O enigma do Salvator Mundi

Em 2005, dois negociantes de arte compraram uma pintura em um leilão em New Orleans. Vendida por pouco mais de dois mil dólares, e identificada com vaga referência ao período (“Depois de Leonardo”), os dois concluíram que o retrato de Jesus Cristo tinha sido feito por um bom copista. Depois de enviá-lo à restauradora Dianne Modestini, entretanto, receberam a notícia de que, por baixo das grossas camadas de tinta, havia outro desenho, um primeiro indício de que era um original (correções são algo incomum em cópias). Mas é com a observação da própria Modestini de que, no rosto do Cristo, a transição do lábio superior para a pele sob o nariz era idêntica à da Gioconda que tudo mudou. Teriam eles descoberto um autêntico Da Vinci?

O parágrafo acima descreve os primeiros momentos do documentário The Lost Leonardo lançado em 2021 pela Sony Pictures. No cerne de seu argumento está o problema da verdade acerca do quadro comprado por Alexander Parish e Robert Simon. De um lado, a origem nebulosa do retrato; de outro, o trabalho realizado nele por Modestini suscitava forte suspeita. Seria ele o Salvator Mundi (c. 1500) de Da Vinci do qual, durante séculos, só tivemos notícia por conta das cópias que permaneceram em circulação? Ou apenas mais uma réplica? Teria sido essa uma confusão promovida pela intervenção de uma restauradora em busca de fama e dinheiro? Como diferenciar, afinal, uma contrafação de um original?

O documentário mostra como, na ausência de uma assinatura que conferisse credibilidade, os pesquisadores recorreram à noção de proveniência como critério para determinar a originalidade do objeto de arte. Contudo, o rastro deixado pela trajetória do quadro levou-os a outro impasse: recuando até o começo do século XX, os registros de compra e venda chegam a um abrupto termo. De onde ele veio, afinal? Há menções ao “Salvator Mundi” nas coleções privadas de Charles I e II, mas nada que, por definitivo, permita afirmar ou desmentir que se trate da mesma peça adquirida por Parish e Simon.

Ainda assim, Luke Syson (então curador da National Gallery em Londres) decide expor a obra como de autoria do próprio Leonardo. O documentário mostra como, à época, críticos de arte e especialistas de todo mundo atacaram-no e à sua exposição. A alegação era a de que a existência de correções e de uma transição do lábio superior para a pele sob o nariz não seriam indícios suficientes para concluir que o quadro era um original. Além disso, a mão direita desenhada faz um gesto improvável de ser alcançado pela anatomia humana – incongruente, como se sabe, com o trabalho de Da Vinci, um estudioso do assunto. Eles apontaram, por fim, que o mestre florentino tinha o hábito de realizar uma escolha cautelosa de materiais e que dificilmente teria escolhido uma madeira cujo nó deformava o centro do quadro. Ecoando as acusações feitas, um dos entrevistados no filme brinca ao dizer que, no comércio da arte, o Salvator Mundi exposto na National Gallery ficou conhecido como uma obra de arte contemporânea, fabricada, na maior parte, por Modestini.

Por mais que essa discussão seja, para nós, válida, não podemos deixar de notar que ela dificilmente seria pertinente na época do próprio Da Vinci. Se hoje em dia uma cópia é considerada uma prática “inautêntica”, convém lembrar que até o século XIX as cópias possuíam um valor próprio, sendo, por isso, consideradas práticas legítimas. Em outras palavras, nosso conceito de falso não é algo que tenha sido estabelecido desde sempre: ele possui uma história e é uma invenção do mundo contemporâneo. Além disso, até um passado não tão remoto assim, não era infrequente que pintores considerados de menor renome (especialistas em pintar, por exemplo, árvores ou animais) auxiliassem grandes artistas na composição de suas imagens. O regime das assinaturas e o próprio ato de pintar mudaram, como se vê, com a arte moderna. No Renascimento a relação entre pintura e verdade era outra. Escreve Jean Baudrillard: “Num mundo que é o reflexo de uma ordem (a de Deus, da natureza ou, apenas, a do Discurso), em que as coisas são representação, dotadas de sentido e transparentes à linguagem que as descreve, a ‘criação’ artística não se propõe outra coisa senão descrever” (BAUDRILLARD, 1972, 115; tradução nossa). Nessa direção, podemos tomar como exemplo os escritos do próprio Leonardo. Ao referir à arte da pintura, ele afirma:

