Era o limiar da década de 1950, no interior do sul de Minas Gerais, e vovô, um pedreiro pobre casado com a filha de um fazendeiro da região, estava acabando de construir entre uma lida e outra, a casa onde ele criaria seu filho (meu pai) e depois eu. A referida morada era, nos dizeres dele, de “estilo americano”, riscada por arquiteto diplomado no Rio e moderna, com o que de melhor se tinha na época. Nas plantas originais, haveria quatro quartos e um jardim enfeitando à frente. Mas, por ironia do destino e economia de dinheiro e/ou a falta dele, a habitação perdeu dois de seus quartos e seu jardim tão ao gosto do nascente “American Way of Life” acabou por nunca dar o ar da graça.

Na residência bem ao lado, um velho casarão com assoalho de tábuas corridas e reboco de massa grossa, vivia uma senhorinha de óculos, que passava os dias a cozer e bordar, era a bisa Marfiza – mãe do pedreiro pobre e anfitriã de uma pensão. Lá havia o único aparelho televisor da vila, a qual, pela ocasião, ainda tinha chão de terra[1]. Naquela casa trocava-se fubá no moinho de pedra do quintal e ali vivia o Moisés da Bia, agregado negro da casa, criado da dona e provavelmente neto de escravos.  Foi na sala daquele local –  tão aos moldes do antiquado: com direito a cristaleira, retratos ovais no corredor e máquina Singer de costura, é que ela (a bisa) e Nélson (meu avô) vislumbraram, pela primeira vez, os planos do presidente JK para a sua Brasília: a nova Capital da República Federativa do Brasil. A bisa assistia também às novelas[2] e aos telecomerciais e se ria, indignada, de moças que ousavam aparecer em trajes de banho:

– “Veja as moças usando cuadôs, Nerso!” – dizia ela, comparando os trajes de banho à coadores de café.

Anedotas familiares a parte, eram ainda resquícios de “anos dourados” que iam ecoando do centro para as bordas, criando uma lenta e vagarosa ponte da Capital, ainda o Rio de Janeiro, com o interior do país. Pois “a modernidade, afinal de contas, chegava diferente, em proporções imensamente desiguais, mas atingia a todos” (SEVCENKO, p. 611)[3].

No rádio daquela pensão o que se ouvia era Bossa Nova, sem deixar, no entanto, de reverberarem também as modas de viola caipira, tão costumeiras no interior e do deleite de todos ali então residentes. Ressoava assim Cascatinha e Inhana ao lado do João Gilberto e de outros, cujos nomes não me disseram. Na sala, via-se, desta forma, Brasília nascendo e na cozinha um velho fogão à lenha, crepitando com toucinhos dependurados nas travas de madeira. Tal fornalha ardia em brasas desde às 5 da manhã – como ocorria nas fazendas já bicentenárias da região: mantenedoras de costumes idos, dos tempos imperiais.

Assim, enquanto as mocinhas da vila tentavam copiar aquilo que viam no televisor de Dona Marfiza: penteados, vestidos e saias (com volumes iguais ao do vestido de Odete Lara quando foi visitar Brasília em sua construção), meu avô queria era colocar sua casa nos ditames da moda. Foi quando contrariou a planta feita pelo arquiteto e trocou, por conta própria, as venezianas de madeira por vidraças que copiavam no aço de suas linhas os arcos do Palácio da Alvorada. Gesto banal e cotidiano, mas indicativo do Brasil moderno e futurista que se almejava  naquela época. As linhas de Niemeyer estariam assim na casa de meus avós, como sintomática de novos ares e no modo de ver de boa parte dos brasileiros: auspiciosos tempos.

Morando em Ouro Preto, anos depois de ter sido criado na casinha “americana  e modernista” construída por vovô, e vendo a exuberância das ondulações de conchas, anjos, retábulos e frutas tropicais em sintonia sacro-profana, é que percebi talvez o óbvio da beleza despida modernista. Foi inevitável ver o que essa dita arquitetura moderna brasileira fez: atualizar em sua sensualidade curva, o estilo mineiro de Barroco criado nas Minas de Ouro Preto do Aleijadinho e do mestre Manuel da Costa Ataíde. Barroco esse muito quisto e cantado como genuinamente nosso.

Arraigado está assim no “espírito moderno brasileiro” o arcaico de nossa formação de tempos de Antanho. Por isso, as linhas modernas de Niemeyer não impediram os velhos conluios familiares e uma revolução de costumes lenta e tardia – que só de fato começaria a aparecer lá em casa e questionar a tradição familiar, anos e anos depois, talvez apenas agora. Lá, continuou-se a se casar de véu e grinalda sob as bênçãos do padre e a se tirar o lucro das terras de herança: apesar da TV da bisa e do “Modernismo janelar” de meu avô.

 

 

 


NOTAS

[1]Informativo da Escola Estadual José Franco. Edição Especial. São Pedro de Caldas, 31 out. 1995. p. 3.

[2]Esther Hamburguer possui um texto que explora bem o papel das novelas no cotidiano da vida familiar brasileira. Ver: Diluindo Fronteiras: As Telenovelas no Cotidiano. In: Lilia Schwarcz. (Org.). História da Vida Privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 4, p. 439-488.

[3]SEVCENKO, N.. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: Nicolau Sevcenko. (Org.). História da Vida Privada no Brasil: da Belle èpoque à era do rádio. 3ed.São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 3, p. 513-619.

 

 

 

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