A revolta dos Malês de 1835 e o califado de Sokoto: caminhos do Islã Negro até as terras americanas

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Em 25 de janeiro de 2024, a maior revolta de escravizados urbanos nas Américas completou seus 189 anos. A Revolta dos Malês sacudiu a província baiana em 1835 e abalou a estrutura escravista local. Mas, de onde vieram esses escravos? Quais suas motivações e a razão da aderência de tantos participantes? Quais foram suas consequências?

A origem dos Malês é apontada pelos historiadores João José Reis e André Luís Santos nas regiões da Costa da Mina e do Sudão Central. Seus participantes eram das mais variadas etnias presentes no território, dentre elas Fula, Peul, Mandinga, Iorubá e Uolofe. Porém, havia um número considerável de indivíduos das etnias Hauçá e Nagô.

Há diversas possíveis origens para o termo malê, de acordo com Reis. O historiador estadunidense R. K. Kent associou malê a malãm, versão ioruba do termo árabe mu’allim – que remete a professor, mestre ou clérigo. O brasileiro Nina Rodrigues associou o termo ao poderoso Estado muçulmano do Mali. A versão que João Jose Reis acredita ser a mais correta, porém, é a do francês Pierre Verger, que associa a palavra a imale – palavra iorubá para Islã ou muçulmano, que por sua vez advinha de Mali (REIS, P. 115, 2003).

O Islã praticado na África é de substancial importância para as movimentações de 1835 na província baiana. No continente africano, a religião participa dos conflitos jihadistas que levam esses indivíduos a serem capturados como cativos de guerra e vendidos aos traficantes de escravos. É importante salientar que o conceito de Jihad vai além da simples ideia de guerra santa, significando o esforço do muçulmano em defesa da sua fé, podendo se tratar desde a luta contra sua própria vontade, para não cometer pecados, até o esforço militar contra ameaças externas. A religião muçulmana surgiu na península arábica no século VII e se espalhou através do profeta Muhammad, pregando a existência de um só deus e os pilares fundamentais para viver em submissão de seu livro sagrado – o Alcorão.

O Islã estava presente no continente africano desde o século VIII, trazido pelas expedições árabes de conquista e pelas caravanas de mercadores que atravessavam as rotas transaarianas. Ao longo da Idade Média, a religião ganha aderência na África. No Início da Era Moderna, angaria adeptos pelo seu caráter, favorecendo a expansão territorial de Estados expansionistas, mas também sendo refúgio aos afetados por essa mesma expansão.

No início do século XIX, há um movimento de expansão religiosa. Naquele momento, a região do noroeste africano era como um barril de pólvora acendido pelas guerras religiosas. A origem dos Malês, de acordo com João José Reis, está intimamente ligada ao califado de Sokoto (1804-1903). Osman den Fodio era membro de uma pequena elite teocrática do reino de Gobir, governado pelo rei Yunfa. Por divergências religiosas, den Fodio funda um Estado teocrático denominado Gudu e se faz imame do território. Por meio de visões que mostravam o profeta Muhammad favorável ao seu reinado, Osman declara guerra contra seu antigo reino. Vitorioso na disputa, o imame Osman den Fodio conquista as terras de Gobir e se torna chefe do califado de Sokoto. O líder do califado vende os prisioneiros de guerra capturados em seus conflitos contra o rei Yunfa e alimenta os entrepostos negreiros da baía de Benim. Suas negociações com os traficantes europeus foram indiretamente responsáveis pela presença desses escravizados na Bahia Imperial (COSTA E SILVA, 1994., P. 26).

 

O tráfico transatlântico dos escravos

Fonte: (CHOUIN, 2018, p. 366-367).


O caminho que a religião fez ao longo dos séculos pela Arábia, descendo ao continente africano pelo Magrebe através das rotas comerciais, chegando à África subsaariana e impactando numa revolta ocorrida no Brasil Imperial, denota a importância do estudo da história de forma global. Por se tratar de uma história medieval que é alheia ao continente europeu, supera as fronteiras e percebe o impacto da ação do homem no tempo (
DEGAN; PARETO JUNIOR, p.229, 2019). A ligação de uma revolta no Brasil Imperial com processos de expansão religiosa ocorridos na África subsaariana, que por sua vez advém de uma religião transportada da península arábica através das rotas comerciais transaarianas, ressalta a importância do estudo das Histórias Conectadas.

A religião muçulmana tem sua contribuição atestada em duas esferas completamente opostas. João José Reis aponta o Islamismo como base da ideologia jihadista que movimentava os conflitos político-religiosos e expansionistas em África, mas também como refúgio espiritual e moral dos humildes, ao ser a válvula de escape de pessoas que se encontravam em situação de servidão tanto no continente africano quanto em situação de diáspora no continente americano (REIS, 2003, p. 114). Do continente africano, os denominados Malês trouxeram a religião e o ideal jihadista. Entre as motivações da Revolta dos Malês estava a libertação de todo africano escravizado da província e a instituição do Islã como religião oficial da Bahia. A ideia de servidão a um povo iletrado e “infiel” inflamou o ódio revoltoso dos malês. De acordo com Marcelo Basile, a origem étnica e religiosa em similar ou comum foi vital para a integração e mobilização do conflito (BASILE, 2009, p. 72). A força desses determinantes pode ser atestada nos autos da época, obtidos através dos testemunhos dos participantes que foram presos e julgados.

