Eu tenho pensado, o que não quer dizer o mesmo que exercitado, na paradoxal relação do tempo visto como a continuar e/ou a findar. Este questionamento fora “despertado” em mim quando, ao longo de minha graduação, percebi o esforço sobre-humano que as narrativas historiográficas dispersavam para uma organização, nem sempre coerente e demasiadamente retórica, do tempo histórico. Tem-se que destacar que esta não é uma tentativa de rejeição, ou mesmo de negação, do continuun na História, ou mesmo da importância desta perspectiva, tanto na produção de narrativas quanto em sua dimensão existencial, mas realçar o papel do desvelar da finitude, da fragilidade do humano e da morte inevitável das coisas.
Talvez, a ideia para este ensaio seja encarada enquanto uma ofensa ao próprio pensamento histórico, e talvez o seja de fato, mas o mais importante aqui é tentar encontrar possibilidades de se pensar a existência no tempo que enuncia um fim insuperável. A proposta é arriscar uma reflexão sobre o tempo, partindo-se da perspectiva de um estado saturnino, digo, em que o Absurdo desvela a o caráter finito do mundo humano, mesmo na possibilidade da continuidade. O esforço é para ampliar a perspectiva de abordagem do tempo, ir além de dualidades como continuidade e ruptura, diacronia e sincronia, para, com isso, pensarmos o tempo como decomposição, própria ao “momento” vida.
Destacar a face da finitude do tempo é, pelo menos assumindo a possibilidade do erro, negar o axioma “o tempo passa”. A projeção no tempo, na continuidade do tempo, no sentido tratado anteriormente, é a busca por uma cura desesperada e imediata, é a negação da possibilidade de afirmar ou negar a potência da nossa fragilidade, e de nosso agir, frente ao próprio tempo. É uma espécie de psiquiatria da conformidade. E talvez este seja dos maiores males no qual estamos habituados, tratar tudo com o status de naturalidade, processual, temporal (historicizado?). É uma paz a todo custo.
Aqui, acredito que já esteja óbvio que estas afirmativas, por mais que esta temática esteja envolvida, tem menos com o tempo histórico, pensando em uma metahistória, e mais com a dimensão existencial, o agir e o sofrer no tempo. Inegavelmente, e as teses de Benjamin dizem melhor que eu, esta perspectiva de se lançar no tempo desvela suas próprias violências. Mas, mais do que isto, enuncia o Absurdo enquanto aporia. Susan Sontag já denunciava como o historicizar deixa de ser uma questão epistêmica, própria ao pensamento da “ciência” histórica, e se torna o próprio esgotamento das possibilidades dos homens e das mulheres em suas próprias, e diversas, temporalidades e potencialidades.
Para não jogar a água com o bebê juntos da banheira, estou imaginando num processo compulsório, em que a possibilidade da surpresa pela experiência se torna impossibilitada pela transformação, mais ou menos consciente, de nossas lembranças em uma espécie de arquivo morto, possível de ser operacionalizado formalmente. Esvazia-se o próprio registro de uma experiência, não necessariamente nova, que recorte o tempo. Acredito que, ao questionarmos a experiência do/no tempo como fundamentalmente continuada e linear (diacrônica), tem-se a possibilidade de atingirmos alguns dos fundamentos “básicos” do próprio advento da modernidade, as identidades nacionais, as raízes, ou seja, fundamentalmente o que estrutura boa parte de nossa identificação, e justificação, espacial e temporal.
De certo modo, estou escrevendo aqui sobre uma espécie de despertar, não em um sentido romântico em que há certa alienação em quem não consegue perceber a fragilidade da existência no tempo, ou melhor, a inconsequente crença no “destino”. O século XX, pode-se mesmo escrever especificamente sobre este século no sentido aqui proposto, é o “tempo” da emergência de certa esquizofrenia com relação as orientações, sejam através de tradições (aproveito-me do equívoco de se pensar tradição como sinônimo de arcaico) ou do paradigma do eterno novo, digo, da inevitabilidade do tempo.
