A situação vivida pelo momento de transição na seara da educação no Brasil é consequência (em sentido pluricausal), de uma maneira ou de outra, do projeto ultra-neoliberal de extrema direita posto em execução nos últimos anos. Os pronunciamentos, os gestos, as atitudes, os (anti)projetos são por todos conhecidos, e até legitimados socialmente por setores importantes do nosso país, em que se orquestra um conjunto sinistro de forças movimentadoras da barbárie, do negacionismo e de um obscurantismo tornado modus operandi. Não se apresenta como uma surpresa, acompanhando os momentos finais dessa distopia, que a educação, novamente, fosse golpeada, na medida em que a entendemos como um movimento social (e existencial) que se orienta pelo pensar crítico, algo que, certamente, não passa pelos horizontes do bolsonarismo, afeito à (auto)crítica, bem como mantenedor da pós-verdade como horizonte das suas ações.

As últimas ações presentes no apagar das luzes desse (des)governo só evidenciam algo que passou a fazer parte do cotidiano das comunidades educadoras brasileiras, talvez, agora, com algum requinte de crueldade à moda “guedista”. Nessa quadra do bolsonarismo como projeto político oficial, o que não significa que enquanto ethos já existisse e que continue existindo, o que se viu foi o ensino básico tratado como negócio e como mercadoria compassado com o esvaziamento de financiamentos junto às universidades sob os mais variados ângulos conjugando-se com um “olavismo ideológico” que estigmatiza as mesmas ante a sociedade (deturpação com fake News com má fé) como lugares de balbúrdia e de alienação de esquerda, em que o progressismo (transvalorativo) dos costumes se apresentaria como um risco às tradicionais (majoritárias) formas de organização da vida ordinária brasileira (famosos cidadãos de bem). Que se registre, até em certo tom de acerto de contas, que a (falta de…) educação bolsonarista orientou-se pelo cerceamento da liberdade de expressão (ou pela inversão da sua lógica de maneira cínica), pela perseguição ao pensamento autonômico, direcionando-se para um projeto (real) de destruição da educação pública do país, que se quer gratuita e de qualidade, o que dificultou, certamente, a mobilização e a organização desse setor, que historicamente posicionou-se, como não poderia deixar de ser, em modo de enfrentamento à regimes (de exceção) dessa natureza.

O ultraneoliberalismo à moda Guedes em compasso com o radicalismo reacionário do bolsonarismo político (e sociocultural) não abre margem para direcionamentos (conceituais e práticos) diferentes, na medida em que a sua própria condição de existência é uma espécie de guerra (as metáforas bélicas organizam o bolsonarismo estruturalmente) à educação percebida enquanto eixo de libertação dos agentes sociais e de caminho para a formação de sujeitos mais humanizados. O que parece, em todo caso, é que essa mistura nefasta entre ultraneoliberalismo guedista (mercado) e radicalismo reacionário bolsonarista (costumes) criou o fenômeno do epistenocídio: a morte coletiva, e planejada, do pensamento. Se dizer é fazer, basta que relembremos um tweet do ex-presidente, ainda em 2019, onde já estavam prefigurados (e em ação) os movimentos direcionados ao sucateamento da educação brasileira: “É natural (que haja protesto), mas a maioria ali é militante. Se você perguntar a fórmula da água, não sabe (…). São uns idiotas úteis, uns imbecis, que estão sendo como massa de manobra”. Em 2020, já no período da pandemia da COVID-19, onde a organização sindical dos educadores e das educadoras se fazia mais do que necessária uma nova evidência da forma como a (des)mobilização apresentou-se como projeto político:

 

Pessoal deve saber como que é composto a ideologia dos sindicatos dos professores pelo Brasil quase todo. É um pessoal de esquerda radical. Para eles tá bom ficar em casa, por dois motivos: primeiro eles ficam em casa e não trabalham, por outro colabora que a garotada não aprenda mais coisas, não volte a se instruir (BOLSONARO, 2020)

 

