O que é atualizar?

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Este comentário tem como intuito contribuir com as reflexões sobre o atualismo em Teoria da História. Categoria proposta por Valdei Lopes de Araujo e Mateus Henrique de Faria Pereira capaz de trazer intrigantes questões para o estudo da experiência do tempo contemporânea, não só na história, mas nas Humanidades em geral. Os autores abordam a referida categoria a partir da pregnância comunicativa do termo update e de suas variações em updatism, que embebecidos de experiência sinalizariam para o processo de aceleração temporal na atualidade, de forma a impactar, inclusive, nossos modos de existir, não apenas na forma de encarar o passado. O atualismo se relacionaria, desse modo, com a nossa própria maneira de nos percebermos historicamente, posto que orienta singularmente as instâncias do passado, do presente e do futuro. Esta reflexão se propõe a discutir, em um estudo com preocupações de Filosofia da História, o conceito de atualização, presente na ontologia da diferença encampada por Gilles Deleuze.

 

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As relações entre atualização e virtualidade são preocupações enfrentadas pela filosofia de Gilles Deleuze desde os seus primórdios, mais especificamente a partir das apropriações que realiza da obra de Henri Bergson. É possível ver em sua reflexão os conceitos sendo flexionados de modo a garantir uma ontologia afirmativa atravessada pela diferença, ou seja, através da modulação da multiplicidade da atual face à multiplicidade do virtual, que o autor denominará de plano de imanência. Essa seria a própria condição do pensar e do existir, em que não há um direcionamento cartesiano ou metafísico anterior, isto é, um processo de individuação que envolve um sujeito e um objeto de modo esquemático e logicista. A singularidade traz consigo, sendo o seu estatuto, a multiplicidade da/na atualidade, formando a imanência em justaposição com a multiplicidade virtual, sendo a diferença produzida a partir da interação dessas forças.

O plano da imanência se recorta, de uma forma ou de outra, em singularidades virtuais, múltiplas em sua essência, que são atualizadas como coisas, como aquilo que acontece e se posiciona no mundo. Mas isso não significa, no entanto, que ao virtual falte carga de experiência, de realidade mesmo. Em termos ontológicos o processo que se desenha é o seguinte: a multiplicidade virtual se desprende da imanência, mas esse movimento não implica, no entanto, perdas ou ganhos em termos de realidade, ou de processo histórico. O pensamento de Bergson, apropriado por Deleuze, indica um sentido para a noção de experiência: ela é pressionada pelo espaço e pela duração. É nesse momento que emerge a diferença, que é o que torna as coisas possíveis. Existiria, em Bergson, uma distinção entre multiplicidade da duração (virtual) em oposição à multiplicidade do espaço (atual). Não se trata, aqui, de pensar apenas uma unidade no múltiplo. O que está em questão é, de fato, que a duração se divide e, nesse gesto, ela muda de natureza. Nesse processo, podemos caminhar nesse sentido, os seus elementos presentes estão no plano de uma irrealização propositiva. A atualização implicará na mudança da natureza e da ordem das coisas. A duração se apresenta como virtual, dado que na atualização, que se opera por diferenciação, se evidenciam linhas divergentes. Assim, e avançando por um âmbito temporal e não espacial, a atualização significaria não outra coisa que a criação de ordens diferenciais. É um percurso dialógico de rupturas e de continuidades, porque verifica-se, pois, a marca da heterogeneidade, sendo a atualização um movimento de diferenciação, em compasso com o desenvolvimento temporal por onde se opera esse processo, que sinaliza não outra coisa do que o acontecimento. 

A passagem do virtual para o atual tem algo de parecido com a teoria aristotélica da potência e do ato, ou seja, quando o virtual, aquilo que existe, se atualiza ele deixa de ser, invariavelmente, o que era, tornando-se algo novo e diferente. O virtual, portanto, está em relação com aquilo que o difere. Existe um caráter mesmo de promissão. O virtual se transforma, chegando a desaparecer, naquilo que ele se lança e promove, movimentando todo uma ontologia (transformação). A potência e a atualização orientam, nesse sentido, o possível e o real, sendo a sua lógica implícita. A potência ainda não é acontecimento, pois apenas na atualização a realidade emerge, o que informa a imanência, o que não significa, entretanto, que ela seja, como apontamos, uma irrealidade. O virtual está inscrito no plano da possibilidade agenciadora, dado que não foi atualizado, derivando o par dialógico potencial-possível e atual-real. O que não significa, novamente, que o virtual não atualizado seja irreal, mas está no plano da condição de possibilidade. 

