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Resenhas

“O pântano não interessa”: a série True Detective entre traumas e temporalidades

 

1-O “esgoto gigante”: as paisagens de True Detective

Jodie Foster, excelente e premiada atriz, será a protagonista da 4ª temporada da série True Detective a ser lançada ainda em 2023. Pelo menos é o que recentemente a emissora de TV e plataforma HBO informou. A criação do escritor norte-americano Nic Pizzollato teve sua primeira temporada indo ao ar em 2014 e as seguintes em 2015 e 2017, respectivamente, mas eu obtive contato com a série apenas em 2022. Seu formato é de antologia, no qual cada temporada encerra uma trama com personagens, espaços e enredos completamente diferentes entre si. Todas as temporadas contam com 8 episódios de cerca de 60 minutos. Se você chegou até o fim deste primeiro parágrafo, deve ter percebido indícios de que os spoilers por aqui serão constantes, mas é sempre bom evidenciar.

A pergunta que poderia surgir a partir daqui é: por que estou me dedicando a falar sobre uma série policial, um gênero intensamente explorado e que, muitas vezes, apresenta enredos e personagens pouco atraentes[1]? Acho que aí se encontra a chave principal que me motiva a confeccionar estas linhas: True Detective é essencialmente diferente das demais séries policiais que eu conheço e – quando digo diferente -, refiro-me especificamente à forma de construção das personagens, à montagem do roteiro como se fosse uma grande colagem e às temporalidades existentes. Creio que boa parte dessas questões já foi explorada, mas penso que há aspectos na construção das personagens, ou melhor, na forma como cada uma delas enxerga o tempo e alguns gatilhos traumáticos ainda pouco discutidos. Nas duas próximas seções pretendo discorrer sobre tais questões.

Antes, algumas informações preliminares a respeito de caminhos e objetivos deste pequeno escrito. A internet está repleta de vídeos e textos sobre a série, voltados para curiosos, admiradores, estudiosos e público em geral. Não almejo listar todos por aqui. Cito apenas alguns exemplos como os três ensaios, de autoria do professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Fabrício Moraes (2020), publicados no importante caderno Estado da Arte do jornal O Estado de São Paulo, cujo objetivo é interpretar a forma como a série trouxe estruturas e critérios literários ao seu roteiro e ambientação e o vídeo “True Detective: decay of humanity”, disponível no Youtube, que reflete acerca da decadência da moralidade como eixo interligando as temporadas, mas com foco na primeira[2].

Para encerrar esta seção, gostaria de localizar o ambiente em que se passa a série, no caso a antologia da primeira temporada, nosso foco por hoje[3]. Recorro a alguns diálogos entre Rusty Cohle e Marty Hart, os detetives protagonistas. O primeiro se dá após saírem da cena do crime que é o leitmotiv de toda primeira temporada

 

Rust: As pessoas daqui é como se nem soubessem da existência do mundo lá fora. Parece que vivem na maldita lua.

Marty: Há todo tipo de guetos no mundo.

Rust: É tudo a mesma coisa, cara. Um esgoto gigante no espaço sideral[4].

 

O “esgoto gigante” é a área rural e pantanosa de Louisiana, uma das mais pobres unidades da federação estadunidense, entrecortada por velhas e poluentes construções industriais, entre Baton Rouge e Nova Orleans, um corredor conhecido como Beco do Câncer (Cancer Alley), e lugar que “pouco interessa”. Semeadas ao longo dessa imensa área rural encontram-se cidades pequenas e paróquias (divisão administrativa no estado de Louisiana equivalente ao condado em outras unidades da federação). É assim que Rust as define ao sair da delegacia junto com Mart “Este lugar é semelhante à memória que uma pessoa tem da cidade, e essa memória está desvanecendo.”

Tais cenários nos exibem uma imagem bem diferente da América que certos próceres do negacionismo/revisionismo histórico na esfera pública vivem a defender[5], uma América marcada pela desintegração social, cercada de fanatismo religioso, decadência, pobreza e doses de irracionalidade. Tal descrição se dá mediante uma paisagem estável, que permanece praticamente inalterada ao longo dos três marcos cronológicos da série: 1995, 2002 e 2012, recorte temporal onde se desenlaça a investigação e ocorre o desenvolvimento – um verdadeiro estudo – das personalidades dos investigadores, a questão principal na produção da HBO.

