O nosso entrevistado de hoje é um historiador intimamente comprometido com os temas raciais e com as problemáticas inerentes ao movimento negro no Brasil. O seu ideal transcende a pesquisa, chega à sala de aula, aos congressos, e às demandas raciais que ultrapassam as páginas dos livros. Hoje iremos conhecer a história que o Felipe ensina.
Felipe Alves de Oliveira é Doutor em história pela Universidade Federal de Ouro Preto e membro Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI/UFOP). Iniciou a sua carreira em 2012, lecionando na rede pública de ensino do Estado de Minas Gerais. De 2013 a 2015, atuou como professor do Programa de Educação em Tempo Integral na cidade de Mariana. Em 2016 ocupou a mesma função na rede estadual de educação de Minas Gerais na cidade de Belo Horizonte. Em 2017 e 2018, exerceu a função de professor substituto pelo Departamento de História da UFOP. Atualmente é professor da rede privada de educação. Tem interesse nas áreas de História do Movimento Negro no Brasil, Intelectuais Negros (as), Educação e Relações étnicos-raciais (Lei. 10. 639), Imprensa Negra.
Ana Paula Santana: Boa noite, muito obrigada por ter aceitado o convite para esta entrevista, é um prazer falar com você. Eu quero te ouvir falar sobre a sua experiência com as salas de aula, sobre as suas apresentações, interesses, a sua atuação no movimento negro, mas inicio com a sua trajetória acadêmica. Fale-nos um pouco sobre a sua pesquisa de doutorado. O título da sua tese é Em busca da nov0a abolição: a trajetória do movimento negro no Brasil (1945-1964), e diante disso lhe pergunto: Como você chegou neste tema tão importante e necessário à historiografia?
Felipe Alves: Então, é uma longa história. Vou tentar ser breve. Desde a graduação eu tinha interesse nas temáticas étnico-raciais, me recordo de ter apresentado alguns trabalhos nas disciplinas de educação sobre a lei 10.639. Porém, eu acabei não avançando, pois o currículo de história era marcadamente eurocêntrico, branco e sexista. Não me recordo de ter lido intelectuais negros/as durante o curso de história. Parece algo surreal, mas é verdade. Eu fiz um curso de história sem ter lido Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento, Virgínia Bicudo, Alberto Guerreiro Ramos, Beatriz Nascimento, entre outros/as. Depois da graduação, veio o mestrado, e mais uma vez o silêncio em relação às discussões étnico-raciais. Novamente, eu me deparava com um currículo eurocêntrico. Em 2016 eu iniciei o doutorado, na época eu estudava os intelectuais do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Eu mudei a minha pesquisa após me aproximar do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI), do Coletivo Negro Braima Mané e de freqüentar as reuniões públicas do grupo de estudos GELCI, coordenado pela professora do Departamento de Letras Kassandra Muniz. Foi no GELCI que eu li pela primeira vez Angela Davis, Neusa Santos Souza, bell hooks. Dali em diante, eu iniciei meus estudos até chegar na minha atual pesquisa. Fui comprando livros, participando de eventos acadêmicos, como o COPENE e me educando nas relações étnico-raciais. Ter cursado a graduação e mestrado sem ter acesso as produções intelectuais negras dizem muito sobre como o racismo está presente nas universidades brasileiras.
APS: Felipe, a coluna é de Ensino de História, e, portanto, não poderia deixar de perguntar sobre a sua trajetória na sala de aula. Você trabalhou na Universidade e na Escola, no ensino público e particular. Conte-nos um pouco sobre a sua vivência na sala de aula, sobre a sua atuação em diferentes instituições e níveis de ensino.
FA: Então, o início não foi fácil, principalmente na universidade. Ser um professor negro num ambiente majoritariamente branco é uma experiência delicada. Eu lecionei em cursos como o direito e arquitetura, são cursos mais elitizados, e obviamente, o corpo discente é majoritariamente branco, mesmo com as cotas raciais. A insegurança me rondava constantemente. Não se reconhecer nos espaços é muito violento. Mas aos poucos, eu fui ficando mais à vontade e aprendendo a lidar com toda aquela situação. Posso dizer que foi uma experiência muito importante na minha trajetória. Sobre a minha experiência na educação, entre 2012 e 2016 eu trabalhei como educador no projeto de educação em tempo integral e lecionava conteúdos sobre cultura e patrimônio. Atualmente, trabalho numa escola da rede privada, e assim como na universidade, o início também foi difícil, por se tratar de um ambiente monocromático, são poucos os/as alunos/as negros, e também professores/as negros/as.
