Lima Barreto monarquista? As desilusões de um escritor na passagem do século (II)

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Como vimos em artigo anterior sobre este mesmo tema, o famoso jornalista e escritor carioca Lima Barreto, a despeito de ocupar um lugar indefinido – no que diz respeito à oposição entre entusiastas do regime monárquico e adeptos do regime republicano, na passagem do século XIX para o XX –, caracterizado por uma espécie de meio-termo ideológico e construído nas frinchas dos dois regimes, parecia ocupar um sutil pendor ao regime monárquico, que surge em boa parte de sua produção ficcional sob a forma de uma bem representada idealização literária.

É curioso observar, seguindo as pistas deixadas pelo autor, como Lima Barreto empenhou-se, numa espécie de face complementar à prática ficcional da idealização da Monarquia, numa contumaz carnavalização da República.

O conceito de carnavalização na literatura foi, como se sabe, sistematizado por Mikhail Bakhtin, ao relacionar uma cosmovisão carnavalesca (a partir do folclore sincrético carnavalesco) à teoria dos gêneros e ao estudar a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, afirmando ser a visão carnavalesca do mundo a base profunda da literatura renascentista (BAKHTIN, 1981; BAKHTIN, 1987). Em poucas palavras, a ideia de carnavalização pode ser entendida como um processo estilístico caracterizado, na literatura, pela ambiguidade de sentidos e pela inversão de natureza paródica (LODGE, 1990; TODOROV, 1981).

Em Lima Barreto, a carnavalização fica evidente quando o romancista carioca promove uma verdadeira inversão de sentido em vários episódios de fundo histórico-político, relacionados à República, dos quais destacaremos aqui pelo menos dois fatos relevantes: as eleições republicanas e o episódio da Revolta da Armada.

Via de regra, as eleições republicanas são vistas pelo autor por uma ótica invertida: em vez da lisura do processo eleitoral – tal como era defendido e propagandeado pelos republicanos –, assistimos a uma farsa política que implica no descrédito do próprio regime. Lima Barreto narra, assim, um processo marcado pelos vícios de um patriarcalismo ultrapassado e pelas impropriedades de uma ação política inescrupulosa: inverte-se, parodicamente, o sentido da política republicana, as cenas tornam-se ambíguas, instala-se a carnavalização nas eleições.

Em nenhum outro romance do autor esse fato é mais marcante do que em Numa e a Ninfa, em que Lima Barreto não hesita em nos apresentar a realidade política da República a partir de uma ótica extremamente pessimista, como se tudo o que se referisse a ela fosse necessariamente corrompido. É sintomática, nesse contexto, a atuação da personagem Fuas Bandeira, jornalista sempre pronto a adular figuras políticas de relevo, recebendo em troca proteção e influência em negócios privados. Mas se a figura aludida toca apenas ligeiramente na questão da ética republicana, o mesmo não se pode dizer da maioria das personagens de Numa e a Ninfa, já que a relação inescrupulosa entre as esferas pública e privada é sugerida pelas figuras de um Neves Cogominho ou de um Inácio Costa. Essas e outras personagens do romance revelam uma poderosa tendência a toda sorte de corrupção, a trapaças generalizadas e a atividades espúrias. Além dessas, há que se ressaltar ainda a atuação de Numa Pompílio de Castro e Lucrécio Barba de Bode, sem dúvida duas das mais representativas personagens da República limabarretiana: a primeira nos é apresentada como um deputado desenxabido, que se tornou político por meio de favores, casou-se por interesse e passa a maior parte do tempo dormindo nas seções legislativas; o segundo, como cabo eleitoral truculento e inconsequente, vivendo de expedientes suspeitos e ascendendo socialmente por meios ilícitos.

No que diz respeito às eleições propriamente ditas, algumas passagens do romance falam por si mesmas, denotando sugestivas inversões:

 

Os sequazes de Bentes acharam que o melhor meio de fazê-lo presidente do Brasil era impedir que houvesse eleições na capital do país. Todas as tendenciosas passeatas de batalhões, a inundação da cidade por valentões e capangas, as ameaças de perda de emprego não lhe deram segurança de vitória (…) As seções eleitorais foram, pois, fechadas, os livros não apareceram (…) Todas as ameaças e espécies de suborno empregaram contra os funcionários postais que tinham de lidar diretamente com os livros eleitorais (…) O reconhecimento de Bentes, poucos meses depois foi feito com mais segurança, graças aos votos dos deputados já contados e empenhados (BARRETO, 1950, p. 197).

