Comer na terra de ninguém: identidade cultural regional e alimentação em Macaé/RJ

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Dize-me o que comes, dir-te-ei quem tu és.

Brillat-Savarin

Macaé é uma cidade do Norte Fluminense que passou por transformações aceleradas em poucas décadas. Configura atualmente um ambiente social marcado por desigualdades marcantes. É num cenário de consolidação da cidade como polo econômico em desenvolvimento, – e exatamente por estas características discrepantes de renda e pobreza – que a questão da alimentação se torna abordagem relevante; ajudando a descrever através de seu sistema, as dominâncias socioculturais atualmente vigentes no município e região[1].

A perspectiva teórica seguida se assenta na semiologia de Roland Barthes e da antropologia estrutural de Lévi-Strauss, concebendo a comida como um sistema de comunicação. Desse modo, se pode abordar a cozinha como uma linguagem, e enquanto tal, – por ser constituída por uma gramática específica – traduzir a estrutura de uma dada sociedade. Qual o alcance dessa abordagem investigativa numa cidade que passa pelo impacto da extração intensiva de jazidas de petróleo e gás em alto mar[2]?

Para além das transformações na infraestrutura demográfica, econômica e sociocultural, o município e região macaense tem testemunhado um forte processo de migração, com afluxo de contingentes de trabalhadores de diferentes regiões do país, do continente sul-americano e de outras partes do planeta.

Macaé recebeu intensos fluxos migratórios internos e de países diferentes desde a década de 1970, quando da instalação da Petrobras. Quais os impactos desta realidade na paisagem alimentar local? O que se pode apreender deste processo complexo tomado como um sistema de comunicação? Quais as características e particularidades que assumiu e assume na atualidade?

É comum ouvir de moradores de Macaé que a cidade se tornou uma “terra de ninguém”. Tal expressão surge a partir do momento que se indaga sobre as atuais características do município após a intensificação das transformações recentes na sua paisagem social e econômica. Sem dúvida, o que se destaca fortemente dessa paisagem são as mudanças abruptas no perfil demográfico e populacional. Na década de 1970, quando se instalou a Petrobras, havia em torno de 60 mil habitantes. Hoje a população local chega a 250 mil habitantes residentes. São mais de 500 empresas instaladas com filiais de mais de 50 países diferentes no complexo Brasil Offshore.

Traçar os signos dominantes da estrutura da alimentação em “terra baldia” é um desafio instigante para a sociologia da cozinha regional brasileira. Se é correto o preceito corriqueiro de que “somos o que comemos”, então, de que maneira se pode apreender as características identitárias através da comida do dia-a-dia e momentos celebrativos?

Numa pesquisa assim é possível abordar diversos espaços sociais diferentes, já que nossa perspectiva, como já foi adiantada inicialmente, é da alimentação integrando um vasto sistema de comunicação. Mas aqui, neste breve ensaio, opta-se por destacar aspectos iconográficos mais sobressalentes para apontar através de casos particulares, as forças que constituem as dominâncias culturais a serem descritas. Por exemplo, o foco na análise do Brasão e da Bandeira de Macaé (Figuras 1 e 2)[3].

Figura – 1

Reprodução: Prefeitura de Macaé

Figura – 2

Reprodução: Prefeitura de Macaé                    

O destaque para esses símbolos oficias consagrados se justifica porque contrasta fortemente com o deserto de signos e símbolos locais nos pratos do cotidiano e até mesmo em rituais celebrativos como festivais, circuitos e demais eventos gastronômicos promovidos na cidade e nos outros cinco distritos do município[4].

Na figura 1 encontra-se o Brasão de Macaé na descrição da Lei Orgânica do Município: “dois bagres, o peixe mais abundante do rio que banha a cidade, e duas palmeiras macaíbas, com seus cachos de frutos, a macaíba, coco carnudo e doce, tão apreciado pelos indígenas e que viria a dar o nome à região e à cidade: Macaé – a macaíba doce;”. Na figura 2, tem-se a Bandeira do município, “em azul (…), com duas listras brancas representando o Rio e o Mar, e uma palmeira macaíba, estilizada, com seus frutos, a doce macaba, origem do nome da Cidade.”

Observa-se que o município tem dois símbolos relacionados a ingredientes culinários, representados na heráldica do brasão e no desenho da bandeira. No primeiro, sobressai os dois peixes bagres, com os coqueiros de macaíba ao fundo. O bagre é muito abundante na foz do Rio Macaé, o maior rio com nascente e foz no Estado do Rio de Janeiro que por muito tempo serviu como identificação local, a ponto de o macaense receber a alcunha de “comedor de bagre”. Tem-se registros seguros da forte presença deste ingrediente na cozinha local e regional no século, compondo pratos como farofa, peixada, caldos, etc.

No segundo símbolo em destaque encontra-se o coqueiro de macaba, côco que é citado como provável origem do nome da cidade; constituindo iguaria muito apreciada pelos indígenas originários. Poderia se supor que com estas fortes referências simbólicas sacralizadas, tanto o bagre como o doce de macaba, constituíssem ingredientes e especiarias principais da cozinha típica da cidade, município e região. Mas não é isso que se depreende da pesquisa, como se verá.