Esse enredo pode ser recobrado desde o primeiro ano de governo bolsonarista, em que já se presenciava a fusão nefasta entre bolsonarismo dos costumes e guedismo econômico. Thaís Oyama acertadamente salienta que o professor (quê?) de Bolsonaro não é nem tanto Olavo de Carvalho, mas Paulo Guedes, para quem tem uma “inaudita paciência”. O Guedes (des)educador empenha-se na formação (pasmem!) de Bolsonaro o transformando em um defensor aberto das privatizações em larga escala, o que implica não apenas um movimento institucional, mas mesmo na forma de lidar com o capital humano (2020, p. 140). A reunião do Plano Pró-Brasil aparece, ainda em 2020, como um ambiente cênico (patético!) interessante para que compreendamos os métodos “guedistas”. De início já ironiza Damares Alves, uma bolsonarista de proa e de Igreja, sobre a sua preocupação com o que chama de “brasileirinhos desprotegidos” ante a liberação de cassinos no Brasil, o que deixa Bolsonaro mais do que satisfeito. De fato, acompanhando as falas, esse sujeito aparece como um ideólogo do ultra-reacionarismo-liberalizante, como no momento em que interpõe, professoralmente (sic), a fala do ex-ministro da educação Arthur Weintraun sobre os “princípios” e os “valores” da agenda bolsonarista. Segue a sua indigesta preleção:

 

Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, […] sua evocação é que realmente nós estamos todos aqui por esses valores. Nós tamos aqui por esses valores. Nós não podemos nos esquecer disso (PAULO GUEDES apud CÁSSIO & FILHO, 2020, p. 5)

 

Categoricamente o ex-ministro havia se posicionado em sua fala na reunião sobre a suposta perda da liberdade das direitas no Brasil: “O povo tá querendo ver o que me trouxe até aqui. Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF. (Arthur Weintraub apud CÁSSIO; FILHO, 2020, p. 6). Arthur Weintraub, em posição (des)educativa, como de costume, também chega repudiar o “partido comunista”, panaceia para os males culturais, sociais e econômicos da pátria, além de referendar a sua aversão às minorias: “o termo ‘povos indígenas’ […] ‘povo cigano’” (Arthur Weintraub apud CÁSSIO; FILHO, 2020, p. 6). Defendendo, então, a impoluta política bolsonarista, os grandes problemas nacionais seriam, não outros, as intrigas palacianas. Diante do espetáculo de horrores o considerado “superministro” acerta todos os ponteiros e todas as pontas desafinadas: “Nós tamos aqui por esses valores” (Paulo Guedes apud CÁSSIO; FILHO, 2020, p. 6). E metonimicamente o dito “superministro” parecia ter projetos educacionais em sua manga: é de sua lavra, na reunião do dito Plano Pró-Brasil, que o fossem “absorvidos” cerca de um milhão de jovens aprendizes em quartéis do exército para darem continuidade as obras infraestruturais do país que estariam paradas. Algo que diz muito sobre o seu pensamento, e o que estamos assistindo nesses momentos de desfecho distópico. Fernando Cássio e Marco Filho (2020, p. 6) fizeram a “análise” econômica da proposta educacional de Guedes, uma representação do seu pensar em ação: “Segundo os cálculos do ministro, tamanho contingente, trabalhando durante dez meses a 300 reais por mês, resolveria em pouco tempo o problema da infraestrutura diagnosticado por seus pares “desenvolvimentistas”, e a um custo módico de três bilhões de reais”.

O parecer “técnico” do ministro lastreia a perspicaz análise dos articulistas: “Faz ginástica, canta o hino, bate continência. De tarde, aprende a ser um cidadão, pô! Aprende a ser um cidadão. Disciplina, usar o tempo construtivamente, pô!”. Segundo ele, em uma visão de economia global: “A Alemanha fez isso na reconstrução” (Paulo Guedes apud CÁSSIO; FILHO, p. 6)

A cena muito bem recriada pelos professores Fernando Cassio e Marco Filho, aqui posta no modo metonímico, e com durabilidade pluriversal dentro da temporalidade bolsonarista oficial, tem como intuito colocar em relevo todas as ameaças e todos os ataques sofridos pela educação nos últimos anos, que nesse dezembro de 2022, como um golpe frontal, vingativo e escarnecedor congela (expropria?) as bolsas de estudos dos(as) estudantes brasileiros cedidas pela Capes, limitando a pesquisa e a vida prática dessas pessoas que se dedicam exclusivamente a uma seara, no Brasil sob a mira de Bolsonaro, que se mostra, pois, inglória. Os cortes de verbas atingem todos os setores, inclusive administrativamente. O contingenciamento, ou a sua ameaça, aparece sob as vestes da mordaça ideológica, como se vê (isso em longa duração, mas intensificado atualmente) por meio do descrédito para com as ciências humanas e sociais face a um saber tido como mais utilitário (acompanhando a lógica em curso). A preocupação não está direcionada para sujeitos pensantes, críticos, humanizados e capazes de revoluções sensíveis junto ao tecido social, mas apenas para a formação, a baixo custo, de profissionais moldados para um (hiper)alienante (lucrativo) mundo do trabalho em que os direitos sociais estão à disposição, sem defesa, da voragem ultraneoliberal (GAMBA, 2019). O nome disso, valendo-se de outras categorias, não é outra coisa do que austeridade econômica cínica e negação da política, em seu sentido de diálogo propositivo (e aberto) para o bem comum.

