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O General da minha banda
Ensaios e opiniões

O General da minha banda 

Sigo acreditando que são nas frestas abertas pelas festas que o meu Brasil resiste e é de onde pulsa toda sua vitalidade. Dessas frestas vêm os seus suspiros de alívio diante das lutas diárias no combate a tantos dragões que teimam em lhe roubar o sorriso, a paz, a dignidade e a sua festa. Certa vez escrevi que o meu Brasil, minha terra sem malespaís que existe dentro do meu peito, é governado por um rei, o rei Luiz Gonzaga, ele mesmo, o rei do baião. Nesse meu lugar encantado e de encantarias, além de um rei, há também um General que comanda toda uma legião de devotos, seus soldados. É o General da minha banda. Mas fiquem tranquilos! Meu General vem de Aruanda e não dos porões imundos e insanos desse outro Brasil, que certamente não é o meu. São Jorge é o meu General. Jorge para uns, Ogum para outros. Glorioso guerreiro para todos nós. Da Igreja de Quintino, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, ele comanda todo o seu exército, sendo lá seu quartel general. 

Vinte e três de abril é seu dia. Nesse dia, religiosamente, se profana o sagrado e se sacraliza o profano. Festeja-se aquele que nos protege, que mata cada dragão que tenta nos prejudicar. Viva São Jorge! Viva Ogum! É o brado que se ouve a todo instante. Festejar é o verbo do dia desse grande guerreiro chamado São Jorge por uns, Ogum por outros e tendo nesse meu Brasil se transformado em apenas um. Forjado, como seu ferro sagrado, num santo só. 

Na véspera do seu dia todos se preparam para reverenciá-lo. Nas redondezas do seu quartel general, em Quintino, tudo é alegria, fé, devoção, festa e batucada. Tendinhas se perfilam pela rua Clarimundo de Melo, a rua da Igreja, vendendo toda sorte imagens, velas, fitinhas, comidas, bebidas e doces. Olha o acarajé! Grita a baiana com seu pano da costa, torço na cabeça e sua colher de pau a mexer a massa dos bolinhos de Oyá. 

Os botequins da área não dormem, parecem fazer vigília santa ao som de cavaquinhos, pandeiros, violões e tamborins. Entoam-se sambas que falam do poderoso guerreiro. Em cada esquina uma batucada. A cerveja vira água benta e, ritualisticamente, é derramada no chão antes do primeiro gole. Pro santo! Savará! Bebe-se com fé. Festeja-se com devoção.  

Do quintal de casa, nessa mesma rua da Igreja, uma senhora observa o movimento dos devotos enquanto cata o feijão e corta a couve da feijoada do dia seguinte. A carne seca, a linguiça, o lombo, o pé e a orelha de porco já estão de molho sob sua supervisão. Em breve, tudo irá para a lenha e o cheiro da feijoada irá defumar toda a redondeza. É a feijoada de Ogum. É em torno dela que se festeja e se renova a cada ano essa devoção. 

Meia noite parece dia. Quanto mais se aproxima o alvorecer do dia vinte e três mais a rua fica cheia. Os devotos de Jorge formam um mar vermelho e branco, as cores do guerreiro, nosso General. Todos se dirigem para a Igreja. Acendem-se velas. O padre benze a todos com água benta. Uma moça baixou um santo. “É Ogum rompe mato”, cochichou uma senhora ao lado. A criança na cacunda do pai. O malandro pedindo proteção. São todos soldados de Ogum, sem exceção! 

Quase cinco horas da manhã. O que antes era batucada e alvoroço, torna-se silêncio. Mais parece milagre todos se calarem. Até o bebum mais embriagado silencia e abaixa a cabeça em sinal de respeito e devoção ao nobre cavaleiro. Reza-se um padre nosso. Todos, num só coro. Mais silêncio. Meditação, talvez. Cinco horas da manhã. De dentro da Igreja, o quartel general, ecoa o toque de alvora. Ogum rompe a madrugada. Fogos de artifício colorem o céu e o barulho faz lembrar um campo de batalha. Batalha ganha! Ogum chega pra vencer demanda! Não falha! Os olhos lacrimejam. Os corações aceleram. Todos batem palmas e os vivas ao santo guerreiro ecoam pelo lugar. É, oficialmente, dia de São Jorge, o General da minha banda. O único General para o qual bato continência, ou melhor falando, bato cabeça. Ogunhê! 

Daí em diante a festa se alastra dIgreja de Quintino para toda a cidade. Ogum se torna muitos, feito as faíscas que saem da forja do seu ferro, e assim se faz presente em terreiros, em esquinas, no altar do botequim, na escola de samba, na medalha no peito do devoto, na oração da rezadeira e no imaginário de todos aqueles que creem no seu poder. 

Em cada canto uma feijoada, uma cerveja gelada, Ogum estampado no peito, o traje vermelho e branco. A todo momento uma oração, um samba, uma aglomeração. O dia vinte e três de abril é uma grande confraternização. E assim, nesse clima festivo e de pura devoção, um grupo de chorões nos faz lembrar o carinhoso Pixinguinha. Um santo, uma entidade, um orixá que é cultuado em meio a choros de bandolins, flautas e pandeiros. Entre ampolas de cervejas geladas, traçados, tremoços e esquinas. O dia vinte e três de abril também é seu dia. Bendito louvado seja o senhor, meu santo Pixinguinha! 

E assim, batucando, rezando e festejando nas frestas abertas pelas festas é que o Brasil resiste, suspira e segue em frente, com uma lança em punho, matando a cada instante um dragão diferente. Com a proteção de São Jorge, Ogum, o General da minha banda. O único General passível do meu amor e admiração. 

Que São Jorge guerreiro livre esse meu bonito e encantado Brasil de todo plano maligno arquitetado por dragões e capitães saudosos dos grilhões e dos porões de outrora. Viva o General da minha banda! Viva São Jorge! Viva Ogum! 

 


Imagem:

“São Jorge II”. Oléo sobre tela.  Wassily Kandinsky (1866-1944)

 

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2 Comments

  1. Ana Paula Macedo Gomes

    Parabéns amigo! Belíssima mensagem do nosso protetor que junto de São Sebastião, virou nosso padroeiro! Salve Ogum, Salve São Jorge!

  2. Rita farias

    Que lindo!!!! Parabéns! Que orgulho!!! Viva a São Jorge!!!👋👋👋👋

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