Verdadeiramente esta é uma ciência, uma filha legítima da natureza; mas para dizer mais corretamente, diremos neta da natureza, porque todas as coisas visíveis nasceram da natureza, as quais deram à luz a pintura. Portanto, com razão, a chamaremos de neta da natureza e de descendente de Deus. (DA VINCI, 1890 [1632], 07; tradução nossa)

Sob esse prisma, por conseguinte, a pintura seria apenas a “neta” de Deus. Ou, se preferirmos, uma cópia da cópia da Ideia. Trata-se, de todo modo, de uma ordem em que cada ponto assinala distâncias cada vez maiores para com a Verdade. De forma esquemática: no início encontra-se Deus, sendo Ele a Origem de tudo o que há; em seguida, a Criação/Natureza, um primeiro deslocamento para longe da Origem; por fim, a uma distância maior que a Criação/Natureza em relação à Origem, encontra-se a arte humana – que nada mais é do que uma tentativa humana de imitar a Natureza. Desse modo, a obra de arte não poderia almejar ser nada além do que um comentário perpétuo acerca do Discurso definitivamente dado. O grande texto do Mundo podia ser, no melhor dos casos, interpretado na tentativa de descobrir o sentido último estabelecido por um único Autor. Uma tentativa, talvez, vã do ponto de vista dos mortais, posto que o sentido era, àquela época, percebido como sendo necessariamente transcendente.

Percebe-se como a noção de “representação” tem valor nesse contexto: “Vocábulo de origem medieval que indica imagem ou ideia, ou ambas as coisas. O uso desse termo foi sugerido aos escolásticos pelo conceito de ‘semelhança’ com o objeto” (ABBAGNANO, 1971, 729; itálico no original, tradução nossa). Tomás de Aquino é aqui, ainda, a referência obrigatória. Foi ele quem primeiro disse: “Repraesentare aliquid est similitudinem eius continere” (“Representar algo é conter sua similitude”, tradução nossa) (AQUINO, 1970 [1256-1259], 205). Desse modo, o que se buscava com a representação das coisas era, acima de tudo, a “semelhança” ou a “similitude” para com um significado estável, eterno, perfeito e, mais importante, exterior aos homens.

A distância que nos separa de Leonardo não pode ser subestimada. O mundo em que vivemos é outro. Abolida a transcendência, o “original” passou a ser a própria obra e o valor dessa passou da coisa representada para o gesto do humano criador. Em primeiro lugar, esse gesto possui uma temporalidade própria: percebido como único e irreversível, remete apenas ao próprio pintor. Ele assume, por isso, o lugar do modelo que antes era ocupado por “Deus” ou pela “Ideia”. Se as pinturas medievais e renascentistas encontravam sua justificação definitiva na existência do mundo que representavam, as nossas formam séries cujo termo final é apenas um sujeito. Daí a importância que a assinatura tem para nós: ela aparece como o indicativo de que há um real por trás das aparências (isto é, um sujeito criador), um real para onde uma multiplicidade converge, o que confere a um conjunto de objetos culturais, de outro modo disperso e indiferenciado, uma justificativa e valor extraordinários. As assinaturas levam a reconhecer e a avaliar cada objeto de arte como partes de sistemas de signos coesos e coerentes que são os das obras de autores mortais – os pintores. Desse modo, aquilo que desqualificou as cópias para nós não foi apenas, como muitas vezes se disse, a invenção da técnica fotográfica – técnica que, a princípio, superava, em termos de realismo, as representações feitas à mão. Ao invés disso, a desqualificação das cópias ocorreu ao mesmo tempo que uma mudança global nas condições de significação das próprias obras. Passamos a admitir que o quadro tem seu fundamento no gesto irreversível da invenção pictorial feito por um artista e não mais na Criação divina. Nesta relação moderna com o mundo, cada aspecto de um quadro permite retraçar o sujeito em ato, mas só a assinatura o designa de modo explícito. Só a assinatura recupera algo do Referente – uma parcela do Sentido e da segurança que a pintura moderna, por si só, já não restitui. A pintura moderna pertence a este nosso mundo, um mundo do qual a própria Verdade (com suas características de eternidade e perfeição) se retirou. Entende-se, a partir daí, porque a dificuldade de retraçar a proveniência, a ausência de assinatura e a restauração feita por Modestini aparecem como complicadores para estabelecer a verdade do Salvator Mundi.

