Memórias engavetadas: qual o futuro dos antigos porões da ditadura no Brasil?

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Antigo prédio do DOI-CODI da cidade de São Paulo. O edifício atualmente sedia o 36º Departamento de Polícia de São Paulo. Créditos da foto: Memorial da Resistência

As políticas de memória são fundamentais para a consolidação de uma sociedade democrática, pois elas permitem o direito à verdade e contribuem para as experiências coletivas, a partir da construção memorialística acerca das temporalidades e de seus processos históricos e sociais. Essa apropriação, pode garantir a partir do presente, uma maior compreensão daquilo que já aconteceu, além de permitir e possibilitar o reconhecimento das demandas oriundas dos traumas sociais e históricos.

É dessa mesma forma que elas também se aplicam aos cenários das sociedades, como uma ferramenta de rememoração do passado, além de possibilitar a justiça e a reparação diante de cenários marcados por violências e traumas. Nesse mesmo sentido, apresentarei brevemente algumas dessas políticas em torno da ditadura em alguns países da América Latina e me aprofundarei em dois casos de antigos porões de tortura no Brasil que estão passando por disputas acerca de seus encaminhamentos futuros.

Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, estima-se em 434 o número de mortos e desaparecidos políticos pela ditadura civil-militar brasileira. Contudo, no que tange à reparação, à verdade e à justiça, o Brasil está em uma posição desfavorável com relação à preservação dessas memórias. Não somente pela criação tardia da Comissão Nacional da Verdade, cujo intuito foi investigar, apurar os crimes cometidos durante a ditadura, mas também pela forma que se foi guiado o período após a redemocratização.

A política conciliatória e o foco no progresso não silenciaram apenas os mortos e desaparecidos, mas também encobriu uma parte da história do Brasil, através de uma política de esquecimento e da condução do trauma a partir de uma perspectiva que abrange apenas aqueles que estavam de alguma forma envolvidos com a resistência. Tais apontamentos compõem um projeto político sustentado no esquecimento e no silenciamento, não somente da ditadura, como também da escravidão, da dizimação dos indígenas do país e outras minorias.

Contudo, alguns países da América Latina e até mesmo o Brasil, possuem alguns espaços fundamentais para a elaboração e a construção da memória coletiva em torno dos períodos autoritários. Tais espaços, possuem importância política, social e educativa, além de promover o acesso à justiça e à verdade.

Na Argentina, conta-se com mais de 30 “sítios de memória”: lugares marcados por combates durante a ditadura argentina e que hoje são preservados. Além da transformação da ex- ESMA atual Espacio Memoria y Derechos Humanos em 2004, um dos maiores centros clandestinos de tortura da América Latina, transformado em um memorial e espaço cultural que promove exposições, debates e outras atividades visando preservar a memória dos desaparecidos.

Créditos da imagem: Escuela Mecánica de la Armada, 2003, arquivo fotográfico de Eduardo Longo

Além da Argentina, o Chile também conta com o Museu de la Memoria y los Derechos Humanos, o prédio foi construído na capital Santiago no ano de 2010, para abrigar o museu que possui com um vasto acervo e salas que retratam algumas memórias do período, bem como, dos desaparecidos políticos. Assim como a antiga ESMA e atual Espacio Memoria y Derechos Humanos, da capital Buenos Aires, o Museu de la Memoria também abriga em seus itinerários ações culturais e educativas, visando promover a educação em Direitos Humanos. Tais medidas são fundamentais para a consolidação de uma sociedade democrática, pois, além de contribuir para a formação dos cidadãos, também auxilia na preservação da memória coletiva.

Imagem: painel com fotos de desaparecidos políticos e vítimas da ditadura chilena. Créditos da foto: Abraço Cultural.

No Brasil, temos o Memorial da Resistência, situado na cidade de São Paulo na antiga sede do Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS/SP). O memorial foi criado em 2009 e é gerido pela Associação Pinacoteca Arte e Cultura (APAC) e pelo governo do Estado de São Paulo. É um dos poucos espaços que temos referentes à ditadura no país e seu papel é auxiliar na construção da memória histórica e política do Brasil.

Interior do Memorial da Resistência, antigo prédio do DEOPS/SP. Créditos da imagem: Catraca Livre

Entretanto, existem disputas políticas marcadas por grupos a favor da transformação desses antigos porões de tortura em espaços de memória e de outro lado órgãos, como a polícia civil e outras instâncias que dificultam o reestabelecimento desses locais enquanto centros de memória. O caso do antigo prédio do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) da cidade do Rio de Janeiro é um exemplo marcado pela disputa entre esses dois grupos. De um lado há, a possibilidade da criação desse espaço em prol da memória, da justiça e da verdade e de outro lado, por parte da polícia civil carioca, a transformação do local em um espaço comercial.