Foram cerca de 600 insurgentes lutando em um conflito que durou três horas. A Revolta dos Malês iniciou-se na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835, dia de Nossa Senhora da Guia e do Senhor do Bonfim – o planejado era aproveitar o centro vazio de Salvador, visto que as comemorações ocorrem no Bonfim. A revolta haveria de ocorrer, conforme o planejado, no alvorecer do dia, entre as cinco e seis horas da manhã, porém os malês tiveram de agir rápido após um vazamento de informações, que também reduziu a quantidade de revoltosos. Uma nagô chamada Guilhermina é apontada como delatora dos planos às autoridades. João José Reis levantou a hipótese de a delação servir para provar a lealdade que a liberta tinha para com seu ex-senhor, Souza Velho (REIS, 2003, p. 88).

As consequências da revolta envolveram uma histeria racista de perseguição aos malês. Os participantes do conflito foram condenados à pena de morte, ao açoite e ao degredo – a deportação de volta às terras africanas. Entre as medidas tomadas pelas autoridades baianas, houve também a promulgação da lei 09, coincidentemente promulgada no dia 13 de maio de 1835, que legislava contra novas possíveis revoltas. No arquivo público da Bahia constam os processos de mais de 200 revoltosos. Essas punições tinham caráter exemplar para que futuros possíveis insurgentes soubessem que o império brasileiro não toleraria insurgências similares.

 

Salvador durante a Insurreição dos Malês

Fonte: https://atlas.fgv.br/marcos/o-imperador-menino-e-os-regentes/mapas/salvador-durante-rebeliao-dos-males

 

De acordo com Long e Van der Ploeg, a agência é a capacidade de delinear a vida sob as mais extremas formas de coerção (LONG; VAN DER PLOEG, 2011, p. 21). A organização da revolta, o comprometimento de seus participantes, sua motivação e a fidelidade aos seus companheiros até o momento dos julgamentos judiciais na máquina escravista do Brasil imperial constituem um exemplo da denominada agência escrava. Guilherme de Queiroz (DE SOUZA, 2021, p. 543) argumenta que, até mesmo em condições de tensão, as trocas culturais não deixam de acontecer. O espaço em que os africanos ocupavam no seu antigo continente impactou o islamismo e moldou a religião no noroeste dele, o que ocasionou as guerras religiosas que os trouxeram ao continente americano e transformou novamente a religião muçulmana com sua associação à cultura da diáspora.

Entender de onde vieram os malês, a organização desses povos em prol da sua liberdade e a repressão do Estado escravista é compreender não apenas o passado, mas a estrutura da sociedade brasileira. Perceber as bases da religião muçulmana em uma revolta contra um território cristão explica a repressão exacerbada das autoridades. Apesar disso, as permanências dessas culturas são vistas tanto no atual estado da Bahia quanto nas religiões afro-brasileiras pelo país: como o uso de termos advindos desses africanos, vestimentas e sincretismos. Em um momento de pós-verdades, a informação se torna tão acessível quanto a desinformação. A divulgação de narrativas que favoreçam grupos subalternos tanto na esfera educacional quanto na divulgação científica por profissionais da História é essencial na derrubada de mitos. A pesquisa e a abordagem de ações abolicionistas pela base da sociedade nomeiam os negros que lutaram ativamente contra a escravidão e tiveram suas identidades negligenciadas em favor da divulgação de um ‘herói branco’. Além disso, é propiciado o resgate da ancestralidade e o resguardo da memória de um povo que construiu o Brasil e é atualmente marginalizado.

 

 

 


REFERÊNCIAS

 

BASILE, Marcello. O Laboratório da Nação: A era regencial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. (org.) O Brasil Imperial, v. II, 1831-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 72.

COSTA E SILVA, Alberto da. O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX. São Paulo: Estudos Avançados-USP, 1994. p. 24.

Conceito de Jihad de acordo com o Oxford Reference: https://www.oxfordreference.com/display/10.1093/oi/authority.20110803100020733

DEGAN, Alex; PARETO JUNIOR, Lindener. História global, histórias conectadas: debates contemporâneos. Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 229-233, maio/ago. 2019.

DE SOUZA, Guilherme Queiroz. Raimundo Lúlio, a Idade Média Global e o Ensino de História: perspectivas de abordagem. Esboços, Florianópolis, v. 28, n. 48, p. 531-557, 2021.

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. Copyright © Fundação Getúlio Vargas 2023. Salvador durante a Insurreição dos Malês. Rio de Janeiro, 1998. 1 MAPA. Disponível em: https://atlas.fgv.br/marcos/o-imperador-menino-e-os-regentes/mapas/salvador-durante-rebeliao-dos-males. Acesso em: 23 jan. 2023.

LONG, N. E.; VAN DER PLOEG, Jan Douve. Heterogeneidade, ator e estrutura: para a reconstituição do conceito de estrutura. In: Os atores do desenvolvimento rural, perspectivas teóricas e práticas sociais. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2011. p. 21-48.

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. Companhia das Letras, 2003.

SANTOS, André Luís. Revolta dos Malês (1835): apontamentos sobre o levante dos Nagôs Islamizados. Revista Eletrônica Discente História, v. 7, n. 14, 2020, p.327-339

O tráfico transatlântico dos escravos: MAPA POLÍTICO. CHOUIN, 2018. 1 MAPA, COLOR. p.366-367.

 

 

 


Créditos da imagem: Reprodução.

 

 

 


SOBRE O AUTOR

Sarah Emanuelle Batista Araújo

Graduanda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto e nascida no Leste Mineiro. Possui estudos voltados a educação étnico racial e Historia dos povos negros em Africa e pela diáspora, em geral voltados para a importância da religião em movimentos de liberdade. Membra do Laboratório de Estudos Medievais (LEME-UFOP) e do POC-PIDIC.

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