O virtual não é uma instância metafísica, uma abstração irreal, mas aparece na esfera da propensão a ser algo diferente na atualização. Real e possível coabitam e se informam mutuamente. Ou seja, o virtual não é uma anterioridade que se prefigura evolutivamente em direção à atualização, posto que o “virtual coexiste e acompanha o atual no seu desdobrar-se, e não é eliminado no advento da atualidade” (CRAIA, 2009, p. 117). Por isso a virtualidade, na perspectiva de Deleuze, aparece ontologicamente afirmativa. O Ser das coisas orienta-se pela diferença que se difere de si mesma (DELEUZE, 1998). Em seu movimento de expressão ele se atualiza. Enquanto virtualidade, que é algo real, ela se funda na atualização como forma de propor a emergência da diferença, daquilo que não é igual a si mesmo. Essa diferença, que flexiona virtual e atual, é assim caracterizada por Deleuze: um gesto de uma virtualidade que se está, no limite, se efetivando a si mesmo (DELEUZE, 1998). Por isso que falamos, acompanhando o filósofo francês, que o Ser das coisas só pode se apresentar como diferença, já que está sempre lançando à atualização, que é uma diferenciação. Por isso que a multiplicidade é o que acompanha essa ontologia, posto que ela determina o singular, derivando um ser único, ou algo novo, o que implica na alteração da duração. 

Essas questões já estavam postas em Diferença e repetição, em que o virtual aparecia como algo dotado de realidade. A atualização não é a condição para o virtual ser tomado como real, mas a atualização é imbricada relacionalmente com a virtualidade. O virtual, que é real, mas não atual, se projeta, doravante, na atualização; o que marca o processo da diferença, na medida que o atual nada perde de sua singularidade, ao tempo que o virtual não se torna um universal abstrato. O virtual, portanto, não é irreal, mas uma dinâmica ontológica em que a multiplicidade se coloca como fator de diferença.

As tradições de pensamento disponíveis, com intensificação na modernidade, tenderam a perceber virtualidade e atualização de forma negativa, na medida que o possível não seria real, estando fechado na possibilidade em si. Seria uma espécie de não-ser, um ainda não-ser ante a realidade como horizonte do atual. A ontologia deleuziana, por outro lado, faz a diferença emergir do gesto do flexionar essa operação ou esse movimento em si; não existindo separações postas em modo de anterioridade. E o virtual ganha, além disso, um estatuto ontológico nele mesmo como algo que existe, já que tangível e, correlatamente, agenciador (mas não prefigurador instantâneo) em modo interativo. A atualização seria, de maneira sintética, uma espécie de “dramatização onde o virtual se atualiza, e onde o processo de individuação ocorre”. Emerge, então, como acontecimento, eixo primeiro (e estrutura/estruturante) da diferença (CRAIA, 2009). 

Por isso o apelo à multiplicidade, em que virtualização e a atualização estão em modo interativo produzindo a imanência. O atual informa o virtual, e o virtual informa o atual. Falar em coexistência e em simultaneidade não seria de somenos importância. A atualização implica na realização, no acontecer; abrindo um real pluriversal, dinâmico, diferencial e não pré-estabelecido, dado que criado em modo de interação dialógica e aberta. A virtualidade como potencial e a atualidade como realidade, polos em modo cambiante, levam ao estabelecimento do mundo possível. A atualização incide na diferença, sendo um suplemento que (des)organiza o que está disponível em modo de presença virtual. A atualização, cabe dizer, não estava prevista pelo plano potencial da virtualidade, mas ela pode fazer emergir problemas colocados em sua própria condição de existência como virtual. O enunciado, a proposição inicial, a ideia, não carrega consigo o resultado da atualização em si, não a prefigura ingenuamente – daí o descompasso entre identidade e diferença. “A atualização é criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e finalidades. (LÉVY, 1996, p. 16).

Esse problema já estava, como apontado, colocado em Diferença e repetição, quando Deleuze deixava claro que o processo de atualização se faz sempre mediante a diferença, a divergência ou a diferenciação em combinação. A atualização transcende a identidade, ou uma semelhança refletida no processo. A atualização é uma diferenciação, sendo, então, uma obra de criação, movimentado toda imanência no antes, no durante e no depois. A atualização é a travessia da diferença, em que a multiplicidade do virtual se torna evidente no modo de problemas não solvidos (DELEUZE, 1998).

 

 

 


REFERÊNCIAS

CRAIA, Eladio. O Virtual: destino da ontologia de Gilles Deleuze. Revista de Filosofia: Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 107-123, jan./jun. 2009.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução: Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

DELEUZE, Gilles. O atual e o virtual. In: DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Dialogues. Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, p. 121-124, 1998.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Editora 34,2011.

PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAUJO, Valdei Lopes de. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. Vitória: Milfontes, 2019.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Rhizome, por laurelfelt. 

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Piero Detoni

Historiador, professor e psicanalista. Graduado e mestre em História pela UFOP, doutor em História Social pela USP e pós-doutor em História pela UNICAMP. Realiza pesquisa de pós-doutoramento na UFRRJ com bolsa Faperj Nota 10. Em sua tese de doutorado, abordou a experiência historiográfica no IHGB na Primeira República. Estuda, atualmente, a recepção da filosofia de Friedrich Nietzsche no Brasil. Tem interesse nos seguintes temas: Teoria da História, História da Historiografia, História Intelectual, História da Leitura e da Recepção, Ensino de História, além de História do Brasil Republicano e História Moderna e Contemporânea.

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