Porém, não se tem mais informações atuais de qual será o destino do prédio, o que se sabe é que ele passou por algumas reformas de modo a preservar sua fachada e interior que estavam com risco de desabamento. Cabe relembrar, também, que o processo de tombamento do prédio ainda não foi concluído, segundo o site do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro (INEPAC), o seu tombamento provisório se deu em maio de 1987, desde então não há mais informações sobre o andamento do processo.

O antigo prédio do DOPS é situado no Centro do Rio de Janeiro, na rua da Relação. O prédio foi construído em 1912 e tem como influência arquitetônica e Belle Époque francesa, a fim de modernizar a cidade. Créditos da imagem: Agência EBC Brasil, 2013.

Atualmente, vem sendo discutido nas instâncias jurídicas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e também foi levada para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo as medidas cabíveis para a transformação do antigo prédio do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). O prédio, embora já tenha sido tombado pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) ainda estaria em aberto qual seria o seu destino, tendo em vista que suas instalações eram utilizadas pelo 36º Departamento de Polícia de São Paulo.

O antigo prédio do DOI-CODI é situação na rua da Tutóia, no Bairro Paraíso na cidade de São Paulo. Créditos da imagem: Cadu Gomes, Correio Brasiliense, 2021.

Contudo, nos últimos meses foi concedida uma liminar que transferia o prédio aos cuidados da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. É importante salientar, como nesses casos as lutas pela transformação e preservação desses locais vem sendo uma constante. E foi, por intermédio desses grupos, foi possível que essa discussão fosse retomada. O Núcleo Memória vem atuado fortemente na elaboração desse memorial e na preservação das memórias da ditadura e de seus desaparecidos.

Tendo em vista todos os casos expostos, o que pode se afirmar é que o Brasil ainda precisa percorrer um longo caminho acerca da preservação crítica de suas memórias. Porém, esse caminho não diz respeito apenas à memória da ditadura civil-militar e de todas as violações que ocorreram, mas também, a preservação da memória daqueles que são marginalizados, como os povos pretos, indígenas e as minorias.

A História de um país não se constrói apenas a partir de narrativas daqueles que são considerados vencedores, mas sim, por meio de uma pluralidade que permita a lembrança, a representação e, sobretudo, a justiça e a verdade de outros sujeitos e sujeitas que foram ocultados da memória nacional.

Por fim, o que também pode ser ressaltado é que para além da construção de uma memória coletiva capaz de trazer à luz a justiça e a verdade, a construção e preservação desses espaços tornam-se fundamentais para a continuidade e cuidado de uma sociedade democrática, considerando que ela é resguardada pela produção da verdade e da coletividade.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2011.

ALEXANDRAKIS, Fredy. Os rumos da antiga sede do DOI-Codi em São Paulo. Nexo Jornal. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/09/10/Os-rumos-da-antiga-sede-do-DOI-Codi-em-S%C3%A3o-Paulo>. Acesso em: 3 Dez. 2021.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade: mortos e desaparecidos políticos. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_3_digital.pdf. Acesso em: 03 dez. 2021.

CARNEIRO, Júlia Dias; GOMES, Luciani. No Rio, ex-sede do Dops tem passado sombrio e futuro duvidoso. Bbc Brasil. Rio de Janeiro. 01/12/2014. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/12/141208_dops_rio_texto_pai_jc. Acesso em: 03 Dez. 2021.

FILHO, Moacyr de Oliveira. Justiça de São Paulo manda preservar instalações do antigo Doi-Codi. Política. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/06/4930863-justica-de-sao-paulo-manda-preservar-instalacoes-do-antigo-doi-codi.html>. Acesso em: 3 Dez. 2021.

KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. Boitempo Editorial, 2019.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Aeroplano, 2004.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 10, 1993.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Arte: Angeli.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Larissa Vitória Ivo

Graduada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto e mestranda no Programa de Pós-graduação em História (PPGHIS/UFOP) onde integra a linha de pesquisa 1: Poder, Espaço e Sociedade, desenvolvendo pesquisa acerca das políticas de memória dos antigos centros de tortura no Brasil. É professora de Filosofia e Ciências Humanas do Estado de Minas Gerais. Atua na assessoria editorial do portal de Humanidades HH Magazine e é membro do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP).

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