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Resenhas

O Peccatum Mutum: A história de Benedetta Carlini sob as lentes de Paul Verhoeven

O novo filme sobre a vida da freira italiana Benedetta Carlini é baseado na biografia escrita por Judith C. Brown, e foi dirigido por Paul Verhoeven. O impacto do lançamento foi um convite para pensarmos a importância para os estudos ligados à espiritualidade lésbica assim como do resgate dessas narrativas sobre a mística feminina.

Em função do processo inquisitorial, a vida de Benedetta Carlini está minuciosamente documentada, mais do que qualquer freira dos tempos da Contrarreforma. Isso torna-se especialmente interessante quando consideramos as revelações sobre a freira que quase foi canonizada.

Benedetta Carlini nasceu na cidade italiana de Vellano, no ano de 1590. O filme apesar de abarcar quase toda sua vida, tem um enfoque nas visões e proclamações místicas ocorridas entre 1619 e 1623, quando Benedetta era abadessa do Convento da Mãe de Deus. As investigações contidas nos documentos que deram origem a pesquisa de Judith Brown e ao filme continham, entre outras coisas, uma descrição detalhada de suas relações sexuais com outra freira.

O amor de uma freira por outra tornou-se um topos literário no século XVII, ou seja, um tema literário recorrente na época – uma acusação vexatória a mais contra uma instituição que sofria com acusações de corrupção. A fama que Benedetta adquiriu entre os populares e suas extraordinárias proclamações místicas poderiam representar uma ameaça à hierarquia da Igreja. É fundamental, portanto, pensarmos que falsas acusações sobre sua pureza poderiam ser muito mais eficazes do que simplesmente rebater as alegações de que recebia favores divinos. No entanto, o tom das acusações contidas em seu processo inquisitorial revela uma natureza muito mais complexa do que a mera tentativa de descrença em seu potencial miraculoso.

Na Europa pré-moderna pensava-se que as mulheres eram muito mais concupiscentes que os homens e eram muito mais propensas à devassidão, argumento recorrente em uma variada literatura, do campo médico ao legal e teológico. Portanto, as acusações contra mulheres nesse período são em grande medida baseadas na má conduta sexual, ou nas acusações de bruxaria. Era comum, por exemplo, se dizer que foram seduzidas pelo demônio para que tivessem relações sexuais com ele (algumas das vítimas chegam a descrever qual era a sensação de fazer amor com o diabo).

O curioso é que nos exemplos em quase todos os casos o objeto dos desejos sexuais das mulheres eram homens, o que poderia ser um indício da veracidade dessas acusações contra Benedetta, tendo em vista que para manchar sua reputação bastava que fosse colocado em questão sua castidade. O fato é que por muito tempo a Europa teve dificuldades em aceitar que uma mulher pudesse de fato estar atraída por outra. Entre as centenas de milhares de casos de homossexualidade julgados pelas cortes legais e eclesiásticas na Europa medieval e no início dos tempos modernos, não há praticamente nenhum envolvendo relações sexuais entre mulheres, o que nos oferece fortes indicativos da veracidade das acusações contra Benedetta.

Para além disso, temos ainda um interessante vislumbre das visões acerca da espiritualidade feminina na Europa do século XVII a partir da narração do caso de Carlini. O conteúdo das experiências místicas de Benedetta, quer os encaramos como revelações psicológicas, de caráter divino, ou como efeitos fisiológicos do jejum, revelam conteúdos profundamente espirituais da mística.

Apesar das visões que a acompanhavam desde a infância e a doença que a acometeu em 1615 – e que a levou a precisar do acompanhamento de Bartolomea, freira com a qual ela terá um relacionamento amoroso – suas revelações místicas eram entendidas sempre como manifestações comuns de acesso ao divino. O ponto de virada na percepção eclesiástica de seu potencial miraculoso vem numa sexta-feira da segunda semana da Quaresma, quando ela recebe os estigmas. Mesmo para o século XVII, o recebimento das chagas sagradas de Cristo era um milagre de ordem muito incomum, levando a sua eleição como abadessa entre fevereiro e maio de 1619.

A recepção dos estigmas garante a ela um lugar de destaque dentro da hierarquia da Igreja. As mulheres sempre foram proibidas de falar dentro da casa de Deus. Escreveu São Paulo que “as mulheres devem manter-se em silêncio nas igrejas” ou Tertuliano no século III “A maldição de Deus proferida sobre o seu sexo pesa ainda sobre o mundo. Sendo culpadas, vocês precisam suportar sua miséria”. O tema perdurou até que o silêncio fosse considerado uma virtude particularmente recomendada às mulheres. A posição que Benedetta passa a ocupar depois, portanto, a colocava na categoria das mulheres privilegiadas, uma vez que é concedido à Benedetta a voz que foi negada às suas irmãs, permitindo que ela proferisse Sermões, com o adendo de que como seu convento ainda não estava em completa clausura, seus sermões poderiam ser ouvidos mesmo por leigos.

