugar” do historiador e que influencia desde os métodos empregados na pesquisa até a narrativa elaborada na sua representação. Nesse sentido, podemos inferir que uma perspectiva braudeliana tende a colocar o historiador em uma posição de “exterioridade ao objeto”, analisado desde suas mudanças e permanências ocorridas ao longo do tempo, ao passo que as múltiplas simultaneidades e a relação entre experiência e relato da perspectiva koselleckiana nos jogam irremediavelmente “para dentro” do fenômeno histórico observado.
Da mesma forma, a compreensão histórica de fenômenos como a provável crise ambiental, com a arraigada separação científica moderna entre uma História – subentendida como humana – e uma História Natural – não humana –, tende a nos colocar ainda mais em uma posição de “exterioridade ao objeto”, quando buscamos compreender “de que modo a terra está mudando” ou a “causalidade de acontecimentos do passado”, para citar apenas duas das questões levantadas no Manifesto pela história. Entretanto, a recente emergência de conceitos como o Antropoceno, constitui epifenômeno que revela uma transformação radical na experiência contemporânea do tempo, na medida em que o próprio tempo geológico passa a ser definido a partir de uma conversão com a história humana. Sem dúvidas, trata-se de uma inédita antropização da História Natural, que para ser melhor compreendida necessita tanto da ampliação das escalas pelas novas abordagens da Grande História ou da História Profunda, quanto dos estudos da História do Tempo Presente acerca das multiplicidades e complexidades dos recentes movimentos ambientalistas. Nesse cenário, as pesquisas de longue durée certamente conservam sua importância, mas tendo em conta outras contribuições – como a perspectiva teórica de Koselleck, a virada linguística ou as narrativas pós-modernas – que obviamente não precisam ser priorizadas, mas que definitivamente também não poderão mais ser negligenciadas.
REFERÊNCIAS
ARMITAGE, David; GULDI, Jo. The history Manifesto. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.
_______. Manifesto pela história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
_______. The History Manifesto: A Reply to Deborah Cohen and Peter Mandler. The American Historical Review, v. 120, n. 2, p. 543-554, 2015.
BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais: a longa duração. Revista de História, São Paulo, v. 30, n. 62, p. 261-294, 1965.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
COHEN, Deborah; Peter Mandler. The history manifesto: A critique. The American Historical Review, v. 120, n. 2, p. 530-542, 2015.
HUNT, Lynn. Devemos reiniciar a história? Faces da história, Assis-SP, v. 2, n. 2, p. 191-197, jun./dez., 2015.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2014.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2001.
SOUZA, Fabrício Leal de. Manifesto pela história [resenha]. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 39, n. 80, jan./abr. 2019.
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Bom. Muito bom, quando eu vejo isso só tenho que agradecer a Deus por ter conhecido você.
Parabéns pelo trabalho.
Resultado de um grande historiador.