 

Causa espanto o fato de se precisar, num sentido verdadeiramente ambíguo e invertido, impedir que se realizem eleições para que um candidato a determinado cargo possa ser “eleito”. É dessa maneira que o processo de carnavalização se instaura na obra limabarretiana, pelo viés negativista e com o propósito explícito de colocar o regime republicano sob suspeita. Para alguns críticos, inclusive, em Numa e a Ninfa, Lima Barreto elabora uma crítica generalizada ao regime republicano, já que “mais do que uma crítica meramente pessoal, Lima faz aqui [em Numa e a Ninfa] uma crítica à política republicana como um todo, além de uma crítica à estrutura ampla dos mecanismos de poder”. (CURY, 1981, p. 89)

Também em outros romances do escritor, pode-se verificar o mesmo empenho no sentido de promover a carnavalização das eleições da República: em Os Bruzundangas, por exemplo, Lima Barreto lembra ironicamente que, durante o regime republicano, os “políticos práticos” eram eleitos por sufrágio universal, mas com o pressuposto de que um elemento inconveniente do aparelho eleitoral fosse totalmente eliminado – o voto (BARRETO, 1985).

Outro fato histórico-político em que se pode verificar o processo de carnavalização promovido por Lima Barreto na representação da política local é o da Revolta da Armada, rebelião ocorrida no Rio de Janeiro, em 1893, liderada por Custódio de Melo, contra a ordem republicana e o presidente Floriano Peixoto. Foram episódios que tomaram conta da capital por largo tempo, tendo sido narrados por mais de um escritor do período.

Na verdade, o que Lima Barreto faz com a história, aqui, é um complexo processo de destruição/reconstrução dela, por meio de um singular recurso: a história oficial vai sendo completamente desconstruída pela ironia impiedosa do autor e, em seu lugar, surge uma “outra” história, muito mais realista e prosaica. O autor desmascara o fato, retirando dele toda a roupagem heroica e sublime que eventualmente lhe tenha sido dada e, sem fazer concessões à retórica academicista, procura dar-lhe a mesma importância das simples ocorrências cotidianas. Trata-se de um ponto alto da literatura limabarretiana, em que o autor expõe uma visão carnavalizada da história, como aliás já se observou alhures, em relação ao seu Policarpo Quaresma (MARTHA, 1992): o que parecia ser uma grande “tragédia”, torna-se, em sua pena, uma autêntica farsa teatral, avidamente assistida por uma população carente de espetáculos públicos. O que era uma revolta, torna-se um programa familiar, habitual, em que até mesmo os cidadãos comuns podem atuar como protagonistas e ter os seus poucos minutos de glória. A dessacralização da história, por meio da ironia e da sátira, é completa:

 

Às vezes eles chegavam bem perto à tropa, às trincheiras, atrapalhando o serviço; em outras, um cidadão qualquer, chegava ao oficial e muito delicadamente pedia: O senhor dá licença que dê um tiro? O oficial acedia, os serventes carregavam a peça e o homem fazia a pontaria e um tiro partia (…) Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade… Quando se anunciava um bombardeio, num segundo, o terraço do Passeio Público se enchia. Era como se fosse uma noite de luar, no tempo em que era do tom apreciá-las no velho jardim de Dom Luís de Vasconcelos, vendo o astro solitário pratear a água e encher o céu (…) Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio como a representação de teatro (…) E dessa maneira a revolta ia correndo familiarmente, entrando nos hábitos e nos costumes da cidade. (BARRETO, 1987, p. 126)

 

Por meio de um evidente processo de carnavalização da história, o romancista carioca procura dar a este episódio uma versão teatral, satírica, descrevendo um cenário, ora de maneira zombeteira, ora de maneira romântica, mas sempre carregando na ironia e na inversão de papéis.

Para alguns teóricos, do ponto de vista ideológico Lima Barreto não se enquadraria, a rigor, em nenhuma das categorias político-ideológicas que destacamos aqui, afirmando-se antes como um escritor anarquista (REIS, 1990), embora, para outros, se tratasse de um anarquista com pendores para a monarquia. (SILVA, 1976) De qualquer maneira, no cômputo geral, a tendência para um posicionamento ideológico afeito às concepções monarquistas parece prevalecer, já que o autor – a despeito de seu evidente anarquismo – manifesta com muito mais frequência uma opinião favorável ao regime decaído. Basta, para corroborarmos essa afirmação, uma análise superficial das passagens em que o romancista carioca procura – por meio de comentários circunstanciais – comparar os dois regimes, revelando uma evidente tendência à valorização da Monarquia, em detrimento da República. É o que ocorre, por exemplo, em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá:

 

