Quando Homer se apaixona por La poetisa

2

Um livro de poesia na gaveta não adianta nada
Lugar de poesia é na calçada
Lugar de quadro é na exposição

Sérgio Sampaio – Cada lugar em sua coisa

Em um leilão, a obra La poetisa de Joan Miró é dramaticamente disputada por Homer, Mr. Burns e Megan Matheson. A bilionária da área de tecnologia oferece o maior lance. Homer se entristece e se desespera ao se confrontar com a perda. Corre em direção à pintura para apanhá-la, mas foi barrado pela segurança e expulso do local. Lisa, sua filha, o observa com pesar.  No dia seguinte, Megan, ao receber a caixa onde estaria a pintura, a descobre vazia. Ela havia sido roubada. Inicia-se uma investigação, na qual Homer, Burns e a própria Matheson são os principais suspeitos. Essa cena abre o décimo segundo episódio da vigésima nona temporada da série The SimpsonsHomer is Where the Art Isn’t (Homer está onde a arte não está).  Contudo, aos mais familiarizados com Homer – operário e mundialmente famoso por sua “burrice” – não escapa o estranhamento daquilo que parece ser a sua paixão por uma obra de arte.

Manaceck, um detetive de seguros, é chamado para resolver o caso. Nas interrogações, fica explícita a obsessão de Homer pela pintura de Miró. Marge, esposa de Homer, intervém e procura convencer o investigador da inocência do marido e o convida para jantar. Na casa, o detetive descobre aquilo que já sabemos: Homer não tem o perfil clássico de um apreciador de arte.

Bart, o filho mais velho, então começa a desvelar a relação de Homer com aquela pintura. Ele teria sido o pai designado para levar a turma de Bart ao Museu de Belas Artes de Springfield. Lá, impaciente e entediado com o compromisso, Homer se sentou acidentalmente em frente à obra e ela capturou sua atenção. Ao observá-la, inicialmente, ele destila perguntas raivosas que expressam seu descontentamento por estar ali e por não “entender” a obra – “Pintura estúpida! O que aquilo quer dizer?”. Contudo, ele não consegue mais ignorá-la e se demora naquele encontro raivoso no começo, mas que se transforma. Homer passou o dia interagindo com a pintura abstrata até que eufórico e sorrindo gritou: “Entendi!”

Homer precisou sair arrastado do museu. Depois do encontro com La poetisa, ele não pensava em outra coisa. Ela estava presente em tudo, inclusive em seus sonhos, permitindo a ele um novo olhar sobre o mundo.  Assustado, revelou a Marge que estava amando uma pintura. Ela o tranquilizou observando que era normal ser amante de arte desde que – em tom enciumado – ela fosse apenas uma “representação”. Ele, contudo, não estava certo de que se tratava apenas disso (uma representação). O detetive escuta tudo desconfiado. Homer não parecia alguém capaz dessa sensibilidade.

Lisa intervém na conversa e procura mostrar que seu pai no fundo era muito sensível. Ela conta que Homer a havia procurado para que ela explicasse porque a obra o trazia tamanha paz. Pai e filha conversaram e dividiram felizes suas experiências sobre a pintura. Decidiram, então, rever a obra no museu. Ao realizarem a visita, descobrem-no fechado por falta de verbas. As peças seriam leiloadas (o que explica a cena inicial do episódio). Há protestos, nos quais Homer e Lisa participam, mas o prefeito Quimby esclarece que a manutenção do museu não estava nas prioridades dos gastos públicos.

O episódio se refere à polemica que envolveu as oitenta e cinco obras de Miró propriedades do Estado português que desejava vendê-las. O caso produziu revolta pelo que seria considerado um atentado ao direito à cultura. Há inúmeras outras referências e reflexões permitidas pelo enredo, como o trocadilho do título com a música Home is where your heart is de McFLy, as razões pela escolha de La poetisa, os debates sobre o consumo da arte… Mas particularmente, quero destacar dois aspectos: a demora do olhar de Homer e a interação com a obra e os debates sobre os espaços próprios à arte e seu direito de acesso.

