Nada o homem lucra em deixar-se invadir pelo gélido pranto.
Sempre viver em tristeza: eis a sorte que os deuses eternos
de descuidada existência aos mortais infelizes dotaram.
(Ilíada, Canto 24, versos 524-527).[1]
I
O Cavalo de Turim
Obra de despedida do realizador cinematográfico húngaro Béla Tarr, o filme Cavalo de Turim (A Torinói ló, 2011) expõe-nos, já em sua primeira cena, um clássico episódio marcante para a vida de Nietzsche: um cavalo é espancado em uma via pública de Turim, e o filósofo, horrorizado com a violência testemunhada, agarra-se ao pescoço do animal e suplica pedindo para que o cocheiro cesse a violência contra o cavalo.[2] Depois, acolhido por amigos, Nietzsche se entrega ao silêncio por dois dias. Passado este tempo, a insanidade e a doença tomam a mente e o corpo do filósofo, e este ficará condenado, sob os cuidados da mãe e das irmãs, às enfermidades, que o acompanharão até o fim de sua vida.
No entanto, não são as reflexões severas e melancólicas de Nietzsche, pós esse episódio, que nos serão apresentadas nesta narrativa cinematográfica, mas sim a vida de um cocheiro miserável, de seu cavalo doente e de sua triste e subjugada filha. O cocheiro representará aqui a pedra pouco lapidada da gentileza humana e, portanto, a brutalidade de todos os homens. A filha, uma triste mulher, é aquela que figurará a existência de todas as mulheres que foram e serão entregues aos caprichos de um mundo desprovido de gentileza. No centro, encontra-se o cavalo moribundo. Um animal totalmente abalado, entregue à doença e ao desgosto de sua triste existência. Seu semblante mostra-nos que este encontra-se próximo ao seu destino funesto (moira), assim como todos aqueles seres na história do mundo que foram maltratados sem o menor pudor por aqueles que utilizaram-se da ‘força’.
É evidente que alguns dos estudiosos e críticos de cinema tenderiam a acreditar (e creditar) somente em reflexões que tenham um paralelo filosófico entre a obra de Béla Tarr e o pensamento de Nietzsche, porém, nem mesmo isso é o que o episódio com o cavalo (e assim, grande parte desta obra de BélaTarr) remete-nos.
Afinal, os estados da dor, do silêncio e da angústia estão longe de serem temáticas queridas do filósofo alemão. O episódio e a vida do cocheiro que o cineasta mostra, apenas evidencia as contradições que existem entre o pensamento humano e a vida. A fragilidade de Nietzsche, demonstrada num momento em que um homem utiliza da força contra um animal, nada comunica ao seu pensamento filosófico. É a essência humana e frágil do filósofo que revela-se aqui, e o mesmo nos é revelado da vida do cocheiro. Portanto para pensarmos filosoficamente sobre a representação da condição humana na obra de Tarr é necessário que tenhamos uma filosofia que reflita profundamente a submissão do homem à ‘força’ e, assim, às dores provocadas por ela.
II
Ilíada ou o Poema da força
Simone Weil (1909 – 1943) é considerada por muitos entre uma das grandes pensadoras francesas da primeira metade do século XX. Teve desde cedo uma formação rigorosa em letras clássicas, principalmente no grego antigo, estudando pensadores da antiguidade, filósofos modernos e contemporâneos. Formou-se na instituição francesa École Normale Supérieure em 1928, sendo uma das primeiras mulheres a estudar nesta instituição. Habilitada em filosofia em 1931, passou a desenvolver boa parte da sua obra textual no período entre as duas grandes guerras mundiais. Seu pensamento desdobrou-se no debate sobre marxismo, filosofia ética, teologia e literatura grega. No entanto, poucas de suas obras foram publicadas em vida. Entre elas vejamos aqui o seu ensaio A Ilíada ou o poema da força (escrito em 1939-40), que hoje é um dos seus textos mais conhecidos.
