Os agentes da destruição forjam continuamente um mundo político restritivo. A consciência desses agentes, a sua narrativa e os seus empreendimentos tecem uma cena contemporânea marcada pelo desejo de dilacerar a presença dos “outros”. Eles, “os outros” são continuamente enfraquecidos nesse projeto de poder ávido pela centralidade e pela monologia.
Esse destino forjado gerencia os espaços no circuito do centro e da margem e tenta retroalimentar uma experiência de alteridade que não permite a voz do outro, pois ele não pode ser visto como um sujeito que anuncia o mundo, que desarticula esse lugar supostamente cristalizado do sujeito norma e das estruturas de violação que ele sustenta.
Esse sujeito norma e os valores manchados de sangue que ele deseja preservar, como demonstramos no livro Inflexões éticas, impetram um poder que não quer apenas silenciar os outros sujeitos, mas impedir todas as suas manifestações.
Os agentes de destruição não querem simplesmente o silêncio dos outros sujeitos, eles desejam implementar o seu “poder de afonia” (2019, p. 62) e alocar os que denotam diferenças no lugar da inexpressividade radical. Nesse tipo tacanho de gestão, nós percebemos um profundo desapreço pelo diálogo, isto é, se o silêncio dos outros sujeitos pode e deve ser quebrado, as forças de afonia — em suas múltiplas ferramentas —, desqualificam a vida e os marcadores de diferença que ampliam o quadro do que pode ser reconhecido como vivível. Esse projeto de gestão, ancorado na ruína do que se manifesta enquanto diferente, tenciona impedir a presença desses sujeitos, ao borrar três importantes lugares de compreensão: a epistemologia, a estética e a ética.
A tentativa de cristalizar as possibilidades de enunciar, descrever e pensar a realidade incorre em processos refinados de epistemicídio, isto é, a invalidação sistemática e refinada de outras formas de compreensão do que nos cerca. Sueli Carneiro infere, no texto A construção do outro como não ser-como fundamento de ser, ao tratar da disputa desleal promovida pelo racismo na gestão dos saberes, que o epistemicídio se estrutura na “negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento”. Trata-se, nesse sentido, de desautorizar conhecimentos, perspectivas e cosmovisões que colocam em risco as visões suspostamente hegemônicas de mundo. Uma tentativa infame de deslegitimar múltiplos saberes, uma vez que sua presença perturba a “ordem” genocida.
A estética, por vezes, serve aos projetos de poder que desempenham técnicas de aniquilação. A destituição da diferença, retrato de uma memória imagética colonial, faz com que percebamos uma figuração de mundo pautada no que Achille Mbembe chama, na Crítica da razão negra, de “alteridade radical”, isto é, uma presença lançada para fora do campo de reconhecimento. Esse lançamento incorre numa relativização aguda de sua morte — simbólica e objetiva.
As construções imagéticas que tolhem a presença desses sujeitos marcados como dissidentes reafirmam a lógica do necropoder, ou seja, uma composição política que se deleita da morte pré-anunciada dos que são desapossados de subjetividade, os inimigos absolutos. Os outros sujeitos, tornados inimigos irrecuperáveis pela métrica estética da morte, são desapropriados de qualquer autoafirmação e são submetidos aos quadros referenciais tecidos — alinhavados com o seu sangue — dos que se apresentam como a medida perfeita da existência humana.
Implementar a ausência das existências é perverso. Ainda orientados por Sueli Carneiro, em Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil, identificamos uma estratégia refinada de manutenção dos estereótipos, ausências e homogeneidade de corpos, afetos, crenças e narrativas. Ao inviabilizar, por exemplo, a multiplicidade de pessoas pretas, a mídia se detém em “imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os racialmente hegemônicos o privilégio de ser representados em sua diversidade.”
O necropoder se manifesta na ausência de complexidade referida na imagem que reduz a vida e a possibilidade de pessoas pretas. Ao mesmo tempo, essa imagem destrutiva pode ser mais radical e não recorrer ao “perigo do negro único”, como nos alerta Djamila Ribeiro, mas impossibilitar qualquer presença enunciada que destoe dos corpos publicizados, a partir da suposta hegemonia. Estamos, assim, diante de um processo duplo de aniquilamento: a presença única que compõe deliberadamente a objetifivação e a ausência, estéril e silenciosa, que normatiza a inexpressividade, e a morte dos sujeitos lidos como dissidentes.
No território da alteridade radical, os valores não são direcionados ao bem comum, pois eles distorcem, sob o controle dos sujeitos que se leem como legítimos, o que é, de fato, comum. Esses agentes da destruição borram princípios como alteridade, liberdade e possibilidade. Sua manipulação é perceptível quando ficamos face a face com as incongruências dos seus discursos que bradam pela vida, mas ventilam os porões da história, manchados de sangue e dor. A norma é sorrateiramente constituída pelo terror e pelo extermínio, simbólico ou não, dos que existem e desejam existir longe desses enquadramentos restringentes.
É preciso ter clareza de que nesse lugar não há amor, não há vida ou reconhecimento. No espaço onde se impedem os outros sujeitos de se manifestar circulam os ventos coloniais de subjugamento e objetificação. É preciso que deixemos claro que o solo do ódio é infértil.
REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não ser-como fundamento de ser. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 339. 2005.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade o Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 Edições, 2019.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das letras, 2019.
TEIXEIRA, Thiago. Inflexões éticas. Belo Horizonte: Editora Senso, 2019.
Créditos na imagem: ilustração de Willian Santiago.
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