De forma geral, Paul Verhoeven, diretor do filme, é conhecido pelo seu amor chocante e muitas vezes controverso. Mas, engane-se quem pensa que Verhoeven é mero adepto da provocação vácua. Como já aparente em outras obras de sua filmografia, o elenco é um aspecto fundamental: a simples constituição física de Virginie Efira (Benedetta) e Daphne Patakia (Bartolomea), dizem algo sobre suas personagens antes mesmo de sua atuação. Em Benedetta, isto se torna um dado essencial, uma vez que conta-se a história desta jovem que é, desde a infância, prometida a Jesus e tem seus prazeres carnais conscientemente reprimidos sob o discurso que “seu corpo é seu pior inimigo”, elevado ao momento máximo em cenas como a que Benedetta olha o próprio seio em um espelho improvisado. A câmera em primeiro plano, em um contra-plongée revela a potência do olhar e o do conhecimento sobre o próprio corpo. A câmera filma de baixo para cima, para dar a sensação de poder, aumento de força ou crescimento, no momento exato da tomada de consciência de Benedetta. A partir daquele momento, a personagem deixa de enxergar seu corpo como um inimigo e passa a entendê-lo como parte fundamental de seu acesso ao divino. Alia-se, ainda, alguns paralelismos cênicos mais emblemáticos. Ao chegar no convento Benedetta se coloca aos pés da virgem Maria e, na chegada de Bartolomea, ela fica aos pés da Benedetta.

O filme segue basicamente três arcos narrativos, que se entrelaçam. Um primeiro no qual se desenrola o relacionamento amoroso entre Benedetta e a recém-chegada Bartolomea, bem como a sucessão de milagres executados pela então abadessa. Uma segunda linha em que seus feitos miraculosos serão questionados por algumas autoridades eclesiásticas de Pescia, assim como serão estimulados por outros – por interesses políticos que atravessam todas as decisões do filme – culminando em seu julgamento pela Santa Inquisição. Essas duas linhas serão enfim reunidas quando Benedetta é condenada à fogueira por blasfêmia, não necessariamente por seus ditos falsos milagres, mas por suas relações sexuais lésbicas. Há ainda uma terceira linha, que independe das ações dos personagens e avança paralelamente, que se refere a peste que se alastra pela Europa e que ao final, chega a Pescia através, justamente, da vinda Núncio para o julgamento de Benedetta.

Um outro aspecto fílmico diz respeito aos efeitos visuais que são reservados para as cenas relativas a suas visões, e são propositalmente artificiais. Estas inserções, sejam elas oníricas ou milagrosas, aparecem paralelas à narrativa principal. Nos conduzem a dúvida; não temos certeza se elas são inteiramente subjetivas; não sabemos se as visões vem de fora, ou seja, do Divino ou de dentro, da imaginação (alucinação) de Benedetta.

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Conforme as tensões internas crescem exponencialmente, passamos a dialogar com diversas percepções dos mesmos fatos, ironizando parte da mitologia cristã, quando não zombando do fanatismo plástico que rege parte desses ritos, em momentos propositalmente cômicos.  É onde o diretor consegue desenvolver seus extremos sem perder as transições de vista, sentimos que os eventos acontecem rapidamente pelo aumento da sucessão de quadros, e quanto mais próximo estamos do fim do longa, mais a dúvida ou crença no carácter miraculoso da mística da freira parecem irrelevantes. A própria praga que acomete os “pecadores” é uma espécie de purificação entre o ódio e o amor. Os “maus” são punidos por ela com a aparição das chagas no Núncio – representante diplomático permanente da Santa Sé – e os bons se redimem através dela como no caso de Felicita (antiga abadessa) . Para cada vez que a possível voz do divino ecoa, percebe-se que a ira e a redenção diante do sofrimento são acompanhadas pela face assustada de seus personagens, que passaram a vida crendo em silêncio e agora presenciam na pele eventos antes apenas presentes na esfera das sagradas escrituras.

Por último evidencia-se a importância do filme. Mais do que a sodomia masculina, a sodomia entre mulheres era “o pecado que não pode ser nomeado”, o Peccatum mutum, é proveniente do medo de que mulheres – na mentalidade da época – com sua imensa capacidade de luxúria e sua limitada capacidade intelectual poderiam começar a ter ideias se soubessem desses fatos. Esses crimes, que não podem ser nomeados, literalmente não têm nome e, consequentemente, deixam poucos traços no registro histórico. Sobre esses alicerces, a sociedade ocidental construiu uma barreira impenetrável que tem resistido por quase dois mil anos. Filmes como Benedetta, portanto, tornam a investigação eclesiástica sobre a vida de Benedetta Carlini tão importantes. Aqui temos um dos raros exemplos que podemos vislumbrar na prática e com detalhes o comportamento ocidental em relação a sexualidade e a espiritualidade lésbica e estudar o mundo social no qual esse comportamento floresceu.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Brown, Judith C. Immodest acts: The life of a lesbian nun in Renaissance Italy. Oxford University Press, 1986.

BENEDETTA. Direção de Paul Verhoeven. França: Imovision, 2021 . (126 min.).

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Imovision. Disponível em: https://imovision.com.br/benedetta

 

 

 

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