Hans U. Gumbrecht, em um pequeno texto,[1] recolocou a pergunta sobre a relação entre arte e conhecimento. Evitando a questão se é possível aprender com a arte, ele indaga, na verdade, como uma pessoa gostaria de estabelecer essa relação (arte e conhecimento). Ele preenche o problema a partir de uma dimensão pessoal, o que leva ao enfrentamento da “experiência estética propriamente dita”. Para Gumbrecht, arte é aquilo capaz de causar descanso do conhecimento, a produção incessante de conceitos e de sentidos sobre o mundo. Ela proporciona um alívio ou, como o filósofo descreve, a capacidade de ficar quieto por um momento.[2] Trata-se de um deixar-se ser, uma pausa na inquietação e ansiedade movida pelo gesto técnico da aquisição do conhecimento moderno.

Acredito haver uma relação entre a paz que Homer diz sentir a partir da obra e a experiência que Gumbrecht evoca com a arte. A pintura absorve Homer de tal forma que ele não mais se pergunta pelo que ela queria representar, não está em questão os sentidos dela – o que ela quer dizer. Ao atender ao chamado de La poetisa, ele a incorpora, a vive e daí experimenta uma conexão profunda com o mundo, descobrindo, despropositadamente, algo novo sobre si mesmo e tornando-se mais próximo de Lisa, por exemplo. Há uma pausa no compromisso de aprender objetivamente sobre algo.

Há também um outro aspecto (político) dado pela presença de Lisa e que nos leva ao segundo ponto que quero rapidamente destacar.  A menina de oito anos em um diálogo com outros personagens sugere que colecionadores de arte ricos como Burns e Megan retiravam de operários como seu pai a oportunidade de experiências estéticas (o que nos remete ao título? – Homer is Where the Art Isn’t). De todo modo, após a solução do responsável pelo crime (sem spoiler) La poetisa foi devolvida à posse da prefeitura, mas não havia mais o museu. O dinheiro da venda das demais peças leiloadas foi utilizado para a construção de um estádio de futebol. Decidiram, então, abrigar lá a pintura de Miró. Homer não poderia estar mais feliz. La poetisa estaria junto a suas outras paixões: cerveja e futebol.

A ironia e o sarcasmo presente no episódio não deixa de inferir que o lugar da arte deveria ser onde Homer está – seja no museu no qual frequenta por acidente ou no estádio, sua paixão. Eu me lembrei do samba “Cada lugar em sua coisa” de Sérgio Sampaio citado na epígrafe. A arte para se abrigar nos corpos de homens comuns como Homer precisa estar ao alcance de seu olhar. Para tanto é preciso dar à arte o seu lugar de realização. Trata-se de popularizar as oportunidades de encontrá-la.

 


NOTAS

[1] GUMBRECHT, Hans U. Ficar quieto por um momento. In.: Serenidade, presença e poesia. Belo Horizonte: Relicário, 2016, p.31-39.

[2] A relação que Gumbrecht estabelece com a arte está diretamente ligada à filosofia de Heidegger, especialmente com a noção de Gelassenheit (calma compostura).

 

SOBRE A AUTORA

Thamara Rodrigues

Professora do curso de História da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutora em História pela UFOP. Foi pesquisadora visitante no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Stanford (2014/2017-2018). Coordena o Grupo de Pesquisa Temporalidades e Histórias Populares (UEMG/CNPq). Possui experiência nas áreas de Teoria da História, História da Historiografia Brasileira, História Pública e História do Brasil Imperial e Contemporâneo. Também possui interesse pelo estudo das Humanidades, Artes e Cultura popular.

2 comments

  1. Eduardo 16 março, 2020 at 22:40 Responder

    Que artigo maravilhoso!!! Eu acabei de assistir ao episódio dos Simpsons e vim pesquisar sobre a obra e descobri esta bela análise sobre o acesso à arte. Obrigado

Post a new comment

Veja: