Neoliberalismo e depressão

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A despeito das promessas de redenção via inserção no mercado de trabalho e consumo prometidas pelo capitalismo, temos visto em nossa contemporaneidade a falência reiterada dessas utopias emancipatórias. A eleição de personalidades como Donald Trump e Jair Bolsonaro passa necessariamente pelo desejo de muitos dos seus eleitores em manterem intacta tais aspirações, cada vez mais fraturadas em um contexto de pandemia. Nesse sentido, vejo que a adesão a ideais políticos de extrema direita, em flerte deliberado com os repertórios fascistas, implica na negação da complexidade da vida em sociedade, artifício necessário perante a demanda de reafirmação de uma realidade interior confortável às utopias individualistas salvacionistas, não compatível com a angústia inerente à relação com a diferença. Desse modo, torna-se inescapável a reflexão a respeito do luto da plena presença, da pretensa completude esperada pelos indivíduos subjacente ao discurso neoliberal, e a elaboração das ausências e vulnerabilidades inerentes ao compartilhamento da vida em sociedade.

Dominick LaCapra chama a atenção para a necessidade de elaboração da angústia da ausência diante das experiências traumáticas da contemporaneidade, destacando que a sua identificação com uma perda provocada pelo “outro” é um convite para a emergência de “cenários sacrificiais ou de bode expiatórios”, no qual se cria a expectativa do retorno da “unidade original, completude e segurança” arruinadas. Partindo do pressuposto salvacionista de que a angústia dever ser eliminada, “qualquer cura seria enganosa” (LACAPRA 2014, p. 58). Nesse sentido, o autor escreve:

 

Reconhecer e afirmar, ou elaborar, a ausência como ausência requere o reconhecimento da natureza duvidosa das soluções definitivas e a angústia necessária que não pode ser eliminada do eu ou projetada nos outros. Também pode abrir possibilidades empoderadas na elaboração necessariamente limitada, não totalizante e não redentora de instituições e práticas na criação de uma vida mais desejável, talvez significativamente diferente, embora imperfeita ou totalmente unificada no aqui e agora. A ausência é nesse sentido inerentemente ambivalente, produz tanto angústia, quanto empoderamento ou mesmo êxtase. Também é ambivalente em sua relação com a presença, que nunca é completa ou perdida em sua plenitude, mas em um uma relação complexa, mutuamente marcando a interação com a ausência (LACAPRA 2014, p. 58).

 

A sedimentação avassaladora dos ideais de extrema direita e a grande legitimidade desfrutada pelo neoliberalismo em meio a amplos setores sociais parece estar afinada com a atitude dos indivíduos que procuram aplacar os seus sofrimentos, ausências e vulnerabilidades com medicações. A indústria farmacêutica atua no sentido de adaptar os indivíduos à demanda do mercado de trabalho e à lógica do consumismo (KEHL 2009; GÓES 2012; ROTH 2016). Por mais que contemporaneamente falar sobre depressão publicamente em termos teóricos e genéricos não seja propriamente um tabu, viver em um ritmo não acelerado apresenta-se como uma impossibilidade perante as exigências reais de assertividade predatória nos campos de batalha do mundo neoliberal. Assim sendo, a demanda prática por produção, consumo e adaptação decreta a vitória da reprodução social de um tempo histórico que reproduz a sensação da impossibilidade de mudança (ARANTES 2014; ARAUJO & PEREIRA 2019; TURIN 2019).

Em tempos nos quais se torna premente o enfrentamento das violências simbólicas e reais reproduzidas pelo neoliberalismo, parece improdutivo afirmar a importância da incompletude, do reconhecimento das ausências e acolhimento da vulnerabilidade como contraponto ao entendimento de que o sujeito deve ser pleno, resiliente e capaz de adaptação ao sistema. Entretanto, vejo como uma atitude auto sabotadora assumir como destino enfrentar as tiranias do neoliberalismo a partir da lógica da rendição incondicional às suas exigências mais predatórias. Dessa maneira, mais do que nunca, a luta antissistema torna imprescindível a poética da ausência, da vulnerabilidade e incompletude dos sujeitos, que a meu ver, pode ser decisiva para o fortalecimento e legitimação das humanidades em suas batalhas contra o pragmatismo e o imediatismo neoliberal.

A possibilidade de elaborar e compartilhar desejos que sejam capazes de redinamizar formas de experiência da historicidade pressupõe o diagnóstico de que o sistema é doente e se reproduz a partir da adaptação de indivíduos doentes. Como Clara de Góes afirma a partir do diálogo entre história e psicanálise, ao associar a formulação da mais-valia por Marx com o mais-de-gozar de Lacan, “[n]o capitalismo, o gozo é posto a serviço de si mesmo, em uma espécie de autofagia incessante” (GÓES 2008, p. 178). A glorificação narcísica do gozo, sem nenhum estabelecimento de limites, é decisiva para a perpetuação “de um modo de produção cujo objetivo é produzir a morte em larga escala” (GÓES 2008, p. 183).