Tem-se, com isso, de retomar a fundamental questão da filosofia: valeria a pena a vida ser vivida? A magia destas palavras de Camus exigem esta reflexão sobre o tempo! A questão é central pois, continuando com o pensamento deste gênio argelino, é afirmar a possibilidade da vida, cedo ou tarde, ter de ser levada por quem a vive, e não por um ente chamado Tempo. Este exercício nada mais é do que nos retirarmos da parábola que, dizem, deveríamos percorrer. Zulmiro, personagem de Antônio Torres em Adeus, Velho, que submerge nas luzes de saturno, se vê desterrado e socado por um marasmo. Ver a vida passada deslizar por um retrovisor sem poder fazer uma única intervenção, não se perceber parte de seus irmãos e irmãs. A personagem assume, há um grande nada a sua frente após a morte do patriarca, o elo genealógico, Seu Godofredo.
Então, o que nos desloca do tempo? O que nos desperta em vida para a morte (bela, por sua insuportável incerteza e inevitável)? Acredito que ambas as questões são impossíveis de terem respostas únicas, totalizantes e/ou ontológicas. Trata-se de levantar questões que estão um pouco aquém de especulações estéticas refinadas, e mais em aberturas que experiências, sejam estas limites ou não, são capazes de proporcionar em horizontes que se fraturam. A dimensão do fim imanente no tempo é acompanhada da certeza de se existir. Acredito que a dimensão do existir fora aprisionada na constituição de um Eu a parte do mundo em que se morre. Como se o valor de se existir, se é que haja algum, fosse medido a partir do acontecimento que esse “Eu” poderia ser. Cioran ensina, “A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos atua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional. A sociedade é um inferno de salvadores!” Acredito que, pensando nos discursos políticos em que temos tropeçado, este ensinamento, tão distante cronologicamente (Breviário de Decomposição é publicada em 1949) da existência das redes sociais, nos diz muito sobre os efeitos da crença obsessiva em Kronos.
Insistiremos neste ponto em que a percepção da voracidade do tempo, que nos empurra (linearmente) para morte, e a perspectiva que o trata como o enunciado do fim (um atentado contra a existência), não são dimensões excludentes do tempo, mas enunciam modos diferentes de possibilidades da experiência, mesmo que uma esteja eclipsando a tanto tempo a outra. Mas, a verdade é que no modo como estou construindo este texto, pouco destas relações de um tempo “assim ou assado” importam, e não seria exatamente esta a ideia? Imaginemos um epitáfio, um pequeno documento em que nele se escrevem os orgulhos, arrependimentos, despedidas e esperanças na morte. Uma vida inteira condensada em palavras que, considerando que este fora escrito já na proximidade linear da morte, é lido e ouvido, no primeiro momento, com muita atenção e, posteriormente, com o baixar da poeira, seguem-se falas do tipo, “Ela/ele já estava no fim, sem muita consciência”, “Puro desespero na certeza da morte”. Ora, em algum momento, para qualquer pessoa, a morte deixa de ser certa?
Parece-me que, mesmo com as inúmeras afirmações sobre como a vida é curta, o esforço na tentativa de permanência no tempo, além da certeza final, se configura, de antemão, como uma luta perdida. Tudo indica que as diversas possibilidades de experiências “fora” do tempo, ou mesmo de atualizações da existência em esferas de tempos reduzidas, perdem em importância frente a amplitude dos acontecimentos possíveis de deixarem marcas, como gado, em alguém ou algum lugar, mesmo que a diferença, em efeito, do ato seja nula. Cria-se uma barreira para a própria experimentação do acontecimento, como se as cartas já estivessem sido dadas pela trajetória temporal. Ao contrário disto, afirmo aqui a possibilidade de reflexão (afirmação) da existência frente à morte. Trata-se de intensidade.
Não estou tentando dividir, ou (re)alocar, categorias que se referem ao tempo em diferentes dimensões. Quando escrevo sobre a intensidade, abro mão da extensão, ou mesmo de uma duração organizada. Pensemos neste momento de intensidade numa experiência específica: o beijo[1]. Independente do momento anterior ao toque dos lábios, podendo este ser tão intenso quanto o próprio beijo, devido a estratificação de lembranças e esperanças, decepções e desejos, as repetições dos movimentos dos lábios, os gostos, os toques das línguas, os perfumes da pele e do cabelo (que reservam um grande potencial reminiscente), o gostar e o desgostar, nesta situação a duração não é medida pela sua extensão, apesar dela estar ali, mas da intensidade que todos estes sentidos se manifestam, sempre mais ou menos (des)organizados.
