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O Hip-Hop e a estética africana
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O Hip-Hop e a estética africana 

OSUMARE, Halifu. The Africanist aesthetic in global hip-hop: Power moves. Springer, 2007.

O livro “The africanist aesthetic in global hip-hop: power moves” foi escrito por Halifu Osumare; coreógrafa, pesquisadora da cultura popular negra e professora emérita do Departamento de Estudos Africanos e Afro-americanos da Universidade da Califórnia. Este livro é um aprofundamento da sua pesquisa de doutorado, realizada no fim dos anos 90, pela Universidade do Hawaí. Publicada em 2007, quase dez anos depois, o livro, segundo a autora, reflete mais detidamente sobre as questões levantadas na tese.

Em Manoa, um tradicional bairro residencial de Honolulu, Osumare percebeu que os adolescentes locais, além de consumir os elementos da cultura hip-hop originária de periferias de Nova York, moldavam e performavam suas identidades a partir dela. O objetivo de sua obra é estudar a dinâmica de continuidade e ancestralidade dessas manifestações culturais.

A presença do hip-hop não só na capital, Honolulu, como também em zonas rurais esquecidas no meio do oceano pacífico, revela o caráter disseminado da identificação de jovens com a cultura negra. A globalização e os avanços tecnológicos também possuem um papel central na formação desse fenômeno. A revolução da comunicação levou ao surgimento de uma cultura popular global, na qual o hip-hop também está presente, já que ele, a partir de transmissões via satélites é visto globalmente, e não apenas nas quadras do Bronx, como quando na sua origem. Cria-se virtualmente um modo de vida baseado em mecanismos clássicos do capitalismo: o estímulo ao consumo em geral e o desenvolvimento de marcas especializadas, as grifes, que atuam como significantes materiais para este estilo de vida jovem.

Assim, o texto de Osumare procura entender como uma cultura originária de um bairro pobre de negros e latinos de Nova York tornou-se um fenômeno mundial e um dos fatores delineadores do novo milênio. Para isso ela estuda como duas forças poderosas – a mídia capitalista transnacional e a cultura popular afro-americana, permanentemente moldada por princípios africanistas – relacionam-se complexamente, por vezes disputando, dividindo e cedendo mutuamente espaços. A dinâmica dessas duas forças concede ao hip-hop um lugar na condição pós-moderna, na medida em que é um fenômeno performativo e comercializado que transcende o racionalismo europeu moderno.

A autora utiliza o termo “power moves” como uma metáfora para o valor que o hip-hop adquiriu globalmente. Esta cultura é capaz de causar um deslocamento entre a periferia e o centro, mesmo participando ativamente das dinâmicas do capitalismo. Tal dinâmica de alteração do poder se dá de forma sutil, atraindo jovens locais e os capacitando a promover uma mudança nas estruturas sociais e culturais e até mesmo nos sistemas econômicos, sendo isso possível graças à estética africanista que molda este movimento cultural. Para que uma cultura possa permanecer popular, ela deve constantemente acompanhar o deslocamento das representações e dos signos do povo, requisito que o hip-hop atende bem, graças à flexibilidade e adaptabilidade oferecida pela estética africanista. A autora ressalta ainda que o livro não pretende destacar a situação atual do hip-hop, mas definir e investigar seus padrões de internacionalização, que têm se mantido mais ou menos constantes.

A cultura africana é parte integrante da história das Américas. Ela, como qualquer outra, é um mecanismo através do qual o sujeito se representa e é negociado no mundo social. A análise histórica desse continente revela também uma tentativa de controle dessa estética cultural e dos seus produtores negros, assim como uma apropriação, seja em prol de um ganho econômico ou na forja de identidades nacionais. A cultura hip-hop é a manifestação mais recente dentro dessa longa história de expressividade vital negra. As habilidades verbais, corporais, estéticas e semióticas que constituem esta cultura são parte de uma tradição duradoura de fenômenos culturais e históricos que a autora denomina “estética africanista”, da qual o hip-hop seria herdeiro dentro de um contexto globalizado, contribuindo para a hegemonia cultural que os Estados Unidos alcançou.

Os beats produzidos pelos deejays mantêm os corpos em movimento, enquanto os emcees habilidosamente conectam as mentes através do aspecto metafórico da melodia. Em conjunto, o beat dos deejays e as rimas dos emcees criam uma conexão entre o corpo e a mente de uma maneira que se tornou irresistível para jovens em diferentes pontos do globo. Apesar de suas particularidades locais e o apelo visual visceral do hip-hop, que é um dos aspectos responsáveis pela sua expansão global, seu poder rítmico apresenta uma encarnação filosófica baseado na estética africanista. Assim, este movimento seria um produto cultural da diáspora africana, não sendo, no entanto, etnicamente homogêneo, uma vez que vários povos marginalizados do Brooklyn contribuíram não apenas à época de sua formação como continuam a agregar atualmente. As práticas musicais, a dança e a oralidade do hip-hop, contudo, apresentam traços claros de similaridade com manifestações de grupos do oeste e do centro da África.