Acolher a própria vulnerabilidade e estar aberto para a incompletude do outro implica na busca por estratégias de legitimar a vigência e a elaboração de outras formas de temporalidade histórica e performances que não sejam assimiláveis à lógica da aceleração neoliberal. Aceleração que, como podemos constatar, não se mostra apta a abrir possibilidades de futuro receptivas à alteridade, ao replicar a demanda pela reprodução de exclusões sociais, preconceitos de gênero, raça, classe e a destruição ambiental em escala global.

Desse modo, a luta contra a expansão da extrema direita e do neoliberalismo, que, ao invés de promover o tão aclamado “livre mercado”, saqueia e privatiza o Estado para o usufruto exclusivo das grandes corporações (GONZALBO 2015), demanda o enfrentamento da demonização das depressões, da própria possibilidade de enunciação da vulnerabilidade e incompletude dos sujeitos, visto que é a partir da inadaptação a um sistema reprodutor de crimes e exclusões que seremos capazes de imaginar e redirecionar os nossos desejos para a criação de um mundo no qual a busca por justiça e reparação tenha dignidade. Em contraposição, a redução do desejo à conformidade, à reprodução do mesmo, à busca da presença plena, ou do gozo sem limites, induzida pela medicação ou pela aspiração conservadora alienante de retorno ao que nunca foi, implica na anulação da possibilidade de intervenções criativas capazes de articular novas formas de experiência da historicidade.

O que está em questão não é uma romantização da depressão, que se assemelha com a melancolia concebida como o impulso criativo de muitos literatos e artistas (KEHL 2009; RANGEL 2011, 2019; RAMOS 2018, 2019), anteriormente à redução do conceito ao mundo privado por Freud (FREUD [1917] 2011), ou mesmo a negação da necessidade de se fazer o uso de medicação para o tratamento de diagnósticos depressivos. O meu ponto é reforçar que a depender das demandas da indústria farmacêutica ou das exigências mercadológicas que reproduz de forma ultra acelerada a precarização, seremos vítimas da inexorabilidade da adaptação alopática a uma realidade incapaz de acolher a vulnerabilidade, a incompletude, a alteridade e a emergência de futuros.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. Boi Tempo: São Paulo, 2014.

ARAUJO, Valdei & PEREIRA, Mateus. Atualismo 1.0: Como a ideia de atualização mudou o século XXI. 2º Edição. Mariana, MG: Editora SBTHH/Vitória: Milfontes, 2019.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Tradução: Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

GOÉS, Clara de. História e Psicanálise: a construção da realidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.

GÓES, Clara. Psicanálise e Capitalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.

GONZALBO, Fernando Escalante. Historia mínima del neoliberalismo. México: El Coegio del México, 2015.

KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boi Tempo, 2009.

LACAPRA, Dominick. Writing History, writing trauma. Baltimore: John Hopkins University Press, 2014.

RAMOS, André da Silva. Machado de Assis e a experiência da história: climas e espectralidade. 2018. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2018.

RAMOS, André da Silva. Robert Southey e a experiência da história: conceitos, linguagens, narrativas e metáforas cosmopolitas. 1. ed. Vitória/Mariana: Milfontes/SBTHH, 2019.

RANGEL, Marcelo. Da ternura com o passado: História e pensamento histórico na filosofia contemporânea. Rio de Janeiro: Via Verita, 2019.

RANGEL, Marcelo. Poesia, história e economia política nos Suspiros Poéticos e Saudades e na Revista Niterói. 2011. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura – Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2011.

ROTH, Michael. Psychoanalysis and History, Psychoanalytic Psychology, v. 33, 2016, pp. 19-33

TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. 1. ed. Dansk: Zazie Edições, 2019.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Disponível em: https://blogplasma.wordpress.com/2019/10/25/no-era-depresion-era-capitalismo-notas-desde-la-crisis-en-chile/

 

 

 

SOBRE O AUTOR

André da Silva Ramos

Professor de Teoria da História e História da Historiografia da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Doutor em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Realizou estágios de pesquisa na Universidade de Lisboa, na Stanford University e na Wesleyan University. Teve pesquisas financiadas pela Capes, Cátedra Jaime Cortesão (USP) e Fulbright. É autor do livro "Robert Southey e a experiência da história: conceitos, linguagens, narrativas e metáforas cosmopolitas" (2019), publicado pela parceria editorial entre a Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH) e a editora Milfontes.

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