Acredito que estes efeitos possibilitados pelo beijo, pelo abraço, pelo sexo (talvez o que mais esteja perdendo esta dimensão de intensidade), nos aproximam do tempo. Primeiro pela certeza do fim, e segundo, pois é uma luta contra, mas que pode também ser a favor, o próprio findar, afirmando o momento e o existir de uma sensibilidade que explode do próprio envolvimento do toque, do sensitivo, destes dois Outros no tempo. Experiência semelhante, e talvez mais facilmente perceptível, é o atestar do prazer ou da angustia em se perceber só, pois esta troca passa a ser diretamente com o “mundo” ao entorno, que ganha uma presença, um peso ou uma leveza, insuportável.
Entendendo-se a experiência de outro modo, enquanto transmissão e comunicação do vivido, o caráter finito, e suas potencialidade, do tempo não pode ser ignorado pois, a meu ver, há, na verdade, um realce. Diante da narrativa, que se pretende um elo, percebe-se que ela já está desintegrada na singularidade de quem narra e de quem escuta, digo, o laço entre as duas esferas de vivência (quem narra e quem escuta), que entram em contato através de semelhanças e, talvez principalmente, pelo estranhamento, é o próprio fim insuperável do que fora vivido e a tentativa, quase nunca bem sucedida enquanto estrutura, de estabilização e atribuição de sentido.
O que estou querendo afirmar, e nem sei se chega a ser uma proposição, é a percepção que determinadas experiências que envolvem o tempo, e são envolvidas por ele como uma atmosfera, podem proporcionar. A atenção necessária, sempre displicente e despreocupada, mas impactante, como o sangue da barata observado por G.H., ou a busca do flanêur, percepções tão caras ao sujeito saturnino em sua resistência ao tempo, exigem um cuidado, pois tratam-se de fissuras no tempo, como os encontros e despedidas de olhares apaixonados. Pode ser que estes momentos que desafiam o hábito, o caráter maquinal do corpo – esta frente insuperável diante da morte, como escreve Camus –, estes momentos de desestabilidade dizem mais sobre a potencial das experiências perante o tempo e a afirmação do existir perante a morte – REVOLTA! Finalizo com a bela poesia de Viviane Mosé:
Quem tem olhos pra ver o tempo
Soprando sulcos na pele
Soprando sulcos na pele
Soprando sulcos?
O tempo andou riscando meu rosto
Com uma navalha fina
Sem raiva nem rancor.
O tempo riscou meu rosto com calma
Eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença.
Acho que a vida anda passando a mão em mim.
A vida anda passando a mão em mim.
Acho que a vida anda passando.
A vida anda passando.
Acho que a vida anda.
A vida anda em mim.
Acho que há vida em mim.
A vida em mim anda passando.
Acho que a vida anda passando a mão em mim.
E por falar em sexo
Quem anda me comendo é o tempo
Na verdade faz tempo
Mas eu escondia
Porque ele me pegava à força
E por trás.
Um dia resolvi encará-lo de frente
E disse: Tempo,
Se você tem que me comer
Que seja com o meu consentimento
E me olhando nos olhos
Acho que ganhei o tempo
De lá pra cá
Ele tem sido bom comigo
Dizem que ando até remoçando.
NOTAS
[1] Parto de experiências pessoais, aliás de onde mais eu partiria?
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Créditos da Imagem: Zdzisław Beksiński, Untitled, ano desconhecido.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo / Albert Camus; tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. – 11ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2014.
CIORAN, Emil. Breviário de decomposição/ Emil. Cioran. Tradução de José Thomaz Brum. – Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
SONTAG, Susan. Sob o signo de saturno. Porto Alegre: L&PM c1980.
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura / Walter Benjamin; tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed. Revista – São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v. 1)
TORRES, Antônio. Adeus, Velho: romance. 3. ed. São Paulo: Ática 1985.
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