Neste famoso texto, Weil utilizará seu conceito de ‘força’ para explicar as relações entre os guerreiros no campo de batalha, reflexão que tem como fonte a leitura do grandioso épico homérico, a Ilíada. A filósofa mostra que a ‘força’ é um atributo comum na relação entre os homens submetidos à violência, seja ela física ou psicológica, seja causada pela dor da espada ou pela submissão dos homens a outros de maior poder; a ‘força’ é, necessariamente, a entidade central das guerras. Filosoficamente, a ‘força’ é uma entidade subjetiva e ontológica que rege as relações daqueles que estão na batalha e que modifica a maneira como os homens lidam com a realidade quando expostos à sua própria miséria.
III
A miséria humana em Béla Tarr e Simone Weil
Eis que na obra de Tarr, assim como na Ilíada, o homem entrega-se e submete-se à ‘força’. Em ambas as obras, seres humanos (homens e mulheres) e animais são submetidos e, aos poucos, destruídos pela ‘força’ implacável da natureza. Traça-se assim, um paralelo filosófico entre BélaTarr e Simone Weil.[3]
De um lado, na Ilíada retratada por Weil, vemos os homens no campo de batalha, entregues e submetidos aos caprichos da ‘força’, ameaçados e amedrontados pela morte e pela miséria, abençoados por Ares implacável (o deus da fúria guerreira) e, assim, julgados pela justiça equitativa da Nemesis.[4] De um outro lado, na obra cinematográfica, vemos uma aparente hierarquia de forças, onde um é submetido ao outro, mulher e cavalo submetidos à brutalidade do homem, e este submetido à sua cega crença de que detém a ‘força’. Por fim, percebemos que todos (homens e animais) estão expostos e submetidos ao “império da força, um império que vai tão longe como o da natureza” (WEIL, 2006, p. 16).[5]
O ensaio de Weil (‘A Ilíada ou o poema da força’, 1939-40) é um estudo sobre a relação dos homens com a batalha, no qual a filósofa informa-nos, já no início do ensaio, quem é o verdadeiro objeto central da Ilíada, e, portanto, de toda a guerra de Tróia:
O verdadeiro herói, o verdadeiro objeto, o centro da Ilíada, é a força. A força que é manipulada pelos homens, a força que submete os homens, a força perante a qual a carne dos homens se retrai. Nela a alma humana surge incessantemente alterada pelas suas relações com a força; arrastada, ceifada pela força da qual julga dispor, curvada sob o constrangimento da força que suporta. (WEIL, 2006, p. 9).[6]
Apesar das reflexões no ensaio da filósofa estarem infimamente conectadas às guerras de seu tempo[7] e às descrições narrativas da Guerra de Tróia na Ilíada, a preocupação filosófica de Simone Weil está em estabelecer de forma geral, a questão da submissão do homem em um mundo desprovido de gentileza. Ilíada ou o poema da força é uma reflexão sobre o embrutecimento do homem diante da morte e da miséria, temas estes que, de acordo com a autora, são tão bem representados na obra homérica.
Retornando à obra de Tarr, vemos que já no início do filme Cavalo de Turim somos imediatamente expostos a uma poderosa cena de um cavalo e de seu cocheiro. Neste primeiro momento, que se revelará essencial para a construção emocional do filme, vemos um moribundo cavalo conduzir uma velha carroça. Presenciamos o triste e doentio estado do animal, um poderoso semblante enfatizado tanto pelo tema musical (trilha sonora) quanto pela tessitura fotográfica do filme.
Esta primeira cena, que, como nas outras deste filme, utiliza a técnica de plano sequência, leva-nos a acompanhar o andar de um cavalo por todo um tortuoso caminho entre colinas, em plena tempestade. O poderoso som (trilha sonora da dramática cena) delineia um tipo de ‘mantra’ de estilo clássico com claros tons melancólicos, que aos poucos é interrompido pelo som dos cascos.
Enfim, nossa imersão: saímos do conforto onírico dado pelo teor emocional da música e mergulhamos no triste som da realidade na qual, neste momento, podemos escutar o cavalgar e o vento. Aqui percebemos que mesmo estando em diferentes posições, de domínio e de submissão, ambos, homem e cavalo, sentem as dores do caminhar, ambos sentem o cortante frio advindo do vento penetrante.
