Ser Historiador no século XIX: O caso Varnhagen

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CEZAR, Temístocles. Ser Historiador no século XIX: O caso Varnhagen. Belo Horizonte. Autêntica Editora, 2018. 253p.

 

Li o livro de Temístocles Cezar em uma semana. Li interessado, li com sofreguidão, li incomodado, surpreso, contrariado, entusiasmado, acompanhando a construção de um personagem, o Heródoto brasileiro, suas obras, opiniões, seus movimentos, na perspectiva da confraria dos historiadores das histórias da história do Brasil.

Imaginem um engenheiro metalurgista que gosta de história e, nas compras de natal, se depara com o livro Ser historiador no século XIX:  O caso Varnhagen. Foi entusiasmo à primeira vista. A orelha do livro me dizia que o autor é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e presidente do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia. Francisco Varnhagen eu conhecia pela fama e pela leitura de um único capítulo da sua obra-prima História Geral do Brasil, intitulado “Minas de ferro. Varnhagen é o executor dos projectos d´elrei”, por ser o capítulo que descreve as vicissitudes e sucessos do projeto siderúrgico de João VI que tem atraído minha atenção e cujo maior realizador foi o pai do historiador, Frederico Varnhagen. O título principal também me atraiu: Ser historiador no século XIX.  Na medida em que me arvoro a ser historiador sem ter formação para isso, o livro pareceu-me uma oportunidade para conhecer como um profissional analisa um texto que contém uma questão central aos meus interesses.

Como será que a leitura do livro afetará minha crença, quixotesca, liliputiana, de que seria  relevante, para os brasileiros de hoje e do futuro, refletir sobre a ocorrência e os limites da revolução industrial e da “cultura do ferro” naquele século, no Brasil,  incluindo o papel da fábrica de ferro de Ipanema? Afinal, a última ocasião que o episódio teve esse destaque foi no livro de Francisco Adolfo Varnhagen, publicado entre 1854-1857, e a inclusão é vista como evidência de uma falha metodológica do historiador. Esse episódio e os movimentos planetários no qual ele se insere desapareceu das grandes sínteses da história do Brasil.

Temístocles Cezar construiu o livro com se fosse um concerto, com quatro movimentos e intensas variações de andamento. Digamos que o libreto do concerto são dois ensaios, Antologia de uma existência e os Movimentos de Varnhagen, onde o destaque é que Varnhagen não tinha sossego. Aproveitou sua carreira de diplomata e a amizade com o Imperador para visitar lugares que tinham fontes importantes de documentação sobre o Brasil.

O primeiro dos quatro movimentos nos mostra como Varnhagen pesquisava, como ele reconstituiu a versão mais fidedigna de um documento, e como ele selecionava suas informações dentre diferentes autores. Ele aproveitou sua condição de diplomata para buscar, em várias bibliotecas, e reconstituir a versão mais fidedigna, dentre mais de 20 versões, de um documento que se tornou um clássico do período colonial, cuja autoria Varnhagen demonstrou ser de Gabriel Soares de Sousa. Não bastasse ser uma rica descrição do Brasil, em 1580, o texto tornou-se a fonte da construção de um herói nacional: o índio Peri.

O segundo movimento é marcado pela querela entre o escrever e o redigir, entre o fato e a ficção, entre a história e a poesia, nos escritos de Varnhagen e dos seus colegas de IHGB, segundo as visões dos que analisaram sua obra no correr dos anos. O poeta é aquele que preserva, transmite e estabelece a crença, enquanto o historiador é o sujeito que procura, na crença, a verdade (pag 131). Partindo da crítica de grande parte dos leitores à falta de estilo de Varnhagen, o autor nos leva até o que ele chama de exaustão do detalhe (pag 120) na acusação  de tratar de assuntos ou detalhes sem importância, ou de importância menor pela simples razão de serem descobertas suas. Inclui-se no segundo movimento uma análise das biografias escritas por Varnhagen. Seu jeito desaforado, irritado, e sua obsessão por entender a formação do Brasil como nação impediam a incontida subserviência às elites (pag 123).

O terceiro movimento trata da subjetividade e da falta de imparcialidade de Varnhagen na sua obra prima ao criar um papel para seu pai na história do Brasil. Naquele único capítulo que eu mesmo li,  Minas de ferro. Varnhagen é o executor dos projectos d´elrei, Francisco Varnhagen destaca o papel de seu pai, Frederico Varnhagen, na construção e operação de dois altos fornos nas proximidades de Sorocaba, às margens do rio Ipanema. Temístocles considera que Francisco não esteve à altura de um dos princípios mais importantes para o trabalho de um historiador, no século XIX, que é a imparcialidade. Na frase mais forte aos meus ouvidos, Temístocles diz que  Francisco “exagerou a situação. A exploração do ferro somente teve real importância econômica, no Brasil, no século seguinte.”(pag 159).