O crítico de arte e colecionador Kenny Schachter, partidário da ideia de que a atribuição da autoria do quadro a Da Vinci é um exemplo de fraude promovido pelo mercado de arte, diz aos documentaristas: “O que mais assusta as pessoas, no meu ramo, é a verdade.” Entretanto, tudo sugere o contrário. Isso porque a veracidade do quadro, se não pode ser provada, também não pode ser refutada. Desse modo, poderíamos reformular a sentença. O que mais assusta as pessoas não é a verdade, como quer Schachter, mas, precisamente, não ter certeza do que é a verdade.

Todo enigma é assustador, mas também conserva algo de fascinante e desafiador – eis a razão pela qual os especialistas não conseguiram se manter indiferentes diante do Salvator Mundi. É o não saber, é a perda de parâmetro, de referencial, que precipita a vertigem. Uma vez que a dimensão constitutiva da arte moderna passou a ser a da série (que permite restituir e enunciar, ao fim, a verdade de um criador mortal), a possibilidade da inautenticidade de um dos elementos da cadeia a assombra com repercussões catastróficas. Como escreve Baudrillard: “Se se prefere, hoje em dia já não há Deus para separar os seus. A obra já não se funda em Deus (na ordem objetiva do mundo), mas na própria série. Nesse caso, a tarefa essencial é preservar a autenticidade do signo” (BAUDRILLARD, 172, 117-118; itálico no original, tradução nossa). Em nossas sociedades, todo o conjunto de instituições estatais, inclusive e principamente aquelas que querem controlar a cultura, é construído em torno do direito de enunciar a verdade das coisas. Eis a razão pela qual o menor atentado contra a assinatura é ressentido como um atentado ao próprio sistema. E eis porque, para os entrevistados no filme, o falso e a cópia fazem as vezes do sacrilégio.

Entretanto, há um interessante paralelo que podemos traçar entre a suposta adulteração do Salvator Mundi pela restauradora e a opção dos cineastas em realizarem o filme em um formato que flutua entre o documentário e o docudrama. Depoimentos de especialistas, negociantes, jornalistas etc., sentados diante de uma câmera estacionada, como que diante de um tribunal que busca descobrir a “verdade dos fatos”, aparecem intercalados a momentos de dramatização. Por exemplo: vemos um homem carregando um enorme embrulho de plástico preto que seria o próprio Salvator Mundi, disfarçado, pelas ruas de New York; em sua casa, Modestini é exibida contemplando o quadro e, em seguida, agindo como se o restaurasse no cavalete; os críticos de arte consultados por Luke Syson são exibidos como se olhassem o quadro pela primeira vez na National Gallery etc. Entretanto, sabemos que todas essas sequências foram filmadas quando o quadro já havia sido vendido a um comprador anônimo e tirado de circulação. Com isso, a velha separação entre filme de ficção e de não-ficção se borra. Nesses momentos, atores sociais tornam-se personagens. De modo talvez inadvertido, o trabalho dos cineastas desdobra e multiplica, por isso, a fascinante confusão entre a ficção e a realidade que está no centro do enigma do quadro – um trabalho de restauração que teria tornado impossível separar o que é falso da verdade. Não seria exagero supor que a naturalidade com que se acolheu esse procedimento cinematográfico (o público não o questiona; não há qualquer registro de estranhamento por parte da crítica) diga algo também a nosso respeito.

