Receios sobre abordagens de canções… Meu receio se atém ao óbvio, música é som, canção é palavra cantada e texto é escrita. Uma se destina primeiramente aos ouvidos e o outro aos olhos. Ainda que tudo isso possa se misturar dentro da cabeça de cada um e, de fato, é o que acontece, uma frase escrita dificilmente, talvez apenas metaforicamente, pode expressar/traduzir uma frase musical cantada ou não. Bob Dylan deixou isso mais ou menos claro em texto sobre o prêmio Nobel de literatura que lhe foi dado. Basicamente, ele aborda a essa questão afirmando que suas músicas são feitas para serem escutadas e não lidas apenas as suas letras. Quase tudo na canção está na forma do que é dito, assim como na poesia, porém, esta última, em nossa cultura, é presa ao texto e à leitura a mais das vezes silenciosa, com exceções dignas de nota como as dos repentistas e poetas do Slam. Ao ouvirmos uma poesia declamada, entre os cordelistas ou como fazia magistralmente Antônio Abujamra, podemos perceber isso claramente. Isso o que? O jogo dos sentidos, significados e ênfases promovidos pela dramatização da palavra. A canção realiza essa simbiose entre som e palavra de maneira mais fundamental ao compor uma melodia singular, de modo que explorar apenas o sentido de um ou de outro, especialmente de maneira inadvertida, é incorrer, não apenas em erro, mas em injustiça e incompreensão. Porém, as artes dialogam entre si e é preciso escrever sobre todas elas e, sem dúvida, é com a crítica e com o diálogo que nossa compreensão se enriquece. E, afinal, não será a história de todas as artes, em grande medida, a história das críticas e apreciações variadas a respeito delas? Tal oposição, talvez, não passe de um falso problema. Feita a advertência, vou incorrer nesse negócio.

A canção “Nação” (1982), já pelo título instiga o pesquisador da cultura intelectual brasileira. Somos obcecados, neste país, pelas questões de identidade nacional, tema recorrente e que se renova desde a independência brasileira, para não mencionar gestos ainda anteriores. Tema que envolveu escritores, teóricos, historiadores, literatos, políticos, publicitários, romancistas, cancioneiros, cineastas, compositores, dramaturgos, humoristas, pintores, cordelistas, cientistas sociais, artistas plásticos… sem falar do senso comum, das vozes corriqueiras a dizer “o brasileiro é assim ou assado”.

E Aldir Blanc, juntamente com o poeta Paulo Emílio e João Bosco, nessa canção, mas não apenas nela, resolveu participar da trupe. Seu primeiro canto (refrão) sugere uma articulação tríade que será retomada ao longo da sintética composição: o compositor (na figura de Dorival Caymmi), as religiões afro-descendentes, na deusa rica Oxum e o cristianismo, no nome de Silas, parceiro intelectual do apóstolo Paulo em suas peregrinações de pregação. Por seu caráter sintético, ou seja, de expressão condensada, cada palavra é carregada de possibilidades interpretativas inesgotáveis. Geograficamente, Bahia-Brasil, África e Europa estabelecem o palco dos destinos. Temporalmente, viaja-se pelas épocas dos encontros/embates humanos nessas regiões. A frase final do primeiro canto traz a imagem do céu como firmamento sugerindo que a base do terreno está no celeste, que pode ser o divino ou o mero olhar para cima. O movimento do rio para a Bahia, além de imaginar as raízes cariocas incrustadas no estado baiano, especialmente das culturas afro-descendentes e particularmente do samba, lembra, também, frase recorrente nos estados de Pernambuco e da Bahia que brincam ser o oceano atlântico um rio que desagua nestas regiões, aludindo ainda ao movimento de pessoas vindas de África e Europa.

O segundo canto (estrofe 1) se inicia invocando o candomblé Jeje, de origem no reino do Daomé, e que veio ao Brasil com escravizados das regiões da África Central e Ocidental. Este reino é mencionado outras vezes nas composições de Aldir Blanc, como na canção “Coisa feita”, sendo componente recorrente do universo simbólico mobilizado pelo compositor. Esse canto primeiro retoma a tradição da nação rica e prenhe de maravilhas naturais, quando variadas visões da nacionalidade colocavam em primeiro plano a terra, a exuberância natural, os rios, o verde-amarelo, a riqueza mineral, tudo isso como o berço esplêndido, a floresta, as frondosas cachoeiras, labaredas e água, de Sete Quedas etc. Isso que ficou definido como o romantismo da identidade nacional brasileira. Também é a construção ufanista do nacional. Em consonância com tal universo de riqueza, a última frase desse canto evoca Oxumaré, orixá das riquezas, o próprio arco-íris – antes mencionado na canção-, representado por uma cobra de ferro e concretizando sua fertilidade no encontro sexual do homem e da mulher neste ambiente naturalmente profícuo.