Cento e sessenta anos depois, estou eu frente ao mesmo dilema. Eu defendo o capítulo de Francisco. Por ser um engenheiro metalurgista estou inevitavelmente comprometido com o subjetivismo?  O que me impressiona no Francisco é sua honestidade. Não concordo com Temístocles quando ele escreve que “o que me parece mais significativo não é a constatação de Varnhagen ser parcial e subjetivo, mas o fato de ele não se esforçar, talvez como devesse ou se pudesse supor, negar tais características.” (Pag 159).

 

Mas como Temístocles mesmo notou, Francisco tem consciência da situação, até pede desculpas ao fim do capítulo. Pede desculpas mas insiste na importância da Fábrica. Temístocles nos conta como a personalidade de Varnhagen lhe trouxe inimigos. Eu me pergunto se a desconsideração da importância da Fábrica de ferro de Ipanema até hoje não vem, em parte, do constrangimento criado por aquele capítulo.

 

De certa maneira, visto a carapuça proposta por Capistrano de Abreu. Sinto-me hipervalorizando um tema irrelevante, querendo empurrar barbante. Temístocles tem razão, a exploração do ferro só adquiriu importância no Brasil no século seguinte, mas, notem bem, como a realização do sonho, que não cansou de ser sonhado desde aquele então,  de ser uma nação moderna. Creio que Ipanema sobreviveu, ao longo do XIX, principalmente como a chama acesa desse sonho, contra o discurso da vocação agrária do Brasil. A exploração do ferro viria a ser uma das grandes promessas da revolução de 1930, realizada a duras penas em 1945 na CSN e expandida durante o governo militar, ainda que às custas de endividamento. Somente nos anos 1980 o Brasil realizou o sonho do governo João VI, imediatamente visto como ameaça pelo cônsul sueco em 1812: tornar o Brasil um exportador de ferro.

Sendo assim, Ipanema é ou não relevante para a história do Brasil? A obra de Frederico Varnhagen merece ou não o destaque? As várias retomadas de Ipanema ao longo do século XIX só aconteceram por ter Varnhagen construído aqueles altos fornos que lá estão até hoje.

Quando Francisco Adolfo escrevia seu livro, publicado entre 1854 e 1857, Ipanema mergulhava no pior período de marasmo, depois dos 7 anos de investimento, crescimento e sucesso sob a direção do Coronel João Bloem, interrompidos com o fracasso da Revolta Liberal, em 1842.  A Fábrica foi quase totalmente desmontada em 1861, menos os altos fornos, no fracassado projeto de transportá-la para o Mato Grosso. A crise paraguaia levou o governo brasileiro a reinvestir em siderurgia, em 1865, e escolheu fazer isso de novo lá em Ipanema, exatamente por lá estarem de pé, firmes, os altos fornos de Varnhagen.  Francisco Adolfo teve a felicidade de poder ajudar um novo período de crescimento, como embaixador do Brasil na Áustria, quando apoiou o diretor de Ipanema, Coronel Mursa, em 1873, a contratar uma leva de operários austríacos para trabalhar na Fábrica. Mursa já havia percorrido Alemanha e Bélgica, sem sucesso. Esses operários ajudaram a estabelecer em Ipanema um processo austríaco de refino do ferro, capaz de produzir barras de ferro com qualidade adequada para atender a Companhia Paulista de Estradas de Ferro[1]. Amostras dessas barras foram presenteadas ao Imperador Pedro II, fazem parte de uma coleção do Museu Nacional e sua microestrutura está sendo objeto de análise em dissertações na Escola Politécnica da USP[2].  Agrego esse contraponto de cinco parágrafos para desafinar do movimento, desafinar do uníssono que se formou nesse assunto, ao qual Temístocles se junta. Ipanema é parte da cultura do ferro do século XIX, parte da revolução industrial que tantos lusos brasileiros enxergaram já no fim do XVIII, da necessidade de produzir ferro em grande[3], da demanda dos engenhos de açúcar por moendas de ferro fundido, das panelas e chapas de ferro dos fogões caipiras, quase intuindo a chegada das estradas de ferro, da futura quase obrigatória presença, nas casas burguesas de todo o Brasil, das sacadas produzidas com ferro gusa importado nas já dezenas de fundições espalhadas pelo Brasil em 1870.