 

2- “O tempo resolve tudo” x “deixamos algo inacabado”

É no ano de 1995 que é ocorre o assassinato de Dora Longe, um crime marcado por um ritual oculto, cuja investigação sobre autoria e mandantes marcará toda a temporada. O próximo período temporal, ou seja, o ano de 2002, é marcado pela ascensão da dupla de investigadores no interior do Departamento Policial, notadamente Rust Cohle (Matthew McConaughey) e sua incrível capacidade de obter confissões dos acusados de crimes, mas também pelo afastamento total de Rust de seu parceiro Marty (Woody Harrelson) após uma briga. Por fim, temos o ano de 2012, no qual há o reencontro de ambos, após uma nova investigação que colocava em dúvida a forma como o caso Dora Lange foi solucionado em 1995. Mais importante: os 3 (três) períodos cronológicos não aparecem de modo sequenciado, como se, por exemplo, até o 3º episódio tivéssemos o desenrolar dos fatos do ano de 1995 e nos episódios subsequentes os outros marcos cronológicos. Pelo contrário, há uma colagem[6] muito bem feita desses períodos, de modo que eles vão se encontrar apenas no fim da temporada.

Os 3 (três) tempos cronológicos são marcados por um processo de desintegração moral das personagens, como se estivéssemos em um ciclo de eterna prevalência do mal sobre o bem e da escuridão sobre a luz. Mal x bem e escuridão x luz são pares de oposição muito presentes na série e que ajudam a caracterizar bem as personagens. Voltando aos protagonistas, é importante frisar que não se consegue compreender as características e o modo de se comportar e pensar de cada indivíduo logo de início, mas, pelo contrário, a construção deles se desenvolve ao longo dos 8 (oito) episódios. Nesse sentido, recorro a uma estratégia para descrevê-los brevemente, utilizando a voz das mulheres. Elas, que em True Detective, parecem ter uma expertise como poucas acerca da natureza dos homens em seus entornos.

Quando Maggie, que era esposa de Marty em 1995, é convidada para ir à delegacia em 2012 – período em que ambos já estavam separados – para falar da relação entre os investigadores, ela o define da seguinte forma “Rust era um homem bom. […] sabia exatamente quem era. Ninguém o convenceria do contrário. […] era um homem intenso, mas tinha integridade. Ele era responsável.[7]” Laurie, com quem Cohle se relacionou entre 1995 e 2002, diz: “Ele é conflituoso, então, quando nego discussões a energia aumenta.[8]” Já Marty é assim descrito por Maggie “O problema de Martin era não se conhecer. Então ele nunca soube o que desejar.[9]

A dimensão pouco falada de suas personalidades se relaciona ao modo como cada um deles enxerga o tempo, assim, interessa-nos o uso prático da história para além do campo especializado da historiografia[10]. Como afirma Berber Bevernage, os discursos da história não são neutros em relação ao passado, eles manifestam uma dimensão performativa pela qual estabelecem ativamente quebras entre passado e presente (BEVERNAGE, 2018). Um diálogo entre os detetives ocorrido numa mesa de bar em 2012, quando se completavam 10 anos que não se viam e falavam, é sintomático do que queremos demonstrar.

 

Marty: O tempo resolve tudo. Não para você. […]

Rust: Um homem lembra-se do que deve.

M: Não vivo do passado.

R: Deve ser legal.

M: Não me interessa o que você acha que me deve.

R: Não devo a você. Nós… deixamos algo inacabado. Temos de    consertar. Há dois anos trabalho nisso. Eu. Sozinho. Nunca liguei para você.

M: Porque ligaria? Isolou todos na sua vida e voltou a mim no rodízio? […] Porque eu deveria ajudá-lo?

R: Porque tem uma dívida.

M: Que cara de pau. Como assim “tenho uma dívida”?

R: O que aconteceu em 1995. É culpa sua também[11]. [grifo nosso]

 

Como se nota, Marty compreende o tempo como um agente capaz de curar, como uma entidade promotora de uma separação entre o passado e o presente, como se a própria passagem do tempo fosse capaz de produzir uma diferenciação entre passado e presente. Já Rusty, mesmo não o dizendo, parece compreender a natureza do tempo de modo diferente. O tempo não age, quem age são os homens no tempo, “Temos de consertar”, e a produção da justiça só se dará mediante a ação dos homens, no caso dos detetives para identificar, prender e punir os outros assassinos. Assim, gostaria de sugerir que a forma como cada um dos protagonistas da série percebe a natureza do tempo condiciona o seu modo de agir no interior da série.

