Em novembro de 2015 rompeu-se no Brasil uma barragem de rejeitos de mineração de ferro, causando aquele que é considerado o maior desastre socioambiental do país no setor mineral. A barragem de Fundão, como era conhecida, pertencia ao complexo industrial da empresa Samarco Mineração S.A., controlada pelas multinacionais Vale S.A. e BHP Billinton, situada no município de Mariana, estado de Minas Gerias.
Seu rompimento liberou cerca de 45 milhões de metros cúbicos de lama, provocando uma onda de devastação que atingiu rios da bacia hidrográfica do Rio Doce, tais como o Rio Gualaxo do Norte e o Ribeirão do Carmo, chegando até o Oceano Atlântico, a uma distância de aproximadamente 650 km do local do desastre (Figura 1). Dezenove pessoas perderam a vida, além de milhares de árvores, animais e microrganismos. Houve também a destruição de culturas agrícolas, estruturas urbanas e o extermínio do distrito de Bento Rodrigues, em Mariana.
Ao olhar para o passado é possível constatar que a convivência com as consequências negativas da mineração esteve presente desde as primeiras décadas de exploração mineral no Brasil. Em meados do século XVIII, o Ribeirão do Carmo – que sofreu com os impactos do rompimento da barragem em 2015 – já recebia os rejeitos da exploração do ouro, que causavam inundações na cidade de Mariana.
Entre as décadas de 1730 e 1740, as inundações passaram a ser o foco de discussões e disputas de poderes entre diferentes sujeitos das elites locais daquela cidade e alguns documentos históricos apontam claramente a mineração como responsável por tais eventos. Isto é o que mostram os registros de um conflito iniciado em 1743 entre dois ricos mineradores e os membros da Câmara de Mariana.
As Câmaras eram instituições administrativas de poder local compostas por membros das elites: indivíduos brancos e de maior projeção econômica e social. Mas nem sempre os interesses dos membros da Câmara representavam os interesses do restante da população que detinha poder naquela sociedade. Os dois mineradores que entraram em conflito com a instituição também eram membros da elite local e estavam sendo acusados de causarem inundações com seus serviços de mineração.
Naquele momento histórico, em que Mariana acabara de receber o título de cidade (deixando de ser vila), a Câmara – como órgão administrativo local – se preocupava em manter seu território compatível com os padrões “civilizados” da categoria cidade e as inundações se colocavam como obstáculos ao alcance deste objetivo, pois destruíam edificações, templos religiosos e vias públicas no centro urbano, como representado na Figura 2.
Neste contexto é que os membros da Câmara acusavam os referidos mineradores de causarem as inundações. A intenção da instituição era desapropriar os mineradores de suas terras minerais para dar fim aos problemas urbanos que eles causavam. Todavia, os dois acusados eram homens de grande representatividade econômica e social e, ao final do conflito, tiveram decisão favorável do rei à manutenção da propriedade de suas terras minerais.
Mesmo se estivermos atentos às peculiaridades históricas do período, é possível estabelecer uma comparação entre os eventos do passado e do presente. Não se trata de equipará-los, mas de compreender suas similaridades. No século XVIII, a disputa encetada em Mariana teve decisão favorável à manutenção das atividades de extração do ouro na cidade, mesmo quando estas causavam prejuízos para aqueles que viviam no centro urbano.
O mesmo se pode dizer do cenário atual. Em 2017, dois anos após o rompimento da barragem naquele município, o Conselho Estadual de Política Ambiental de Minas Gerais publicou uma Deliberação Normativa que tornou menos rígidos os critérios de licenciamento ambiental para empreendimentos que utilizam recursos ambientais no estado de Minas Gerais. Esta medida vem sendo considerada por especialistas como uma das responsáveis por outro grande desastre no setor de mineração no Brasil: o rompimento de uma barragem de rejeitos na cidade de Brumadinho, Minas Gerais – também controlada pela Vale S.A – no ano de 2019. Nesta catástrofe foram perdidas duzentas e cinquenta e nove vidas humanas e milhares de vidas não humanas, além de onze pessoas ainda estarem desaparecidas (Mapa 2).