 

O terceiro movimento não trata só disso. O assunto adquire tons novelescos quando outro aspecto da subjetividade do historiador é colocado às claras: ele minimizou o papel de José Bonifácio no processo da independência brasileira, como atestou, em 1916, a Comissão do IHGB constituída para editar o livro de Francisco Varnhagen sobre a História da Independência. A minimização seria explicada como uma reação à crítica que o Patriarca da Independência fez a seu pai numa memória sobre Ipanema, escrita em 1820 e só tornada pública em 1927, justamente como adendo à 4ª edição da HGB. .Essa Memória é um eloquente documento do conhecimento siderúrgico de Bonifácio, um metalurgista formado em Escola de Minas de Freiberg, na Alemanha. Nela ele chamou a atenção para uma série de erros no projeto, construção e operação da fábrica por Varnhagen[4], e uma soltou uma frase desairosa à sua honestidade. As críticas são parcialmente cabíveis mas não demolidoras, analisando com base na literatura disponível a Frederico na época. A operação dos altos fornos em duas campanhas, a segunda com nove  meses de duração, e a detalhada descrição dessa operação nas cartas de Varnhagen a Eschwege são a mais eloquente resposta, avant la lettre,  àquelas críticas[5].  Na minha opinião de leigo, essa segunda parte do terceiro movimento é um grande momento do livro. O elegante cotejamento das contraditórias fontes e análises sobre o papel de Bonifácio na política brasileira é fechada por uma bela frase de Emília Viotti da Costa: “a lenda de José Bonifácio, embora submetida à crítica, resistiu”.  A coda do movimento traz uma potente frase de Pierre Nora: “ um interesse declarado e elucidado oferece um abrigo mais seguro que os vãos protestos de objetividade”.

O quarto movimento aborda uma questão complexa: O que é história? Foi o capítulo mais difícil para minha leitura. É o mais técnico, vamos chamar assim, usando ferramentas da teoria da história que estão fora de meu conhecimento. Temístocles diz que A reflexão sobre a condição histórica não se constitui em mero artifício retórico, com a intenção de encobrir uma empiria de dados definidos a priori, mas um modo de levar em consideração as aporias da finitude do homem em sua temporalidade (pag 179). E segue citando o historiador alemão Koselleck, afirmando que a teoria da história “trata dos elementos prévios, no plano teórico, que permitem compreender por que as histórias ocorrem, como elas podem ocorrer e também por que e como devem ser analisadas, representadas ou narradas”. Temístocles busca, em trechos esparsos das duas edições da HGB, a teoria embutida no discurso de Varnhagen. Uma discussão muito rica é a que trata da presença, quase disfarçada, do conceito da História como Mestra da Vida, em vários momentos do texto de Varnhagen.

Completados os Movimentos da Ópera Varnhagen, Temístocles aborda a retórica da nacionalidade e a seguir ousa criar um diálogo extemporâneo entre Varnhagen e Capistrano, na sede do IHGB, em 1877, usando trechos do trabalho de ambos, em que o último sonha com o tempo em que seja possível “generalizar as ações e formular-lhes teoria; representá-las como consequências e demonstração de duas ou três leis basilares”.

Eu não imaginava que iria gostar tanto do livro. Temístocles Cezar escreve bem, conduz bem o leitor por intrincados caminhos, abre o autor e seus livros a um exame profundo do ambiente que os gerou. Faz pensar sobre o ser historiador.

 


 

NOTAS

[1] Relatório da Directoria da Companhia Paulista, 1883.

[2] Por exemplo, MAMANI-CALCINA, E.A.; LANDGRAF, F.J.G. ; AZEVEDO, C.R.F.  Investigating the Provenance of Iron Artifacts of the Royal Iron Factory of São João de Ipanema by Hierarchical Cluster Analysis of EDS Microanalyses of Slag Inclusions. MATERIALS RESEARCH, v. 20, p. 119-129, 2016.

[3] Vieira Couto, José.  Memória sobre a Capitania das Minas Gerais (1799). Ed. Fundação João Pinheiro, estudo crítico de Júnia Ferreira Furtado. 1994. 104p.

[4] Landgraf, F.J.G. e Araújo, P.E.M. A arquitetura do alto-forno e a biblioteca perdida de Ipanema: técnica e conhecimento no Brasil Joanino. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA, 14.,, 2014, Belo Horizonte. Anais Eletrônicos…. São Paulo: SBHC, 2014. p. 1-15.

[5] Landgraf, Araújo et ali. Evolução do perfil interno dos altos fornos brasileiros do século XIX.   In: 47º Seminário de Redução de Minérios e Matérias Primas, 2017, São Paulo. Anais dos Seminários de Redução, Minério de Ferro e Aglomeração. São Paulo: ABM, 2017. p. 432-456.

 

 

SOBRE O AUTOR

Fernando José Gomes Landgraf

Professor titular de engenharia metalúrgica da Escola Politécnica da USP. Pesquisa o comportamento magnético dos materiais de engenharia, a manufatura aditiva por fusão seletiva a laser, a aplicação de ferramentas modernas de caracterização microestrutural na análise de objetos ferrosos antigos brasileiros e a história da siderurgia no Brasil.

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