 

3- “Gravetos do demônio” e o gigante da cicatriz: gatilhos traumáticos

Os elementos que se tornam gatilhos traumáticos são apresentados a conta gotas, de modo suavizado, e aparecem à medida que as investigações se desenvolvem e o caráter das personagens principais é desvendado. A primeira referência traumática na série vem dos “gravetos do demônio”, espécie de pequenas esculturas que parecem ser comuns na região em função da Festa de Mardi Gras “Terça-feira gorda” – festa popular de origem pagã da região de Nova Orleans. O gatilho aparece quando os investigadores, na trilha de descobrir os outros assassinos em série que agem na região pantanosa, visitam uma ex-empregada doméstica, Srª Dolores, da poderosa família Tuttle – que Rust acreditava ser a grande força política por trás de todos os crimes.

 

Rust: Srª Dolores, posso mostrar uma coisa? Veja se a senhora reconhece. [exibe desenhos dos “gravetos do demônio”]

Dolores: Conhece Carcosa? [com a face totalmente mudada]

R: O que é?

D: Ele come o tempo. A túnica dele é um vento com vozes invisíveis. […] Regozije-se. A morte não é o fim. Alegre-se! A morte não é o fim. Você conhece o Carcosa[12].

 

Neste momento, a sobrinha de Dolores intervém e ordena que os policiais saiam e a ex-empregada continua a proferir os termos “Carcosa”, soluçando e com indícios de que está prestes a ter uma crise de tosse, precisando ser acudida e beber água. A ação do trauma se dá no corpo, nos lembra Paul Ricoeur (RICOEUR, 2007, p. 84), e é impressionante a forma como o corpo de Dolores se modifica a partir do momento que visualiza os “gravetos do demônio”.

Carcosa, citada no diálogo acima, e Rei de Amarelo são duas referências incontornáveis na série e precisam ser melhor explicitadas para que os gatilhos traumáticos sejam compreendidos. Elas são explicadas quando Rust e Marty interrogam Charlie Lange, ex-marido de Dora Lange e que está preso. Após Marty perguntá-lo sobre o suspeito Reggie Ledoux que havia sido seu companheiro de cela, ele afirma:

 

“Ele disse que há um lugar onde ricos vão para venerar o demônio. Disse que sacrificam crianças. Mulheres e crianças são assassinadas lá… Um lugar chamado Carcosa e o Rei de Amarelo. Disse que há pedras velhas no bosque e as pessoas vão venerar. Disse que há matança lá. Reggie tem uma espiral nas costas, é a marca deles.[13]

 

A intertextualidade aqui é marcante. Rei de Amarelo, entidade cósmica, e Carcosa, cidade perdida, são referências que Nic Pizzollato introduziu na série a partir da obra de ficção e horror de Robert Chambers (1865-1933), cujo livro mais conhecido é justamente O Rei de Amarelo, de 1895. Esta obra faz alusão a um livro dentro do livro, cujas pessoas que o lessem enlouqueceriam e teriam suas almas perdidas.

Outro gatilho traumático acontece quando Rust visita Kelly Reider no hospital psiquiátrico em 2002 – uma garota que havia sido salva por ele em 1995.

 

Kelly: O homem com as cicatrizes era o pior.

Rust: Quais cicatrizes?

K: O gigante. Ele me fez ver o que ele fez com Billy.

R: As cicatrizes do gigante estavam no rosto? [apontando para seu próprio rosto com as mãos]

K: O rosto dele. O rosto dele. O rosto dele. [momento em que começa a gritar, se desesperar e se amedrontar[14]].

 

Mais uma vez, o gatilho para se ativar a lembrança do trauma vem a partir de uma referência – as cicatrizes do gigante – e se manifestam no corpo da pessoa que passou pela experiência traumática da violência sexual. Neste ponto, mais um detalhe nos interessa. Kelly Reider está há 7 (sete) anos em um hospital psiquiátrico quando Rust a encontra e pergunta sobre outros possíveis agressores sexuais. A médica que o acompanha assim a descreve: “Passou por behavioristas. É catatonia regressiva”. O mais importante em nossa visão neste fato é que o trauma inscrito no corpo de Kelly impede a formação de sua própria identidade (ASSMANN, 2011, p. 267).

Por outro lado, se no plano individual ocorre o impedimento da formação identitária, no plano coletivo todos esses traumas individuais são silenciados nos espaços públicos e de poder. Pelo menos é percepção de Rust sobre tudo que acontece em Louisiana, como se existisse uma grande esfera de poder, a “psicosfera”, que determina o conjunto de ações dos indivíduos e produz tais silenciamentos sobre as violências praticadas naquele espaço e sobre a qual ele se debate nas últimas cenas “Não pegamos todos.”