Apesar de os sujeitos históricos envolvidos na exploração mineral no século XVIII (exploradores individuais/associados e trabalhadores escravizados) e no XXI (empresas multinacionais e trabalhadores livres) serem diferentes, há uma semelhança clara entre as escolhas que se fizeram no passado e ainda se fazem no presente, como a manutenção da primazia dos interesses das elites e a opção pela continuidade das atividades de mineração a qualquer custo, mesmo quando elas colocam vidas em risco. Os dois casos apontam para a persistente colonialidade que afeta a natureza latino- americana. Como disse Héctor Alimonda, a natureza “aparece ante ao pensamento hegemônico global e ante as elites dominantes da região como um espaço subalterno, que pode ser explorado, arrasado, reconfigurado, segundo as necessidades dos regimes de acumulação vigente”.
No passado, a decisão do rei foi favorável à manutenção da mineração no espaço urbano de Mariana a despeito de todos os prejuízos que causava para os sujeitos sociais que ali viviam. Obviamente, a Coroa estava interessada nos lucros que a atividade lhe garantia. No presente, ainda que a exploração do minério de ferro seja engendrada por empresas multinacionais, o Estado brasileiro continua se posicionar a seu favor. Afinal, a mineração atende não somente aos interesses das grandes corporações internacionais, mas também aos interesses das próprias instituições públicas e dos ocupantes de seus cargos que muitas vezes se beneficiam de recursos adivinhos da atividade, como no caso de financiamento de campanhas e pagamento de royalties. Assim, perpetua-se no tempo um projeto colonialista que sustenta a expansão do sistema financeiro e comercial da economia-mundo capitalista, a despeito de todos os seus custos socioambientais.
REFERÊNCIAS
ALIMONDA, Héctor. La colonialidad de la naturaleza: una aproximación a la Ecología Política latinoamericana. In: . La Naturaleza colonizada: ecología política y minería en América Latina , editado por Héctor Alimonda, 20–54. Buenos Aires: CLACSO, 2011.
CAPANEMA, Carolina. A natureza política das Minas: mineração, meio ambiente e sociedade no século XVIII. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2019.
Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM), Minas Gerais. Deliberação Normativa Copam no. 217, de 6 de dezembro de 2017. Disponível em: http://www.siam.mg.gov.br/sla/download.pdf?idNorma=45558. Acesso em: 03/03/2021.
MILANEZ, Bruno; MAGNO, Lucas; PINTO, Raquel Giffoni. Da Política Fraca às Políticas Privadas: O Papel do Setor de Mineração nas Transformações da Política Ambiental do Estado de Minas Gerais, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 35, no. 5, 2019.
RAMBOLL BRASIL. Avaliação do programa de proteção integral da Bacia do Rio Doce. Disponível em: http://jornalasirene.com.br/wp-content/uploads/2018/11/RBLRamboll_Report_Projeto_Definitivo A4_28.03.18.pdf . Acesso em: 03/03/2021.
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Representação dos oficiais da Câmara da cidade de Mariana, expondo o dano que lhes advém do serviço de minerar pertencente a Antônio Botelho e seu irmão João Botelho de Carvalho, instalado na praia do Rio, do qual provêm as inundações da cidade e solicitando provisão régia para que esse serviço seja interdito de assentar no referido local. 25 de setembro de 1745. Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos da Capitania de Minas Gerais, caixa 45, doc. 92
TEDESCHI, Denise. Águas Urbanas: as formas de apropriação das águas nas Minas: século XVIII. São Paulo: Alameda Editorial, 2014.
* Este artigo foi originalmente publicado em inglês como: CAPANEMA, Carolina. Mining and Environmental Destruction in Minas Gerais: A Historical Comparison. Environment & Society Portal, Arcadia (Spring 2021), no. 6. Rachel Carson Center for Environment and Society. https://doi.org/10.5282/rcc/9217.
Créditos na imagem de capa: Mapa da cidade de Mariana representando, na parte inferior, uma das enchentes que assolaram a cidade no século XVIII. Autor desconhecido, s.d.. Biblioteca de Mapas do Itamaraty, Rio de Janeiro. MI (in. 874).
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