Para introduzir qualquer debate sobre patrimônio é preciso considerar que existem várias versões da definição de patrimônio, e que muitas delas estão atreladas à ideia de que os condutores da gestão e conservação patrimonial devem ser apenas os especialistas, profissionais. No entanto, os avanços dos estudos e práticas voltadas ao patrimônio cada vez mais revelam que o patrimônio não é apenas algo material, físico, mas trata-se de uma relação entre a identidade, lugar e memória (SMITH, 2021). O patrimônio, portanto, não pode ser reduzido aos bens materiais, uma vez que trata-se de um processo em que são identificados valores, significados sociais e culturais que dão sentido ao nosso espaço no presente. É preciso desconstruir que só os bens materiais são entendidos como patrimônio, até porque o sentido de patrimônio não é atribuído à existência física do objeto, mas é atribuído enquanto seu uso, sua importância como ferramenta de mediação entre passado e presente. Todo esse processo que constitui o patrimônio compreende uma gama de ações, como o lembrar, expressar valores e sentimentos, transmitir, etc, o que evidencia que o patrimônio não é cristalizado, mas são ações criadas e recriadas cotidianamente. O patrimônio é uma prática performática que negocia o significado do passado quando se retoma os problemas do presente – práticas guiadas por normas sociais e discursos que influenciam e são influenciados (SMITH, 2021).
Pensar em patrimônio através de discursos implica na percepção de que certos discursos configuram a forma como pensamos e agimos. Há muitos discursos, mas existe um discurso de patrimônio dominante. Smith (2021) introduz o conceito de Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), de origem eurocêntrica e ocidental, embasado no trabalho de profissionais, como arqueólogos e historiadores, em prol da preservação da cultura material valorizada. Esse discurso está relacionado fortemente à ascensão do nacionalismo europeu, em que buscou-se assegurar as identidades nacionais. No âmbito do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), o patrimônio torna-se monumento, material, aquele esteticamente agradável que deve ser preservado a fim de assegurar a identidade comum no futuro, que deve ficar sob o cuidado de especialistas, ao invés de representar os valores e significados culturais que dão sentido a esse bem, ou seja, as pessoas e as formas de uso dos bens patrimoniais tornam-se menos importantes do que a preocupação pelo material (SMITH, 2021). Depreende-se, portanto, que o Discurso Autorizado de Patrimônio não constrói apenas uma definição de patrimônio, mas molda uma mentalidade autorizada, cria um entendimento internacional autorizado que tem como consequência a exclusão dos demais entendimentos e só validam as formas de expressão e valores que colaboram com sua legitimidade. Além disso, nota-se que a influência desse discurso se dá nas legislações, políticas, pedagogias e práticas nacionais e locais.
Para romper com a mentalidade autorizada e promover uma abordagem crítica e inclusiva, é preciso ressaltar a alteridade dos sujeitos, o diálogo e a participação social. Uma vez que o patrimônio é integrante da vida das pessoas, é válido valorizar todos os contextos culturais locais, a fim de promover o diálogo como forma de valorizar e respeitar o outro, e a participação social como ferramenta para políticas públicas efetivas. No âmbito das políticas patrimoniais, descolonizar o patrimônio implica questionar os moldes da preservação baseados em modelos europeus, que como supracitado, tendem a excluir expressões culturais de grupos subalternos e buscam a legitimação de uma história única (NGOZI, 2019).
Como exposto, apesar de todos os desafios e questões em torno do campo do patrimônio cultural, como a imposição do Discurso Autorizado do Patrimônio e suas implicações, é necessário e possível o constante questionamento desse discurso, assumindo um papel político direcionado à mudança. Somente dessa forma, a gestão e a prática do patrimônio se tornarão mais inclusivas, promovendo o diálogo entre os profissionais e as comunidades de forma igualitária, além de ressaltar a justiça social diante das complexas e diferentes narrativas históricas em torno do patrimônio cultural.
REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Companhia das Letras, 2019.
SMITH, Laurajane. Desafiando o Discurso Autorizado de Patrimônio. Caderno Virtual de Turismo, v. 21, n. 2, p. 140-154, 2021.
Créditos da imagem: Patrimônio Cultural. Observatório do Patrimônio Cultural do Sudeste.
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