Ao que parece durante os anos de bolsonarismo oficial os cortes e os contingenciamentos, para além da mordaça do pensamento, serviam como moeda de troca e de chantagem (ROSSI, 2019). Mas no caso recente da Capes parece vingança, e a sinalização de que a destruição da educação brasileira é, de fato, um projeto em curso mesmo. Se faz necessário, então, todo um enfrentamento, desde esse momento de transição, e de confrontação a esse projeto-monstro conjugador de guedismo e de bolsonarismo (em muitos pontos confundidos e justapostos). Os setores públicos, as organizações civis de toda a natureza, a partir de um pacto democrático-cidadão-ativo, necessitam tomar parte urgentemente nessas discussões, sendo os episódios mais recentes desfechos de um projeto de longa data. É a luta contra o epistenocídio, a expropriação da capacidade de criticar e de transformar a realidade circundante soberanamente, posto que é um processo até subjetivo de mercantilização do mundo humano, a retirada dos direitos sociais, extinguindo conquistas verdadeiramente históricas. Mesmo que o golpe tenha sido frontal nos últimos anos, que consigamos, de alguma forma, com debates, com aulas públicas, com produção de conteúdo responsável, com pesquisas, com mobilizações (presenciais e virtuais), com cidadania levantar, mesmo que sob ruínas, a bandeira da educação emancipadora, direito universal e responsabilidade do Estado. Mesmo que a situação seja revertida a violência simbólica (com impacto material) já foi deflagrada.

 

 


REFERÊNCIAS

BOLSONARO, Jair. Bolsonaro ataca professores e diz que não querem trabalhar. Disponível em: ttps://revistaforum.com.br/politica/2020/9/17/bolsonaro-ataca-professores-diz-que-eles-no-querem-trabalhar-82727.html. Acesso em: 07 dez. 2022.

BOLSONARO, Jair. Manifestantes são imbecis que não sabem a fórmula da água. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-manifestantes-sao-imbecis-que-nao-sabem-a-formula-da-agua/ Acesso: 07 dez. 2022.

CÁSSIO, Fernando; FILHO, Marco Antonio Bueno. Professor de Jair, Paulo Guedes é o mais bolsonarista dos ministros. Disponível em: https://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2020/07/08/professor-de-jair-paulo-guedes-e-o-mais-bolsonarista-dos-ministros/ Acesso: 07 dez. 2022.

CISLAGHI et al. Não é uma crise, é um projeto: a política de educação do governo Bolsonaro. 16ª Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, 2019. Disponível em: https://broseguini.bonino.com.br/ojs/index.php/CBAS/article/view/764/744 Acesso: 07 dez. 2022.

GAMBA, Estêvão; SALDAÑA, Paulo. Proposta de cortar verba de cursos de humanas tem pouco peso prático. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27 abr. 2019. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/04/bolsonaropropoe-cortar-verba-de-cursos-de-humanas-no-pais.shtml Acesso em: 07 dez. 2022.

OYAMA, Thaís. Tormenta – O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

OSSI, Marina. Corte ou contingenciamento, quem está certo na guerra de narrativas da educação. El País, São Paulo, 2 jun. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/31/politica/1559334689_188552.html Acesso em: 07 dez. 2022.

REZENDE, Lucas. Ninguém quer saber de jovem com senso crítico, diz Bolsonaro em Vitória. Folha de São Paulo, São Paulo, 31 jul. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/07/ninguem-quer-saber-de-jovem-com-senso-critico-diz-bolsonaro-em-vitoria.shtml Acesso: 07 dez. 2022.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: No Rio, estudantes recepcionam Bolsonaro com protestos contra cortes na educação, Mídia Ninja, 2019.

 

 

 

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