Passada esta longa cena, o filme passa a movimentar-se em direção ao tema da petrificação do ser humano que consequentemente atenua a crescente incapacidade da comunicação entre as personagens. Tal como dito pelo crítico Jonathan Romney, o silêncio nesta obra de Tarr, é uma característica que conecta o estado melancólico das personagens com o estado de petrificação de Nietzsche:
Filmado em meras 30 longas tomadas, O Cavalo de Turim começa com uma narração (Mihaly Raday) com um fundo preto, explicando a história: em Turim, em 1899, o filósofo Nietzsche testemunhou um cavalo sendo chicoteado e, posteriormente, recuou em silêncio e loucura. “Não sabemos o que aconteceu com o cavalo”, diz a voz. (ROMNEY, 2011).[8]
Já a filha, a triste mulher silenciosa, age de acordo com a fria natureza da miséria e da submissão. Vemos seu olhar triste e ausente mirando a terra, seu rosto (quando visível a nós) marcado, sempre entristecido e paralisado, e seus movimentos, como de uma máquina, sempre automatizados. A mulher desde o início encontra-se sem esperanças, condenada a cuidar do miserável pai e prestes a aceitar sua triste e dolorosa condição. Vemos aqui uma filha (uma mulher) já entregue ao seu destino funesto, este que já se encontra tão grosseiramente delineado e estipulado pela brutalidade dos homens.
Desde o início somos expostos às tristes faces humanas. É impressionante a forma como Belá Tarr instiga-nos a observar, além da miserável vida do cocheiro e de sua filha, o melancólico olhar do cavalo moribundo. Olhar que se acentua quando no dia seguinte da primeira cena (já descrita), encontramos o cavalo imóvel. Incapaz de mover-se ou de alimentar-se e, assim, para sempre com seu aspecto triste, paralisado e doente.
Aos poucos identificamos na obra cinematográfica aquilo que Simone Weil descreve como a coisificação do homem: “A força, é o que torna quem lhe é submetido numa coisa. Quando é exercida até ao extremo, faz do homem uma coisa no sentido mais literal, porque faz dele um cadáver”, (WEIL, 2006, p. 9).[9]
Não à toa, a filósofa diz em seu ensaio o quanto da vida humana se passa, assim como vemos na Ilíada, longe dos banhos quentes. Estamos expostos às leis daqueles que utilizam a ‘força’ e entregues às inevitáveis reviravoltas do meio natural. A vida necessariamente envelhece e embrutece, a carne estressa-se com os golpes da ‘força’ e a fragilidade humana revela-nos quão fracos ficamos após percebermos como a miséria é tão marcante na vida dos mortais. Diferente dos deuses, como diz Homero, sempre flexíveis, nós seguimos o caminho das pedras.
Claro, somente a moderação e a possibilidade de vermos a beleza que se revela na natureza permitir-nos-iam sair desse mantra eterno, mas não é o que ocorrerá aqui. São poucos aqueles que se revelam gentis nesses caminhos tão árduos. Tendemos a petrificação, e é exatamente a nossa tendência à inflexibilidade que dificulta vermos àquilo que configuraria como a perfeita representação do bem para Platão, o sol. Weil e Tarr demonstraram, com formas tristes e belas, como a gentileza e o bem são entidades raríssimas na vida humana.
IV
Enfim, encerro esta breve reflexão filosófica, com algumas considerações: primeiro percebe-se que, assim como tantas outras belíssimas obras, o Cavalo de Turim distingue-se, principalmente, pela sua imersão no mundo do homem. Como na Ilíada, vemos de perto o homem petrificar-se ante à miséria, e saboreamos, profundamente, o amargo ser humano defrontando sua mais antiga condição ante à natureza. E, assim, constatamos, que, apesar das ordens hierárquicas de poder estipuladas pela brutalidade da natureza, homens, mulheres e animais, em ambas as obras, tombam diante da miséria. Homens e mulheres de todo o mundo são aqui representados, expostos ao acaso e subjugados pela ‘justiça’ equitativa da ‘força’.
REFERÊNCIAS
HOMERO. Ilíada. Tradução em versos por Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Ediouro, 2015.
LIDDELL, Henry G. SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Revised and augmented throughout by. Sir Henry Stuart Jones. Oxford, Clarendon Press, 1940.
RANCIÈRE, Jacques. BélaTarr. O Tempo do Depois. Tradução de Luís Lima. Editora Orfeu Negro. Lisboa, 2013
ROMNEY, Jonathan. The Turin Horse. Publicado por Screen Daily, em 15 de fevereiro de 2011, disponívelno link:<https://www.screendaily.com/reviews/latest-reviews/the-turin-horse/5023836.article>. Último acesso realizado no dia 28 de março de 2020.