As armas da República então! – são de uma inépcia estonteadora. Aquele espadagão! Aquele fitão! Que coisas, meu Deus! (…) poucos dos nossos emblemas públicos se podem salvar de um inteiro naufrágio na fealdade e na mais completa cretinice (…) Como são diferentes dos coloniais! Basta a esfera armilar, atravessada pela cruz de Malta – símbolo do Reino do Brasil – outorgado não sei por que rei de Portugal, para mostrar como naqueles tempos havia mais gosto do que hoje, nas altas regiões  (BARRETO, 1990, p. 32);

 

em Os Bruzundangas:

 

É outro feitio da gente imperante da Bruzundanga [leia-se Brasil] de só querer ser generosa com os dinheiros do Estado. Quando aquilo foi Império, não era assim; mas, desde que passou a República, apesar da fortuna particular ter aumentado muito, a moda da generosidade à custa do governo se generalizou; (BARRETO, 1985, p. 75)

 

ou em Feiras e Mafuás:

 

Os últimos presidentes da República, se por outras coisas não se têm notabilizado, entretanto, pela quantidade de reformas inúteis e interesseiras que têm assinado, merecem estátuas em praça pública (…) Em trinta anos de república, levaram-se a efeito mais reforma nas repartições e serviços públicos do que em sessenta e sete de império. (BARRETO, 1956a, p. 229)

 

Essas não são as únicas passagens em que Lima Barreto compara ambos os regimes, com uma nítida desvantagem para a República: há, nesses como em muitos outros trechos de suas obras, uma marcada tendência a renegar o novo regime, em favor de uma indisfarçada adesão ao antigo. Mas, ainda assim, parece-nos muito mais pertinente pensar num posicionamento ideológico que fica entre os dois regimes, sem realmente se inclinar – de modo categórico e com convicção – para nenhum deles. Afinal de contas, Lima Barreto reconhecia o valor histórico-político de um fato tão relevante como o da proclamação da República, chegando a afirma que “o 15 de Novembro é uma data gloriosa nos fastos da nossa história, marcando um grande passo na evolução política do país” (BARRETO, 1956b, p. 36).

O que, convenhamos, na pena de um crítico ferino do regime, como foi o romancista carioca, significa muito mais do que uma mera simpatia descompromissada pela República, mas também muito menos do que uma irrestrita adesão a um regime que considerava particularmente excludente: como sugerimos desde o princípio, Lima Barreto parecia mesmo colocar-se – deliberadamente ou não – no indefinível limite entre uma Monarquia decaída e uma incipiente República.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, Forense-universitária, 1981.

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília, Hucitec/Universidade de Brasília, 1987.

BARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Brasileira, 1950.

BARRETO, Lima. Marginália. São Paulo, Brasiliense, 1956a.

BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás. Artigos e Crônicas. São Paulo, Brasiliense, 1956b.

BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo, Ática, 1985.

BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo, Ática, 1987.

BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Rio de Janeiro, Garnier, 1990.

CURY, Maria Zilda Ferreira. Um Mulato no Reino do Jambom. As Classes Sociais na Obra de Lima Barreto. São Paulo, Cortez, 1981.

LODGE, David. After Bakhtin. Essays on Fiction and Criticsm. London/New York, Routledge, 1990.

MARTHA, Alice A. Penteado. “Policarpo Quaresma: a História Carnavalizada”. Revista de Letras, Unesp, São Paulo, Vol. 32: 119-125, 1992.

REIS, Zenir Campos. “Vida em Tempos Escuros”. Nossa América. Revista do Memorial da América Latina, São Paulo, No. 03: 32-38, 1990.

SILVA, H. Pereira da. Lima Barreto, Escritor Maldito. s.l., s.ed., 1976.

TODOROV, Tzvetan. Mikhaïl Bakhtine. Le Principe Dialogique. Paris, Seuil, 1981.

 

 

 


Créditos na imagem: Foto. Reprodução.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Maurício Silva

Possui doutorado e pós-doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo; é professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação (Capes 5), na Universidade Nove de Julho (São Paulo); atuou como pesquisador da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (2012 a 2013) e como pesquisador-residente da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo (2016-2017); é autor de livros diversos, como A Hélade e o Subúrbio. Confrontos Literários na Belle Époque Carioca (São Paulo, Edusp, 2006), A Resignação dos Humildes. Estética e Combate na Ficção de Lima Barreto (São Paulo, Annablume, 2011), O Sorriso da Sociedade. Literatura e Academicismo no Brasil da Virada do Século (1890-1920) (São Paulo, Alameda, 2012) entre outros.

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