A desterritorialização e desenraizamento observado em enclaves de extração intensa de jazidas de petróleo e gás[5], e produção de energia, reproduz-se na região de modo avassalador, tal configuração acaba provocando um forte movimento de apagamento e esquecimento das origens históricas e culturais locais[6]. Nenhum destes dois símbolos/ingredientes se encontra preservado ou promovido no espaço social da culinária doméstica ou gastronomia turística. E não há qualquer registro de algum prato típico da cidade que invoque a identidade local ou regional, como ocorre em diversos outros municípios do país.

Na investigação sobre as perdas da identidade e da cultura regional no espaço social da alimentação macaense, confirma-se algumas hipóteses. Considerando o que afirma Barthes (1982), a comida é “um sistema de comunicação, um corpo de imagens, um protocolo de usos, situações e comportamento” e os dados para compreensão desse sistema podem ser recolhidos na observação direta da vida numa dada sociedade. Abordagem semelhante encontra-se em Lévi-Strauss (1979), quando afirma que além de atuar como mediadora na relação entre a natureza (cru) e a cultura (cozido), a cozinha é concebida como uma linguagem, constituindo uma gramática específica, traduzindo a estrutura das sociedades. A atividade de cozinhar é exercida pelos mais diversos grupos sociais. Lévi-Strauss apontou seu caráter universal comparando-a à linguagem: não há sociedade sem linguagem e tampouco há alguma na qual não se cozinhe algum alimento. Reportando a essa teoria, Fischler (1995) agrega que todos os humanos falam uma língua, mas há múltiplas línguas. Ou seja, a cozinha é algo universal, mas há cozinhas diversas, baseadas em técnicas, operações e ingredientes específicos.

Para Lévi-Strauss (1979), a instauração de um sistema classificatório definindo o que é comestível do não comestível caracteriza a alimentação humana. E como enfatiza Fischler (1995), cada cozinha ou sistema culinário alimentar apresenta características particulares e cada cultura abarca uma série de regras interiorizadas que regem o consumo de alimentos e o comportamento, apoiando-se em classificações estabelecidas ou institucionalizadas. A cozinha não se resume a uma dinâmica de práticas, mas compreende representações e crenças, isto é, ideologias associadas à comida, as quais são compartilhadas por indivíduos de um determinado contexto cultural.

A especificidade de cada cozinha ainda abrange classificações, nomenclaturas, taxonomias e também um conjunto de regras internalizadas que regem o comportamento e o consumo alimentar, envolvendo diferentes significações e englobando desde a preparação e a combinação de alimentos até a colheita e o consumo. Esses aportes e acentos da abordagem são extremamente importantes, revelando práticas culinárias de indivíduos provenientes de contextos culturais diversos, como é o caso de Macaé e região.

Na pesquisa de campo sobre a sociologia da cozinha regional realizada na Baixada Litorânea encontrou-se registros importantes, com destaque ao movimento fluido e improvisado dos moradores locais, que sob o impacto das transformações sofridas na paisagem social e cultural do município, procuram assimilar ou adaptar-se às circunstâncias. Como testemunha uma entrevistada: “no dia-a-dia minha refeição muda de acordo as mudanças na minha vida e no convívio”[7]. Essas mudanças físicas e subjetivas reordenam diferentes paisagens alimentares originais, através do fluxo migratório dos trabalhadores combinam-se acervos e heranças distantes e diversas[8].

Entretanto, no âmbito das representações, valores e crenças, o que se observa no campo empírico é a reprodução dos preconceitos e ideologias das classes abastadas e dos agentes públicos, ao negligenciarem os símbolos locais e regionais, contribuindo para sua perda. No admirável novo mundo da nova Macaé, parodiando a obra de Aldous Huxley[9], não há espaço para a valorização do passado e da história dos macaenses nativos; restritos a espaços delimitados. O fluxo migratório e a hegemonia política administrativa de grupos técnicos advindos de outras regiões do país, da capital e de outros países, assolam a história cultural local, sem dar a atenção emergencial necessária[10].

Na ânsia de ser e parecer modernos, de executarem performances globalizadoras e mundializadas, as classes dominantes constituídas de forasteiros, promovem o esquecimento, apagamento e perda da memória social relacionada a culinária macaense e regional; assim como de outros traços culturais autóctones. Na “terra de ninguém”, na expressão utilizada por parte dos entrevistados, não se encontra o investimento público organizado e contínuo nas raízes histórico-culturais locais (CORREA & MOREIRA JÚNIOR, 2020). Pelo contrário, no espaço da gastronomia em especial, observa-se o esforço em reproduzir uma gramática alienada, gourmetizada, inrternacionalizada, que ignora ou dá as costas para a história social regional.

