Sinceramente? Não sabia. Pensei conversar com qualquer pessoa dessas que a gente conversa em padaria, no supermercado, em encontros corriqueiros, fortuitos.
Nada. Não.
Esta história não tem história. Espero, aguardo, mas ela não vem. Conversar com Cícero foi minha língua em vai-e-vem.
Esta história poderia ser em código Morse, batuque de dedos na mesa, choque de trem.
É não. Tem não. Não vem.
Poderia vir num teleférico, arredondada, em ramos, por meio de orações subordinadas.
Vem não. Não vem.
É pontiaguda. Dá pontadas.
Conversar com Cícero foi, paradoxalmente, lacunar, cortado. Foi uma experiência telegráfica, porque Túlio, aposentado dos telégrafos, me contou sua vida aos bocados, durante o tempo em que bebemos um café; eu amargo, ele adoçado.
Não que eu fosse ou estivesse amargo. Meu café sem açúcar, meu café com afeto, não adoçado.
Túlio era amargo. Tudo em Túlio era conto contado pesado.
Conversei com Cícero no supermercado Pastorinho. Eu namorado de uma das pastorinhas, pastora de nuvens, raposa branca vegetariana; ele nascido no Rio de Janeiro, mas tendo vivido a maior parte do tempo no Paraná, me disse na vida só pastar.
A Pastorinha, embora longe, para consolo da lua, vive sempre muito ao meu lado.
Túlio ficou órfão muito cedo. Morou com a família. A mãe tinha sido tuberculosa e a tia, que não quis cuidar dele, argumentou que filho de tuberculosa tuberculosinho era.
Ele me disse assim:
– Não era, filho, tanto que estou aqui.
Por mais de uma vez falou assim:
– Tanto que estou aqui.
Era uma espécie de prova, uma evidência de sua resistência, de sua existência apesar da tuberculose em tempos em que disso se morria.
A princípio, não duvidei ter conversado com Cícero. Eu o vi ali. Ele me chamou de filho, depois de moço, depois de senhor, depois de rapaz.
Túlio trabalhou nos telégrafos, fez faculdade de Direito. É casado há 57 anos com a mesma mulher. Ele me disse ser fácil tal proeza:
– Cede daqui, cede de lá; respeita daqui, respeita de lá …
Depois de muitos lá lá lá, perguntei:
– Como o senhor se chama?
Ele me respondeu:
– Túlio.
Conversei com Cícero e não sabia. Ele sabia da conjuração Catilina, das Catilinárias, embora tivesse sido estafeta dos Telégrafos.
Envelheci durante a conversa com Túlio. Retrocedi, virei Salústio.
Esta história não tem história. Tem jurisdição, retórica. Tem, como sempre, em mim, a tentativa, a demanda, o empenho de sutileza de linguagem.
Túlio me tratou de filho, de moço, de rapaz. Houve um momento em que fui senhor. Por fim, terminou a prosa a me chamar de amigão.
Porque fui conversar com Cícero, com Túlio íntimo, familiar? O que ele quis me dizer?
A conversa inconclusiva me levou a pensar que Cícero quis me dizer que não adianta a gente se rebelar; que a conjuração não vale a pena, o negócio e o ócio, é murmurar.
Ele era Túlio. Com ele, estavam Marco e Cícero. Eu, ele e mais duas pessoas para, durante um café, de vida telegráfica, hoje muito mais rápida, conversar.
Créditos na imagem: Reprodução. Quando o inverno encontra o verão. Foto: Chronosfer.
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Eduardo Sinkevisque
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