Um dos princípios primordiais da estética africanista que reflete essa conexão transtemporal e transespacial é o poder da palavra, ou, como na cosmologia africana, Nommo. Este conceito enfatiza a mudança no agora, o que possibilita a improvisação como performance do sujeito. Podemos ver esse princípio refletido na cultura hip-hop através da dinâmica intercambiável entre o som e o movimento, que, em conjunto, formam uma estética que não é apenas um produto, mas um processo em movimento.

Segundo a autora, nommo é encarado dentro da cosmologia africana não apenas como um presente divino, mas também como uma responsabilidade. Ele oferece força vital, mas exige que os seres humanos o compartilhe com outros seres através da oralidade dos cantos e da corporeidade da dança. A figura do emcee, para Osumare, é mais um exemplo dessas conexões entre o hip-hop e a cosmologia africana. A autora faz um paralelo desta com o mito de Ananse do povo Akan, ou ainda com Esu Elegbara da crença Yourubá. A figura deste último, assim como nommo, impulsiona ao movimento de mudança, nas palavras de Osumare: “As trickster, Esu never quite seems as he appears; illusion is his game, and challenge to the status quo brings him fame.” (OSUMARE, 2007, p.38). Esses paralelos são possíveis na medida em que os emcees servem de porta vozes e possibilitadores de uma improvisação e negociação identitária. Para fazer uma analogia mais próxima a nós, pensemos aqui na figura do malandro, que negocia e incorpora diferentes identidades de acordo com a situação que enfrenta, com sabedoria e maestria.

Para Osumare, há quatro conectores que explicam o nível global do hip-hop: cultura, classe, opressão histórica e rebelião juvenil. O primeiro desses conectores, a cultura, opera somente onde a estética africanista já é predominante, criando assim uma conexão entre esses locais e o hip-hop dos Estados Unidos. Essa ligação se dá não somente nas Américas, mas também em metrópoles europeias, nas quais o imperialismo já trabalhou o suficiente para garantir uma migração que influencia profundamente os aspectos culturais desses países, assim como a maneira com que estes lidam e conceituam classe e raça. Tal fenômeno demonstra-se no desprezo e estigmatização da cultura popular em países que tiveram maior contato e trânsito cultural com os povos africanos ao contrário de países como Rússia e Japão.

O segundo conector, classe, torna-se possível por meio do espaço que o hip-hop proporciona para jovens marginalizados de todo o globo expressar seu descontentamento, além da possibilidade de mobilidade social ofertada pelo mercado multimilionário das gravadoras. Opressão histórica, o terceiro conector, dá-se a partir da identificação de diversos jovens pertencentes a etnias perseguidas, com as narrativas de outras pessoas marginalizadas e estereotipadas. Nesse nível, o rap afro-americano se torna uma metodologia para dar vazão ao sentimento de opressão. O último conector, a rebelião juvenil, é o que tem maior abrangência, uma vez que atinge um sentimento universal de revolta contra as regras impostas pelos adultos. A juventude pode ser entendida aqui não apenas no sentido mais óbvio, mas também como qualquer força rebelde que queira romper com uma regra, ou um sistema social que é imposto.

Apesar da globalização e do imperialismo cultural americano, a estética africana possibilita a inclusão de elementos locais nos grafites, danças ou raps, que integram a cultura hip-hop. Como mencionado, essas expressões artísticas em nenhuma medida pertencem a um estilo ou movimento cultural engessado, mas sim um fluxo em movimento, o qual sempre admite e engloba traços personificados característicos, o que possibilita a performatividade do individual apoiado na coletividade. Nota-se isso através do esquema de chamado e resposta presente nas batalhas de rap, não apenas por influência de grupos africanos, como também de ontologias de diversas populações subjugadas, como a polinésia, por exemplo. Isso demonstra como o consumo cultural de hip-hop é muito mais complexo do que a dinâmica dicotômica de fornecedor/consumidor na medida que:

 

[…]In this case, a cultural connection of communalism between African and Polynesian cultures facilitate adoption of black music style and function in Hawai’i as a site in the global hip-hop diaspora. In this case a youth culture phenomenon, initiated by African Americans as a contemporary manifestation of ancient African communalism, is perfectly at home to Hawaiian locals. This is the kind of intercultural resonance happening within cosmopolitan urban centers that creates today’s Hip-Hop Globe. It assures us that it is not only MTV that is underpinning this postmodernity, but certain time-honored principles of community from indigenous cultures that are not merely “floating above us” and “never quite existing,” as George Lipsitz about the attempted obliteration of indigenous cultures.(Osumare,2007,p.122)

 

A maneira que a autora aborda o fenômeno da pós-modernidade também é interessante para entender a dinâmica do hip-hop globalizado. Ela trata o conceito de forma crítica e o trabalha a partir da indissociação entre a cultura e a economia. Assim, a cultura do hip-hop apresenta uma fusão entre o capital e a cultura de rua, vendendo um padrão musical e uma linguagem própria, assim como estímulo de bens de consumo. Ao mesmo tempo, proporciona também um deslocamento das dinâmicas de poder, centralizando no desempenho dos fluxos de capital uma cultura e um povo antes subjugado. Desse modo, o hip-hop seria o signo perfeito para analisar a confusão, auto-contradição e exploração-mútua, que constitui a dinâmica entre o capitalismo e a cultura pop global.

 

Crédito das imagens: Os Eastwood Rockers. 1984. Eddie Barford / Mirrorpix / Getty Images

 

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