SCOTT, A. O. FacingtheAbyssWithBoiledPotatoesandPlumBrandy, publicado por The New York Times em 9 de fevereiro de 2012, disponível no link:<https://www.nytimes.com/2012/02/10/movies/the-turin-horse-from-bela-tarr.html>. Último acesso realizado no dia 28 de março de 2020.
WEIL, Simone. L’Iliade ou lèPoeme de la Force. CahiersduSud: décembre 1940 pp. 561-574 et janvier 1941 pp. 21-34, souslenom de Émile Novis. Marseille, 1940-1941. Link de acesso: <https://www.retronews.fr/titre-de-presse/cahiers-du-sud>. Acesso em 04 de novembro de 2019.
WEIL, Simone. A Fonte Grega. Tradução de Filipe Jarro. Ed. Livros Cotovia, Lisboa, 2006.
NOTAS
[1] Tradução de Carlos Alberto Nunes, 2015.
[2] Sobre o Cavalo de Turim ser o último filme de Béla Tarr, o crítico de cinema Jonathan Romney diz: “It’s a shame to think of this heroically uncompromising director shutting up shop, but if he does, The Turin Horse is a magnificent farewell.” (ROMNEY, 2011). Tradução minha: “É uma pena pensar nesse diretor heroicamente intransigente fechando as portas, mas se o fizer, o Cavalo de Turim é uma despedida magnífica”.
[3] Para uma leitura crítica cinematográfica sobre o filme ver: Facing the Abyss With Boiled Potatoes and Plum Brandy por O. A. Scott no link: https://www.nytimes.com/2012/02/10/movies/the-turin-horse-from-bela-tarr.html. Para uma abordagem filosófica estética e temporal ver Béla Tarr. O Tempo do Depois. Jacques Rancière, 2013.
[4] Weil considera existir um tipo de precisão matemática sobre a noção grega de ‘Nemésis’ (Νέμεσις), que é a distribuição do que é devido, utilizada sempre no sentido de retribuição ou justiça. De acordo com LSJ, 1940, s.v. Νέμεσις: “A. “νεμέσσι” Il.6.335: (νέμω): — prop., like νέμησις, distribution of what is due; but in usage always retribution, esp. righteous anger aroused by injustice, not used of the gods in Hom.”
[5] Weil continua: “Também a natureza, quando entram em jogo as necessidades vitais, apaga qualquer vida interior (…)”, (WEIL, 2006, p. 16).
[6] “Le vrai héros, le vrai sujet, le centre de l’Iliade, c’est la force. La force qui est maniée par les hommes, la force qui soumet les hommes, la force devant quoi la chair des hommes se rétracte. L’âme humaine ne cesse pas d’y apparaître modifiée par ses rapports avec la force; entraînée, aveuglée par la force dont elle croit disposer, courbée sous la contrainte de la force qu’elle subit.” (WEIL, 1940, p. 562). A versão em francês utilizada aqui é do texto divulgado em Cahiers du Sud, Marselha, dez. 1940 – jan. 1941, onde foi originalmente publicado.
[7] Simone Weil publicou Ilíada ou o poema da força em 1940, tendo vivenciado os infortúnios da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). A autora neste momento (no início dos anos 40`) vê o primeiro ano da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) junto ao episódio da invasão nazista ao território francês.
[8] Original: “Shot in a mere 30 long takes, The Turin Horse begins with a voice-over (Mihaly Raday) on black, explaining the back story: in Turin in 1899, the philosopher Nietzsche witnessed a horse being whipped, and subsequently retreated into silence and madness. “We do not know what happened to the horse,” the voice tells us.”
[9] “La force, c’est ce qui fait de quiconque lui est soumis une chose. Quand elle s’exerce jusqu’au bout, elle fait de l’homme une chose au sens le plus littéral, car elle en fait un cadavre”, (WEIL, 1940, p. 561).
Créditos na imagem: Reprodução. Foto do filme selecionada por Adriana Scarpin. Disponível em: https://quixotando.wordpress.com
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Eduardo Lucas Alves Rodrigues
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