MONGA

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Eu perdi o medo da chuva. E perdi o medo da Monga. Mas, já teve época em que me borrava. Da chuva porque chove chuva e porque molhava meu amor. E porque inundava e porque eu muito aditivo me preocupava. E tinha raios, e trovões. E eu nem sabia serem chuvas de verão ou chuvas de mal tempo.

Medo da Monga eu tive muito. Eu, escrevendo isso, me divirto, e me rio, mas já chorei de espanto, terror e pânico.

Foi no Parquinho e Circo do palhaço Piolin, um artista circense modernista, que vivi a experiência de temer Monga.

Entramos eu, minha mãe e minha irmã numa tenda, cuja luz era fraca, onde havia um clima para meu olhar infantil já de cara assustador.

Meu pai não sei onde estava. Há horas que o pai da gente nos falta. E há momentos em que a gente não tem a mínima ideia de onde ele está.

Digo isso para fazer efeito de maior dramaticidade, para tornar o terrível pior.

Minha irmã que quis ver Monga. Minha mãe relutou até que vencida e convencida entrou conosco na tenda de Monga.

Aos poucos o lugar foi se enchendo de expectadores. Perto da porta um casal formado por um palhaço e uma mulher do tipo gostosa. Não sei se era loira. Minha memória ou minha invenção de memória diz que era loira.

Isso era final de anos 60, início de 70 no máximo.

Eu devia temer eram os anos de chumbo, não Monga, nem chuva. Mas, eu temia. E eu temia o que temia. Eu era um menino medroso.

O casal formado pelo palhaço e pela gostosa, suposta gostosa, namorava de modo escandaloso ao olhar de minha mãe que em gestos e expressões faciais os repreendia. Lembro-me dela comentar algo do tipo:

– Mas eles são muito salientes. Este não é ambiente para crianças, nem para mulheres casadas. E ainda mais com crianças?

Acho que ela dizia que ali não era ambiente para estarmos.

O palhaço beijava a loira. Ela se ria alto. Ele a abraçava. Ela dizia:

– Assim não, benzinho, aqui não.

Era uma encenação de namoro. Era uma simulação, hoje entendo. Era uma ação para nos distrair.

Eu estava apavorado demais com a iminência da Monga para ligar pra namoro de palhaço.

Ah, tinha um primo mais novo com a gente. Lembrei. Ele é crucial nesta história. Antecipo. Ele é chave para o sentimento de humilhação desta história.

A luz que já era em lusco-fusco, indireta e fraca, foi abaixando. Não me lembro se havia música incidental. Provavelmente, tinha.

Lembro-me bem que havia uma voz, uma locução. Era uma voz metálica, num microfone. Ela narrava a transformação, que começou com uma mulher, outra loira e do tipo gostosa, de biquíni, numa jaula. Jogo de luz e espelhos, hoje eu sei, a mulher começa a se transformar numa macaca, numa gorila. E a voz, para mim tocando o terror.

O ápice desse número, todos sabem qual é.

A voz diz que Monga, já em plena e completa transformação, ficara irrequieta, coisa própria de um animal enjaulado, ainda mais um animal, aos olhos de uma criança, selvagem.

Eu estava pio de que a mulher virara uma gorila raivosa.

E mais a voz diz:

– Ela conseguiu abrir a jaula.

A crônica acaba aqui. A partir deste momento, leitor prudente, você vai me encontrar correndo pelo Parque (e Circo) Piolin.

Não me lembro onde minha mãe, com minha irmã e meu primo mais novo, que à altura devia ter uns 4 anos, me encontrou. Lembro-me de minha irmã dizer que o primo nem sentiu medo. Ela e ele não sentiram medo.

Minha mãe, que já achara que aquilo não era lugar para estar com crianças, quis processar a administração do parque.

As risadas do palhaço libidinoso e da loira gostosa na entrada da tenda de Monga, na minha memória, são o detalhe sádico da coisa toda.

A humilhação nem preciso dizer qual foi. Se você me vir por aí eu devo estar correndo até hoje, ao menos aquele menino que fui.

Mas, eu perdi o medo da chuva. E perdi o medo da Monga. Medo eu tenho ainda é de que voltem aqueles anos em que este episódio aconteceu. Medo eu tenho é de que aquela ditadura, ainda que em forma de farsa, volte. Medo eu tenho é de que a Monga do autoritarismo rompa a jaula de vez, outra vez.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Monga- Arte Fora do Museu, Street Art

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

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