Quando o Museu do Louvre realizou, em 2019, uma retrospectiva em homenagem a Leonardo Da Vinci, grande expectativa se criou de que o Salvator Mundi estaria presente. Como as tratativas realizadas entre o museu e o novo proprietário (anônimo) do quadro fracassaram, a curadoria decidiu exibir uma cópia. Entretanto, durante a abertura da exposição, a massa de visitantes parecia não se importar com isso. Modestini conta aos cinegrafistas: “As pessoas estavam paralisadas [diante do Salvator Mundi] e eu continuei dizendo ‘É uma cópia! Vocês não sabem que isso é uma cópia?’ Algumas pessoas pareciam um pouco confusas [com meu alerta], mas continuavam tirando fotos do quadro.” Enquanto Modestini fala, o filme mostra planos nos quais as massas contemplam e fotografam alegremente o quadro – ignorando qualquer debate sobre autoria. Como podemos pensar esta sequência? Temos ninguém menos do que a acusada de falsificação tentando alertar o público de que o que contemplam não é um original. Por si só, isso já seria a suprema ironia da história. Não obstante, temos ainda as massas que, de fato, se precipitam para ver o quadro, mas não o fazem porque tenham qualquer “necessidade” de uma verdade da qual foram privadas durante milênios. Isso não passa de uma fábula institucional que quer legitimar a própria existência do museu – e na qual, no fundo, ninguém mais acredita. Podemos arriscar uma hipótese mais radical: as massas se precipitam sobre o Salvator Mundi porque têm a oportunidade de participar de um imenso ritual de luto pela cultura que sempre as desprezou (a cultura da Revelação e do Sentido sempre foi uma cultura de elite, uma cultura de elite contra as massas).

O sonho do poder sempre foi o de que a enunciação da verdade ficasse restrita a um punhado de senhores, sacerdotes e eleitos. De sua posse, teriam a justificativa divina para todos governar. Hoje, as massas vêm gozar, no Louvre e em toda parte, com a prostituição e a morte dessa cultura que está, para todos os efeitos, liquidada. Todas as instituições e todos os especialistas buscam camuflá-lo, pois, em grande medida, sua autoridade ainda repousa sobre o direito exclusivo de dizer o que as coisas são. Mas, devido ao avanço das tecnologias que realizam cópias cada vez mais idênticas aos originais, embaralhando o que é uma coisa e o que é a outra, torna-se mais e mais difícil persuadir as massas do valor da assinatura, da proveniência etc. Esses indícios mostram-se critérios frágeis para se determinar a verdade, incapazes colmatar o vazio deixado por Deus e pela Ideia – que dirá ressuscitar a autoridade do especialista, da instituição. Testemunhamos, hoje, por isso, a transubstanciação da velha cultura tradicional, hierarquizada, em um fluxo aleatório de signos. É a nossa escatologia realizada. De modo irresistível, as massas correm para ver o Salvator Mundi como correm para o local de uma catástrofe.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ABBAGNANO, Nicola. Dizionario di filosofia. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1971.

AQUINO, Sancti Thomae. Opera Omnia, Tomus XXII: Quaestiones disputatae de veritate. Roma: Romae ad Sanctae Sabinae, 1970 [1256-1259]. (Vol. 1. Fasc. 2. QQ. 1-7.)

BAUDRILLARD, Jean. Pour une critique de l’économie politique du signe. Paris: Éditions Gallimard, 1972.

DA VINCI, Leonardo. Trattato della pittura. Roma: Unione Cooperativa Editrice, 1890 [1632].

 

 

 


Créditos na imagem: Salvator Mundi, 2006-07. Wikimedia Commons.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Pedro Miguel Camargo da Cunha Rego

Bacharel e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo. Atualmente, cursa o Doutorado em Ciências Sociais pela mesma instituição e a Especialização em Docência na Educação Superior pelo Instituto Federal de São Paulo. É membro associado da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine).

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