Entre Lima e Montevidéu: o futebol e as epifanias da forma  

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A modernidade, na definição clássica do sociólogo alemão Max Weber, é marcada por um crescente processo de desencantamento do mundo. Nesse processo, as dimensões mágicas e maravilhosas que encantavam e explicavam a realidade são substituídas por uma visão de mundo amplamente racional (WEBER, 2004). Todavia, sem contrapor-se integralmente à tese weberiana, o historiador alemão Hans Ulrich Gumbrecht aponta para alguns espaços nos quais o reencantamento do mundo ainda é possível (GUMBRECHT, 2014).

Como afirma Marcelo Jasmin, em apresentação à obra Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir (2010), a ideia de “presença” gumbrechtiana consiste na possibilidade de restabelecimento da “[…] ‘coisidade do mundo’, na busca do que há no espaço da vivência ou experiência não conceitual […] e pode dispensar a redução hermenêutica ao significado” (JASMIN, 2010, p. 9, aspas do autor). Ou seja, ainda segundo Jasmin, para Grumbrecht, a noção de “presença” está relacionada “[…] às coisas […] que, estando à nossa frente, ocupam espaço, são tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis, exclusiva e necessariamente, por uma relação de sentido” (JASMIN, 2010, p. 9). Dessa forma, em Gumbrecht, a epifania é vinculada à ideia de presença e se apresenta para além do âmbito hermenêutico ou da linguagem (JASMIN, 2010).

Nessa tensão entre os efeitos de presença e os efeitos de sentido, a epifania consiste, desse modo, em uma tentativa de apreensão da presença, a qual, em tensão com o sentido, sempre possui caráter efêmero e intenso (GUMBRECHT, 2010, 140-141). Além disso, para Gumbrecht, tal embate entre sentido e presença, inscrito na epifania, apresenta-se de três modos, quais sejam: “[…] a impressão de que a tensão entre presença e sentido, quando ocorre, surge do nada; a emergência dessa tensão como tendo uma articulação espacial; a possibilidade de descrever sua temporalidade como um ‘evento’” (GUMBRECHT, 2010, p. 140-141, aspas do autor). Nesse sentido é que Gumbrecht entende a epifania, pois

 

Talvez nenhum fenômeno ilustre melhor esse caráter de evento da epifania estética do que um bom jogo de um time esportivo. Uma bela jogada de futebol americano ou de beisebol, de futebol ou de hóquei, aquele elemento sobre o qual todos os torcedores mais experimentados estão de acordo, independentemente da vitória ou da derrota da sua equipe, é a epifania de uma forma complexa e incorporada. Assim como uma epifania, uma bela jogada é sempre um evento: jamais podemos prever se surgirá, ou quando; se surgir, não saberemos como será (mesmo se, retrospectivamente, formos capazes de descobrir semelhanças com outras belas jogadas que tivermos visto antes); desfaz-se, literalmente, à medida que surge. Não há fotografia que consiga captar uma bela jogada (GUMBRECHT, 2010, p. 143).

Para Gumbrecht (2014), diante de uma realidade secularizada e profundamente individual, a relação que estabelecemos com os esportes coletivos é capaz de produzir modos distintos de presença. Assistir a uma partida de futebol, no estádio ou mesmo pela televisão, implica que estejamos perdidos em uma intensidade focalizada. Perder-se, nessa leitura, significa que, a imersão na partida e em seus lances conduz, ainda que momentaneamente, a um afastamento do cotidiano. Perdidos nessa intensidade focalizada, a partida marca sua presença em nossos corpos e afetos. De certa maneira, determinados lances terminam por se inscrever nas retinas daqueles que os acompanharam (GUMBRECHT, 2014).

Para os torcedores, tais epifanias se configuram enquanto marcos em suas trajetórias. As memórias, das glórias e dos fracassos, contribuem para a construção de suas identidades e, como memórias, são transmitidas entre as diferentes gerações. Tornar-se torcedor de um determinado clube é, também, apropriar-se de um conjunto de tradições e memórias que circulam em diversos âmbitos da sociedade.

