Quando o povo escreveu – Querido Lula, um livro-acontecimento

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“Mãe sempre esteva ausente à mesa, sempre privou-se de sentar à mesa em nossas refeições; aquela cena era sagrada: fazer o prato de cada um de nós e ficar ali atenta a todos, nos servia sem nunca reclamar. Ao final todos saíam, era hora dela sentar a cabeceira que dava acesso a cozinha e comia (se tivesse sobrado). Se não ela colocava café fervente em um prato fundo (de sopa) jogava farinha, aquilo virava uma espécie de pirão (essa lembrança é a que mais me angustia quando lembro de toda privação e renúncia que mãe sem nada nunca reclamar fazia por nós) […]. Associo o teu cárcere político a sublime ‘ausência de mãe à mesa’ porque sinto sua paciência, tua sabedoria em aceitar sem odiar os teus algozes da mesma forma que mãe renunciava o direito de se alimentar sem desespero ou revolta.”
Natal, 8 de janeiro de 2019
Lucas

 

Em 13 de julho de 2017, data da aprovação da Reforma Trabalhista, fui atravessada por uma tristeza imensa que se transformou numa urgência de relatar por que aquele episódio fazia sofrer tanto a filha de um operário preto que aprendeu com o pai a respeitar quem trabalha e aos seus direitos. No meio do texto, Lula se tornava central à minha vida de um modo muito natural, como até então eu mesma nunca havia percebido. Pela mediação generosa de Eduardo Suplicy e para minha felicidade, essa primeira carta chegou às mãos do presidente.

Em 09 de abril de 2018, dois dias após a prisão de Lula, a urgência de escrever para ele apareceu novamente. Mas ela não atravessou somente a mim. Escrever para Lula diante da injustiça de seu cárcere tornou-se uma necessidade coletiva, que resultou em mais de vinte e cinco mil cartas acolhidas pelo Instituto Lula e por pesquisadoras e pesquisadores convencidos de que pulsava ali uma força histórica singular. Entre essas inúmeras cartas, quarenta e seis delas compõem o livro Querido Lula – Cartas a um presidente na prisão (Boitempo, 2022), organizado por Maud Chirio com a colaboração de Adriana Setemy, Ana Lagüéns, Angela Moreira, Benito Schmidt, Ernesto Bohoslavsky e Luciana Heymann. Prefácio de Emicida e orelha de Conceição Evaristo.

Em 31 de maio de 2022, o livro foi lançado em um espetáculo dirigido por Marcio Abreu e Thomas Quillardet no Teatro Tuca na PUC de São Paulo. Artistas, políticos e pessoas comuns, como eu, liam algumas das cartas ao presidente, o que resultou numa noite na qual os afetos de gratidão, respeito, esperança e amor à vida política de Lula transbordaram. Apesar da tamanha alegria que senti ao poder finalmente abraçar Lula e dizer apenas o “muito obrigada!” que minha voz embargada pelo choro permitiu, eu saí de lá ainda surpresa e estranhando como a minha vida e a de meu pai foram parar naquele palco.

No retorno para Belo Horizonte, durante as nove horas de viagem no ônibus realizei a leitura do livro. Foi após conhecer todas as cartas nele reunidas que percebi a dimensão da urgência que as constituem. Devo, portanto, destacar que neste ensaio, escrevo sobre este livro numa dupla posição – a de uma das protagonistas dessa escrita e também como historiadora, cuja maior parte da formação foi dedicada ao estudo das escritas das histórias do Brasil.

Talvez essa dupla-posição que anula a distância entre o historiador e a fonte soe estranho para quem compartilha uma perspectiva histórica mais convencional. No entanto, ela também parece ser uma condição para uma ruptura efetiva com estruturas historiográficas mais conservadoras. E por isso destaco um dos elementos do livro que mais me chamaram atenção: a forte presença de jovens historiadoras e historiadores oriundos de classes populares que estão entre as autoras e autores das cartas. Esse episódio nos sugere que fazer história no nosso tempo passa também por um convite para escrever sobre cada um de nós, acolhendo a sutileza de nossas trajetórias singulares, comuns e cotidianas.

Também não passará despercebido a um leitor atento que à medida que lemos as cartas vamos nos apaixonando por cada uma daquelas vidas. Somos tocados por cada relato tão único, por cada pai, mãe, irmão, avô e avó… Mas apesar da singularidade de cada narrativa, surpreende-nos que aquele pai, aquela mãe… poderiam também ser um dos nossos. Surpreende-nos, portanto, o enlace entre cada experiência e escrita, entre uma dimensão mais existencial e mais social. A esse encontro chamamos história. E com base na leitura não tenho dúvida: podemos e precisamos dizer que a história do Brasil se moveu.