APS: “A democracia racial em questão: as possíveis origens do mito”, “O racismo como elo estruturante da sociedade brasileira”, “Ensinando a transgredir: a experiência do Grupo de Estudos Sobre intelectualidades Pretas- Lélia Gonzales na Universidade Federal de Ouro Preto”. Estes são alguns dos títulos das suas apresentações de trabalho. Títulos e temas que dizem muito sobre quem você é e o que você representa para mulheres negras e homens negros. Felipe, você é um homem negro, e eu suponho que tenha presenciado o racismo na Universidade. Todos nós o presenciamos. Assim, te peço para falar um pouco mais sobre isso. Como é ser um homem negro na Universidade hoje? Quais as conquistas adquiridas e quais as problemáticas que ainda precisamos enfrentar?
FA: Acho que a principal violência que eu sofri na universidade foi o racismo epistêmico. Se eu tivesse lido intelectuais negros/as na graduação, eu poderia ter tido uma trajetória distinta. Eu não estou me referindo apenas à trajetória acadêmica, mas também pessoal. Entender como funciona o racismo estrutural é um mecanismo de defesa importante num país como o nosso. Em relação a ser um homem negro na universidade, eu diria que é conviver com a solidão. A sensação de solidão e isolamento afeta nós, homens negros, mas, sobretudo as mulheres negras. Ainda somos poucos nas universidades, principalmente na pós-graduação. Como eu já disse, não se reconhecer nos espaços é muito violento. Além disso, eu diria que ainda hoje, as pessoas não nos percebem como intelectuais, a maioria nos considera como meros militantes. Existe uma desconfiança em relação a nossa intelectualidade.
Em relação aos desafios, ainda temos problemas como a ausência dos/as docentes negros/as, de disciplinas sobre a temática étnico-racial, a carência das políticas públicas de recorte racial, etc. Além disso, a atual conjuntura tende a reforçar as assimetrias raciais. Por fim, é preciso mencionar o caráter racista da estrutura universitária brasileira. Se hoje é possível observar alguma abertura, como a criação de disciplinas, cotas raciais, entre outras medidas, isso se deve a pressão exercida pelos movimentos negros nas últimas décadas. Sem pressão, nada disso teria acontecido. Por sinal, devemos continuar tensionado as estruturas.
APS: Como podemos trabalhar o racismo, as intelectualidades negras e o Movimento Negro com os nossos alunos?
FA: Como eu disse, hoje eu trabalho num colégio particular. A escola faz parte de uma rede e com isso, nós professores seguimos um cronograma padrão. O que eu tenho observado é que avançamos pouco na implementação da lei 10.639. Vou dar um exemplo, a história do Brasil do século XX não aborda os movimentos negros, (Frente Negra Brasileira, Teatro Experimental do Negro, Movimento Negro Unificado, etc). Quando há alguma menção é só pra falar que os/as negros/as foram colocados/as a margem da sociedade. Ora, não houve resistência? O que eu tenho feito é romper com os silêncios institucionais, e abordar a temática racial quando necessário. É preciso ressaltar que no contexto atual, (da escola sem partido) é sempre um risco falar sobre temas considerados “tabus”. Ainda impera a lógica da democracia racial. Mas aprendi lendo Lélia Gonzalez e Audre Lorde, que é preciso assumir os riscos de falar e “botar o dedo na ferida”. Para a minha felicidade, os/as alunos/as têm sido abertos ao diálogo. Em relação à última pergunta, penso que deveríamos assumir compromisso político de falar abertamente sobre racismo em sala de aula. O silêncio não é uma escolha num país onde a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado.
APS: Felipe, eu te conheci em 2017 diante das demandas e das discussões raciais movimentadas pelos discentes no programa de pós-graduação em história da UFOP. Eu me lembro muito bem de que você era um dos estudantes mais envolvidos com todas as cobranças e transformações que surgiam. Foi naquele momento que eu de fato entendi o quanto a pesquisa histórica é viva, e o quanto ela pode – e deve – movimentar as nossas experiências, as nossas construções. Assim, eu peço a você que fale um pouco sobre o seu envolvimento com o Movimento Negro no Brasil, sobre o seu papel de agente e construtor, seja na Universidade, nos grupos de Estudos, ou na escola.