O terceiro canto (estrofe 2) revisa tudo isso de maneira dramática. Jeje continua abrindo a canção, mas agora está amarrado, como as pessoas africanas negociadas e envolvidas na produção e comércio do mel proveniente da cana-de-açúcar e também do azeite de dendê. No universo dos trânsitos violentos deste passado, sente-se o mau-cheiro caracterizado pela falta de circulação de ar em um ambiente fechado, úmido e bolorento, tal como um navio negreiro ou uma senzala, expressões do odor da fera colonialista. Sob disparos de fogo contra populações indígenas, o Caramuru, cuja história é envolta em várias versões contraditórias, é nomeado por aqueles que lhe enfrentaram no primeiro momento da chegada dos portugueses. A figura bandeirantista de Anhanguera retoma a sanha de ocupação e colonização do espaço geográfico brasileiro, inclusive servindo de mote para a invenção de São Paulo, já no século XX, em seu projeto de se tonar estrela-guia da nação brasileira. Mas Jeje retorna, ainda pior. A composição encadeia, então, imagens de uma vida no lixo, dos pobres, na maioria negros, morrendo de tuberculose e doenças que causam vômitos de sangue na lama da miséria nacional. O Uirapuru, pássaro tratado em lendas e presente na tradição musical brasileira, fazendo as vezes de fênix brasileira, canta o azar e a dança macabra que encerra o último canto, ironicamente, nos dias atuais, com a clássica expressão do país da corrupção: o mar de lama.

Esse texto é uma tentativa de homenagear um grande intérprete do Brasil e, infelizmente fazendo às vezes de necrológio, incentivar estudos sobre a história da cultura intelectual brasileira. Apontamos na canção “Nação” alguns tópicos que dialogam diretamente com a tradição dos estudos em história do Brasil. Uma composição sintética, cuja espessura de sua linguagem poética, ou seja, esse manancial de significados possíveis, permite revisitações contínuas, mobilizando aspectos temporais, geográficos, culturais, religiosos, políticos e sociais. A “Nação” de Aldir Blanc não é uma consagração do Brasil grande, miscigenado e pacífico, os símbolos deste, elaborados de maneira mais consistente a partir do romantismo e consagrados em algumas perspectivas ao longo da República, são incorporados à canção para tornarem-se vômito sangrento de gente miserável. Lançada a canção quando a independência completava 160 anos, também não se trata de um épico da civilização europeia no Brasil. Pelo contrário, seu referencial simbólico é antes afro-brasileiro e indígena, apesar de escrito em português claro ou em brasileiro, como queria Mário de Andrade e Noel Rosa. Não se trata de samba-exaltação, mas também não é samba de protesto. Um ensaio poético musical lhe faria, talvez, mais justiça. Sua forma musical, aliás, é feita em tom maior (“alegre”), o ritmo é rápido e as frases melódicas (letra) são cadenciadas em um crescendo contínuo que, inclusive, completa sua performance no retorno ao primeiro canto. Talvez isso tenha mais a ver com aquilo que o poeta da Vila falava sobre o samba chorar de alegria e coisas assim. Esse é o tipo de descrição que parece encontrar os limites que eu mencionei no primeiro parágrafo. O melhor é sempre escutar mesmo e, depois, reler análises que procurem “descrever” o som. Assim, espero que esse texto, nesse dia triste, seja um meio para se refletir e aprender acerca dessa tal de identidade brasileira que é escrita, projetada, pintada, falada, dançada e cantada por gente de todos os tipos e sob todas as formas simbólicas.

 

Nação (Aldir Blanc, João Bosco e Paulo Emílio)

 

Dorival caymmi falou prá oxum

Com silas tô em boa companhia

O céu abraça a terra, deságua o rio na Bahia

 

Jeje minha sede é dos rios

A minha cor é o arco-íris, minha fome é tanta

Planta flor irmã da bandeira

A minha sina é verde-amarela feito a bananeira

Ouro cobre o espelho esmeralda

No berço esplêndido

A floresta em calda manjedoura d’alma

Labarágua, sete queda em chama

Cobra de ferro, oxum-maré, homem e mulher na cama

 

Jeje tuas asas de pomba

Presas nas costas com mel e dendê aguentam por um fio

Sofrem o bafio da fera

O bombardeio de caramuru, a sanha de Anhanguera

Jeje tua boca do lixo, escarra o sangue

De outra hemoptise no canal do mangue

O uirapuru das cinzas chama

Rebenta a louça oxum-maré

Dança em teu mar de lama

 

Link para escutar:

https://www.youtube.com/watch?v=a7saCeQtujI

 

 

 


Créditos na imagem: Aldir Blanc. Divulgação.

 

 

 

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