Por isso não é ocasional que os missivistas estejam tão atentos e interessados na história que assume ali também protagonismo. É muito presente a frase “estou do lado certo da história”. Como historiadora, interessa-me entender o que isso concretamente significa. São as próprias cartas que ajudam a compreender. “O lado certo da história” nos fala de uma trama, de uma relação íntima entre a história e a justiça. Neste caso, a justiça social e também uma justiça em relação a cada um, a cada um e a seus passados. Dessa percepção traduzida pela sensação de “estar do lado certo da história”, nasce uma tranquilidade que demorei a conquistar: a tranquilidade de pertencer ao mundo dos vencidos. O entendimento de que ao não herdarmos os privilégios sob os quais se assentam os vencedores, dispomo-nos numa práxis de resistência permanente, da qual não podemos nos cansar. Essa é a energia que brota do livro.

Walter Benjamin nas Teses sobre o conceito de história diz que o desgaste e a ruptura com as estruturas opressoras exige uma acolhida daqueles que são historicamente violentados. A esse gesto ele denomina escovar a história a contrapelo.[1] Após o espetáculo e a leitura do livro percebo mais radicalmente que essa história só se pode efetivamente realizar quando os vencidos, mais do que objetos de estudo da história, mais do que fontes, tornam-se os autores de suas próprias vidas. Ganham o direito de escrevê-las, compartilhá-las e torná-las públicas.

Desse direito, nasceu um livro-acontecimento porque a narrativa é determinada pelos afetos que aparecem junto à coragem de narrar as experiências singulares dignificadas pela atuação política de Lula. Desse processo de valorização de uma escrita afetivo-existencial, abre-se a possibilidade do que Marcelo Rangel chama de uma relação terna com o passado.[2] Isto é, quando as dores – mediadas pelos afetos e pelo cuidado – transformam-se e tornam possível a constituição de mundos novos nos quais sonhos e esperanças ganham lugar e concretude. Chamo de um livro-acontecimento, portanto, porque ele se abre, no sentido que Nietzsche nos convidou, para realizar uma história que se ponha a serviço da vida.[3]

Por isso, estou convencida, como uma historiadora da historiografia brasileira e da teoria da história, que Querido Lula é um livro cuja força é revolucionária para cada uma, cada um de nós e, também, para a história do Brasil e para a escrita da história do Brasil. Talvez seja o livro inaugural de uma historiografia popular do Brasil, na qual o povo é protagonista da sua própria vida e da forma de narrá-la. Afinal, foi quando o povo escreveu, massivamente, pela primeira vez. Mesmo analfabetos e semianalfabetos escreveram. Escreveram sua solidariedade, suas conquistas, medos, desejos, motivos para agradecer e festejar, as razões para chorar e se indignar. Os pequenos e grandes sonhos. As desilusões e a confiança no futuro. Abracei o livro em muitos desses momentos quando, por exemplo, Dalvina diz “queria saber escrever bonito para você Lula, mais eu fis o meu melhor.” Sim, ela e tantos mais fizeram o melhor. Revelaram uma delicadeza poética que só ao escrever a vida podemos descobrir, dando ao Brasil, portanto, uma dignidade que a escrita de si pode nos oferecer e da qual a história deve se servir.

Em minha carta de 09 de abril de 2018 eu escrevi ao Lula dizendo “o senhor é mais que uma ideia. O senhor é uma força, uma energia, uma presença. É a condição que permite as ideias emergirem, o senhor, querido presidente, é a própria história. E eu sou grata por você ser (e ter aceito ser) este destino por meio do qual muitos como eu puderam existir”. Continuo concordando com o que disse, mas acrescentaria que Lula não foi o destino final dessas cartas, mas certo caminho pelo qual essas vidas puderam se descobrir, se escrever e, assim, narrar um Brasil até então anônimo.

 

 

 


Notas

[1] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In.: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Trad. Jeanne-MarieGagnebin e Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

[2] RANGEL, Marcelo de Mello. Da ternura com o passado: história e pensamento histórico na filosofia contemporânea.  Rio de Janeiro: Via Verita, 2019.

[3]NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará 2003.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Instituto Lula.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Thamara Rodrigues

Professora do curso de História da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutora em História pela UFOP. Foi pesquisadora visitante no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Stanford (2014/2017-2018). Coordena o Grupo de Pesquisa Temporalidades e Histórias Populares (UEMG/CNPq). Possui experiência nas áreas de Teoria da História, História da Historiografia Brasileira, História Pública e História do Brasil Imperial e Contemporâneo. Também possui interesse pelo estudo das Humanidades, Artes e Cultura popular.

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