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ASSMANN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução Paulo Soethe (coord.). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.

BEVERNAGE, Berber. História, Memória e Violência de Estado. Tempo de Justiça. Serra/ES: Editora Milfontes, 2018. P. 23-62.

MORAES, F. True Detective: conspiração, paranoia e terror cósmico. Estado da Arte (Partes 1, 2, 3). Revista de Cultura, Artes e Ideias. São Paulo, 14/06/2020; 26/08/2020; 26/11/2020.

RICOEUR, P. A memória, a história e o esquecimento. Trad. Alain François [et al]. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. P. 84.

 

 

 


NOTAS:

[1] Agradeço a minha amiga Aniele de Almeida Crescêncio pela leitura cuidadosa da primeira versão deste texto e comentários instigantes.

[2] JACKIE’S MOVIE Reviews. True Dectetive: a decay of humanity. Youtube. 09 set. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZEHCzjk0Hrk>. Acesso em: 10 jul. 2023.

[3] A segunda temporada nem de longe se aproxima da primeira. Atenuantes desta inferioridade, sem se tornar uma justificativa, advém da pressão exercida pela HBO para que Nic Pizzollato finalizasse o roteiro em curto prazo, tendo em vista o sucesso comercial e de crítica da primeira, a substituição de Cary Fukunaga como único diretor por diversos diretores e diretoras e a trama dividida em 4 personagens diferentes. A terceira temporada apresenta muitos méritos, mas, assim como a temporada anterior, apresenta falhas e lacunas. Uma delas é o final da série, que não atende a expectativa dos espectadores.

[4] THE LONG BRIGHT DARK. [Temporada 1, Ep. 1]. True Detective. Direção: Cary Fukunaga e Nic Pizzollato. EUA, HBO Max, 2014. 59 min.

[5] NARLOCK, L. Feliz aniversário Estados Unidos, e obrigado por existir. Folha de São Paulo. São Paulo. 05 jul. 2017. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/leandro-narloch/2017/07/1898635-feliz-aniversario-estados-unidos-e-obrigado-por-existir.shtml>. Acesso em: 10 jul. 2023.

[6] O fato de a direção da temporada ter ficado a cargo exclusivamente de Cary Fukunaga parece ter sido decisivo para o sucesso dessa estratégia.

[7] HAUNTED HOUSES. [Temporada 1, Ep. 6]. True Detective. Direção: Cary Fukunaga e Nic Pizzollato. EUA, HBO Max, 2014. 58 min.

[8] THE SECRET FATE OF ALL LIFE. [Temporada 1, Ep. 5]. True Detective. Direção: Cary Fukunaga e Nic Pizzollato. EUA, HBO Max, 2014. 58 min.

[9] HAUNTED HOUSES. [Temporada 1, Ep. 6]. True Detective. Direção: Cary Fukunaga e Nic Pizzollato. EUA, HBO Max, 2014. 58 min.

[10] Entende-se perfeitamente que as estruturas temporais de uma série não são necessariamente as mesmas da vida social. Ciente dessa questão, acredita-se na validade do proposto acerca das formas como eles enxergam o tempo, admitindo-se, por óbvio, que tais concepções diferentes só existem mediante uma “permissão” do autor para que isso se dê.

[11] AFTER YOU’VE GONE. [Temporada 1, Ep. 7]. True Detective. Direção: Cary Fukunaga e Nic Pizzollato. EUA, HBO Max, 2014. 54 min.

[12] AFTER YOU’VE GONE. [Temporada 1, Ep. 7]. True Detective. Direção: Cary Fukunaga e Nic Pizzollato. EUA, HBO Max, 2014. 54 min.

[13] WHO GOES THERE. [Temporada 1, Ep. 4]. True Detective. Direção: Cary Fukunaga e Nic Pizzollato. EUA, HBO Max, 2014. 57 min.

[14] HAUNTED HOUSES. [Temporada 1, Ep. 6]. True Detective. Direção: Cary Fukunaga e Nic Pizzollato. EUA, HBO Max, 2014. 58 min.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Paisagem de Louisiana com ruínas de igreja, pântano e área industrial. Série True Dectetive. Blog Speak Mellon. Disponível em: <https://speakmellon.blogspot.com/2014/03/true-detective-minha-teoria.html>. Acesso em: 04 ago. 2023.

 

 

 

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