Diversos acervos culturais e culinários são negligenciados e abandonados nesse processo de apagamento. Lendas, estórias, folclore, mitos e diferentes registros em arquivos da memória são descurados, como: papa-lambida, cuscuz da casculeiro, boi pintadinho, cozinha do bagre, macaba doce, etc. Um sistema de objetos, narrativas e histórias que se perdem na amnésia sintomática de uma sociedade predadora e extrativista, cada vez mais desmemoriada.

Como não poderia deixar de ser, tal cenário facilita muito o trabalho de deciframento das origens de classe e etnia, – como está insinuado na epígrafe ao texto -, indagando simplesmente sobre o “que” se come. Pois como a alimentação compõe um sistema de comunicação e linguagem, a comida e o cardápio podem oferecer o “certificado” de identidade social.

Destarte, como o passado está associado ao atraso, ao rústico, ao caipira, ao jeca, ou seja, a tudo que deve ser esquecido – ou apenas lembrado de modo jocoso e anedótico (potencializado pelo complexo de inferioridade disseminado diante do forasteiro rico, dominante, poderoso) -, a população local, sem apoio do poder público, assiste atônita ao arruinamento da história e da memória social local e regional. O que acontece com a paisagem da culinária e alimentação macaense é o reflexo do que ocorre no sistema social geral, que ao se desenvolver avança desvalorizando os acervos culturais culinários populares, promovendo festivais gastronômicos estandartizados, desterritorializados e desenraizados. Oxalá, se fortaleça um movimento de resistência com potência para reverter este cenário melancólico.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1982.

CANDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 2001.

CORREA, Alexandre F. Culinária Macaense – receitas, serviços gastronômicos e identidade regional. Grupo de Pesquisa NESPERA – Instituto de Alimentação e Nutrição – Centro Multidisciplinar UFRJ-Macaé. (PIBIC/UFRJ), Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica – Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2020.

CORRÊA, A. F. ., & MOREIRA JÚNIOR, D. A. No bico da coruja: samba, resistência cultural e subjetividades em Macaé/RJ. Fênix – Revista De História E Estudos Culturais, 15(2), 1-16. 2020. https://doi.org/10.35355/revistafenix.v15i2.387

CORREA, A. F. ., & BARROS Buriti de , L. A Paisagem alimentar macaense em tempos de aceleração histórica: gastro-anomia e perdas culinárias na cozinha fluminense e brasileira nas comemorações do bicentenário. Fênix – Revista De História E Estudos Culturais, 19(2), 373 – 391. 2022. https://doi.org/10.35355/revistafenix.v19i2.1122

FISCHLER, Claude. El (h)omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo. Barcelona: Anagrama, 1995.

LEVI-STRAUSS, Claude. O triângulo culinário. In: SIMONIS, Yvan. Introduçãõ ao estruturalismo: Claude Lévi-Strauss ou “a paixãõ do incesto”. Lisboa: Moraes, 1979.

____. O cru e o cozido. Sãõ Paulo: Cosac & Naify, 2004.

 

 

 


NOTAS

[1] IBGE – 2020: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rj/macae.html

[2] Macaé passou as duas últimas décadas conhecida como Capital Nacional do Petróleo, lema afixado em placas e outras mídias pela cidade. Atualmente, o lema mudou para Capital Nacional da Energia, coincidindo com a abertura da nova “fase” da Cidade Energia  com a inauguração em janeiro de 2023 da Usina Termoelétrica Marlim Azul:   https://grupocmp.com.br/portfolio/usina-termoeletrica-marlim-azul/

[3] LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE MACAÉ. Art. 3º São símbolos do Município: a Bandeira, o Brasão e o Hino, representativos de sua cultura e história. https://www.mbi.com.br/mbi/biblioteca/simbolopedia/municipio-macae-rj-br/

[4] O município é dividido em seis distritos – Sede, Cachoeiros de Macaé, Córrego do Ouro, Glicério, Frade e Sana.

[5] Macaé é uma das cidades globais reconhecidas como “capitais do petróleo”. A transformação da paisagem socioambiental do município o torna exemplar típico (global case) entre outros diferentes enclaves petrolíferos, tais como as cidades de Houston (EUA) e Stavanger (Noruega).

[6] Aprofundamento sobre o tema, ver A paisagem alimentar macaense em tempos de aceleração histórica (CORREA & BARROS, 2022).

[7] Afirmação proferida por uma entrevistada, trabalhadora recém chegada em Macaé.

[8] Curiosamente, esta prática alimentar fluida e improvisada é uma das características identificadas por Antônio Cândido ao considerar na obra Parceiros de Rio Bonito a cozinha caipira paulista: “A culinária caipira seguiria essa linha, de apoiar-se no precário, no transitório, no periférico, no rústico, no simples, no improvisado”.

[9] Admirável Mundo Novo publicado em 1932 por Aldous Huxley (1894-1963):  https://www.britannica.com/biography/Aldous-Huxley

[10] Salvo pessoas e grupos locais que atuam e resistem em instituições culturais e educacionais locais e regionais.

 

 

 


Crédito na imagem: Foto: Rui Porto Filho

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Alexandre Fernandes Correa

Sociólogo com formação pós-graduada em Antropologia Cultural. Professor Associado na UFRJ-Macaé.

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