Quando criança, no início dos anos 1990, para contrariedade de meu pai flamenguista, fui incitado por outros familiares a torcer pelo Cruzeiro e, mais tarde, pelo Corinthians. Lembro que assistimos à final do Mundial de Clubes de 2000 durante as férias em Caldas Novas. Após a última cobrança de pênalti, mesmo não sendo torcedor corintiano, meu pai conta que me levou para uma espécie de volta olímpica em torno do hotel. Apesar da empolgação com o time paulista, uma das maiores epifanias do futebol carioca transformaram minha torcida. Na final do Campeonato Carioca de 2001, aos 43 minutos do segundo tempo, o sérvio Dejan Petkovic garantiu a vitória do Flamengo sobre o Vasco com um gol de falta. O silêncio angustiante do Maracanã acompanhou o arco percorrido pela bola até atingir a rede. Explosão no estádio, explosão em casa. Impressionado com o gol e com o título, vesti pela primeira vez o manto sagrado rubro-negro.

Décadas depois, outro momento de epifania nos marcaria profundamente. Capitaneada pelo técnico português Jorge Jesus, a campanha do Flamengo na Libertadores da América de 2019 exorcizou os vários revezes que se acumularam nos anos anteriores da competição. A final, contra o River Plate, então atual campeão, fora programada originalmente para ocorrer em Santiago. No entanto, em virtude dos protestos que tomaram às ruas da capital chilena, a partida foi transferida para Lima.

Em Lima, as expectativas da consagração conviveram com o horizonte trágico da derrota por quase todo o jogo. A equipe mais encantadora desde a geração de Zico, nos anos 1980, perdia por 1 a 0 até praticamente os 45 minutos do segundo tempo. Contudo, a melancolia da derrota, como em um desses momentos surreais que acontecem na América Latina, transformou-se em um êxtase incrédulo. Em três minutos, o Flamengo virou a partida e se sagrou campeão da América pela última vez. Mesmo no Brasil, no interior de Minas Gerais, fomos profundamente afetados por aquele momento. A família, reunida na sala, dissipou-se pelos cômodos. Meu pai, como de costume, gritou forte na sacada do apartamento.

De Lima, agora, passamos a tratar da “glória” de Montevidéu, ocorrida dois anos depois. Esse outro autor que vos escreve, palmeirense (para a tristeza do meu amigo flamenguista que manifestou suas impressões positivas até o parágrafo anterior), acompanhou o jogo também do interior de Minas Gerais, assim como ele, mas mais a Norte. Igualmente, compartilhou das mesmas epifanias. No entanto, as epifanias, no sentido gumbrechtiano, foram sentidas por mim e, certamente, por todas e todos os palmeirenses por causa de um confronto futebolístico vencido pelo time paulistano contra o Flamengo, time do outro autor deste texto, também em uma final de Libertadores da América, mas realizada na capital uruguaia, em novembro de 2021.

Evidentemente que o que escrevo aqui diz respeito a uma brincadeira saudável com o meu amigo torcedor rubro-negro, mas que, por outro lado, expressa a rivalidade que os dois times sempre tiveram e que foi intensificada nos últimos seis anos. Em 2016, antes de sagrar-se campeão brasileiro pela nona vez, meu Palmeiras disputou de forma acirrada esse campeonato com o Flamengo e, também, foi “ultrajado” pela provocação do “cheirinho”, criada pelos flamenguistas para expressarem a certeza que tinham sobre a conquista do título brasileiro daquele ano pelo time deles. Como já dito, e para a nossa felicidade, o Palmeiras terminou campeão e, talvez, a primeira epifania palmeirense sobre o Flamengo teria ocorrido nessa ocasião, na qual o termo “cheirinho” passou a ser utilizado pelos próprios palmeirenses como modo de deboche e provocação e, talvez, uma “apoteose” em relação aos flamenguistas.

No entanto, na disputa pelo mais importante título sul-americano, em 2021, parecia que, nós, palmeirenses, estávamos diante de uma situação semelhante à de 2016, à espera de outras epifanias, de outros eventos repentinos e intensos, que nos fornecessem a alegria em um local a ficar marcado positivamente para sempre devido a um detalhe. O primeiro gol do jogo foi marcado pelo meia Raphael Veiga aos cinco minutos do primeiro tempo. Após linda jogada iniciada, aparentemente de forma despretensiosa, pelo zagueiro Gustavo Gómez no campo defensivo, com um lançamento magistral e em profundidade para Mayke, na lateral-direita, fomos presenteados pelo gol de Veiga, abrindo o placar da partida. Ocorria, ali, a primeira epifania do jogo.

Tudo caminhava para uma vitória do Palmeiras por 1 a 0. No entanto, Gabriel Barbosa (o Gabigol, para os flamenguistas), empatou a partida na metade do segundo tempo, o que nos devolveu a apreensão. O jogo terminou empatado em 1 a 1 e foi para a prorrogação. Mais apreensão e nervosismo. Deyverson, até então no banco de reservas, entrava para tentar algo diferente, a pedido do técnico Abel Ferreira. Agora, tudo caminhava para uma decisão por pênaltis quando, do nada, o volante Andreas Pereira, jogador que havia feito uma partida consistente até então, comete uma falha inacreditável ao ser pressionado por Deyverson, que rouba a bola do adversário e corre sozinho em direção ao gol flamenguista para fazer o segundo gol do meu Palmeiras no jogo. Um evento totalmente inesperado, surgido do nada. O segundo gol que me fez ficar rouco de tanto gritar e, talvez, até assustar os vizinhos, muito provavelmente cruzeirenses e/ou atleticanos. O segundo gol que transformava Deyverson em “Deusverson” para nós, palmeirenses. O gol do nosso terceiro título da Libertadores.

Dali em diante, busquei tornar aquele evento singular, inesperado e supostamente efêmero em algo perene, eterno e imortal. Busquei acompanhar a todos os programas esportivos e os telejornais possíveis dos dias seguintes ao título para rever aqueles lances que resultaram naquelas epifanias, como um modo de conferir uma estabilidade e uma duração ao efêmero.

Nesse presente amplo, conforme analisado por Gumbrecht, o passado torna-se uma presença efetiva e simultânea. Imersos naqueles instantes, desejávamos que o Milagre de Lima jamais se encerrasse ou que o inesperado de Montevidéu se tornasse duradouro no tempo. Gostaríamos de permanecer perdidos naquela “intensidade focalizada”. Por isso, em várias madrugadas, nós, tanto o flamenguista, quanto o palmeirense, sempre recorremos às redes e ao seu imenso novo arquivo do passado, para rever aqueles momentos em que estivemos profundamente perdidos na já mencionada intensidade focalizada.

 

 

 


REFERÊNCIAS

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente. São Paulo: Unesp, 2014.

______. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Tradução: Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2010.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução: José Marcos Mariano de Macedo; revisão técnica, edição de texto, apresentação, glossário, correspondência vocabular e índice remissivo: Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 

 

 


Créditos na imagem: Autor da imagem: Elvis de Almeida Diana (elaborada na plataforma Canva).

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Elvis de Almeida Diana

Possui graduação em História (2013) e mestrado em História (2016) (Bolsista FAPESP) pela Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" (UNESP), campus de Franca. Tem experiência na área de História das Américas, atuando principalmente nos seguintes temas: História Política, História Intelectual, História dos Intelectuais, História do Uruguai. Foi membro do Grupo de Pesquisa "Intelectuais e Politica nas Américas) (IPA/UNESP-Franca). Atualmente, é doutorando na linha de pesquisa História e Culturas Políticas, do Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (bolsista CAPES), membro do Núcleo de Pesquisa em História das Américas (NUPHA-UFMG) e membro pesquisador do Grupo de Pesquisa História Intelectual: narrativas, práticas e circulação de ideias (UFMG/CNPq).

 

SOBRE O AUTOR

Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira

Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira é pós-doutorando em História pela Unb, mestre e doutor em História e cultura política Unesp/Franca. É professor do Cap/UFU e produtor de conteúdo na página do Instagram @marcusfsoliveira

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