FA: Então, eu não participo de nenhum movimento institucional. Porém, isso não significa que eu não esteja contribuindo na luta contra o racismo estrutural. Penso que falar em movimento negro é falar sobre uma luta coletiva e plural. O movimento negro somos todos nós, que cotidianamente, assumimos um compromisso ético-político contra o racismo. O movimento negro está nas comunidades, universidades, escolas, terreiros de candomblé, coletivos periféricos, escolas de samba, capoeira, entre outros.
APS: Porque tornar-se um professor de história? E mais, porque não desistir da profissão? Imagino que você tenha algumas experiências de leitura, de aula, ou de conversas com amigos, que lhe fizeram repensar os conceitos de professor e de historiador. Você pode nos falar um pouco sobre algum episódio da sua vida, algum detalhe ou página de livro que tenha transformado as suas concepções?
FA: Eu não escolhi fazer história. Até o terceiro ano do ensino médio, não almejava fazer uma graduação. Meus pais não tiveram a oportunidade de estudar, minha mãe tem o ensino fundamental incompleto e o meu pai foi se formar já adulto no ensino médio. Portanto, não havia uma cobrança para que eu fizesse uma graduação. A cobrança era no sentido ter um trabalho de carteira assinada, assim que terminasse o médio. Porém as coisas foram fluindo e eu acabei passando no vestibular da UFOP. Hoje eu posso dizer que me sinto feliz com as minhas escolhas, e não penso em desistir da profissão. Como diz bell hooks, a sala de aula ainda é um lugar revolucionário. Respondendo a última pergunta, conhecer o livro “Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade” da bell hooks foi um divisor de águas. Se eu pudesse dar uma dica para todos/as educadores/as seria essa, leiam bell hooks.
APS: Bom, agora eu vou te fazer a pergunta curinga desta primeira entrevista, tenho perguntado isto a todos os entrevistados da coluna. Esta entrevista está sendo feita em um período de pandemia, e provavelmente será postada no portal HH Magazine em alguns meses. Diante disso, quais são as suas expectativas para esse futuro próximo? E, sobretudo, quais são as suas expectativas para o futuro do Ensino de História nas escolas e nas Universidades daqui para frente? Você acredita em alguma mudança significativa no ensino, ou até mesmo em alguma mudança temporal?
FA: Difícil de responder uma pergunta tão complexa. Eu procuro ser uma pessoa otimista e esperançosa, pois assim eu consigo manter em aberto a possibilidade de imaginar um futuro verdadeiramente democrático. Eu imagino que nós vamos sentir os efeitos das políticas públicas nas próximas décadas. Uma geração de novos/as educadores/as, comprometidos com uma educação antirracista, estarão em breve na educação básica, e isso poderá trazer impactos significativos, sobretudo na consolidação da lei 10.639. Em relação às universidades, é visível o efeito positivo das políticas públicas, especialmente na graduação. As salas de aula são cada vez mais plurais, e isso é benéfico para todos nós. Me parece que o grande desafio é estender as políticas públicas para a pós-graduação, para que nós possamos ter num futuro próximo, um quadro docente mais diversificado. Pra terminar, eu reafirmo a minha esperança no futuro. O nosso povo resiste à tragédia da escravidão, e a despeito de todas as estratégias para nos matar, estamos aqui. Como diz o José Correia Leite, um dos grandes nomes do movimento negro no século XX, o nosso imperativo histórico é a luta. Seguiremos vivos e contrariando as estatísticas.
APS: Essa coluna é sobre ensino, e a nossa compreensão de Ensino de História agrega enfrentamento e lutas, experiências que transformam vidas, literatura, música, cinema… E por isso quero terminar com uma provocação. Que música, livro (não acadêmico) ou filme você recomendaria aos nossos leitores após esta entrevista?
FA: Eu recomendaria dois álbuns “Amarelo” do Emicida e “Outra Esfera” da Tássia Reis.
Ana, gratidão pelo convite!
APS: Muito obrigada Felipe! Foi um prazer te entrevistar e espero poder te encontrar e conversar com você em outras oportunidades também.
Um grande abraço!
Créditos na imagem: As manifestações antirracistas são fundamentais para a alteração das sensibilidades – Carl de Souza/ AFP.
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Ana Paula Silva Santana
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