O que é uma “época (histórica)”? A resposta de Yukio Mishima

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Apesar de (ainda, ou que se saiba) não existir uma máquina do tempo como a descrita por Herbert George Wells (1866-1946) no seu famoso livro, ou a capacidade de ressuscitar quem se queira[1], à semelhança do governador da ilha de Glubbdrubdrib, personagem d’ As viagens de Gulliver, uma das (supostas) preocupações ou funções de quem estuda e/ou escreve história é a de tentar identificar e caracterizar as grandes épocas, acreditando-se que seja possível captar a sua essência e descrever, com algumas palavras(-chave), o seu “espírito”.

Como consequência desse afã classificador, chegamos a expressões, no mínimo, assaz curiosas, para não dizer absurdas: “o longo século XIX”, de 1789 (ano da Revolução Francesa) a 1914 (ano do início da chamada I Guerra Mundial), ou seja, um período de cem anos durou, afinal, cento e vinte e cinco; ou então, que o século XVIII começou em 1715 (ano da morte de Luís XIV) e acabou em 1789, querendo isto dizer que, neste caso, um período de cem anos durou apenas setenta e quatro; e ainda, como exemplo final, “o século de Luís XIV”, expressão que serviria para descrever todo o século XVII, apesar de o monarca ter nascido em 1638 e ter reinado entre 1643 e 1715.

É claro que estas expressões, descrições e divisões cronológicas não significam rigorosamente nada para quem tenha como objeto de estudo o reino de Benim ou o Califado Sokoto na África Ocidental, o império Safávida no Irão, a dinastia Mogol na Índia, ou o bakufu Tokugawa no Japão, para não falar no facto de se considerar como “natural” o calendário que é utilizado e que é chamado, de há algumas décadas a esta parte, como “Era Comum”, uma “universalidade” falaciosa, com pretensões “laicas”, “seculares” e, portanto, “científicas”, mas que preserva o seu carácter “religioso”, pois não passa do calendário cristão Gregoriano com outro nome.[2]

Esta tentação de aplicar um critério homogéneo e homogeneizador às “épocas históricas” faz lembrar um diálogo entre duas personagens no capítulo 13 do livro Neve de Primavera do escritor japonês Yukio Mishima (1925-1970). Nessa conversa entre dois amigos, Shigekuni Honda e Kiyoaki Matsugae, aquele começa por dizer a este que ultimamente tem andado a pensar muito sobre a personalidade, dando como exemplo a época em que os dois viviam (inícios do século XX no Japão), a escola que frequentavam e a sociedade onde estavam inseridos, sentindo-se um estranho no meio disso tudo. De seguida, colocando a questão de o que aconteceria dali a cem anos, acaba por responder que, sem que tivessem tido qualquer participação, todas as suas ideias seriam agregadas sob um só título, ou seja, “O Pensamento da Época”, dando como exemplo a história da arte, que provava de forma irrefutável, quer se quisesse quer não, essa afirmação, pois cada época tem o seu próprio estilo e nenhum artista, vivendo numa era específica, pode transcender por completo o estilo da sua época, seja qual for o seu ponto de vista individual.

O amigo pergunta-lhe se a época deles também tinha um estilo, e Honda responde que não sabe, pois viver no meio de uma época é ignorar o estilo da mesma, tal como os peixes que nadam num aquário e que não se dão conta disso. Só o tempo é que importa, sendo este a decidir. À medida que o tempo passa, “eu [Honda] e tu [Matsugae] seremos levados inexoravelmente na vertente principal da nossa época, mesmo que não saibamos a forma com que ela se apresenta. E mais tarde, quando disserem que os jovens no início da era Taisho [1912-1926] pensavam, vestiam-se, falavam de tal e tal forma, estarão a falar de ti e de mim. Nós todos estaremos aglutinados”, ou seja, seriam colocados no mesmo recipiente e teriam o mesmo rótulo que as pessoas que eles detestavam e desprezavam, e dali a algumas décadas as pessoas iriam pensar neles os dois e no grupo que detestavam como uma coisa só, uma única entidade.

Como forma de resumir o que o amigo tinha acabado de dizer, Matsugae responde que “é a história…[e]m outras palavras, não importa o que pensamos, desejamos ou sentimos; tudo isso não tem o menor peso sobre o curso da História. É isto que quer dizer?” e o amigo, Honda, confirma.

A conversa, entretanto, continua e acaba por desembocar na questão do livre-arbítrio e de que forma a vontade dos homens faz realmente a História. Honda, imaginando que efetivamente queria alterar o curso da História, “[p]ara este fim devoto todas as minhas energias e recursos; emprego cada grama das minhas forças para subjugar a História segundo a minha vontade. Digamos também que eu tenha o prestígio e a autoridade tão necessária para que isso aconteça. Nada disso garantiria que a História prosseguisse de acordo com os meus desígnios. Por outro lado, talvez cem, duzentos ou trezentos anos depois a História se desviasse abruptamente, tomando um curso consoante às minhas visões e aos meus ideais — e isto sem que eu tivesse a menor participação com o ocorrido. Talvez a sociedade assumisse um modo que fosse uma réplica exata dos meus sonhos de cem ou duzentos anos atrás; a História, aproveitando a nova glória, que fora minha visão, sorriria para mim com fria condescendência, escarnecendo da minha ambição, enquanto as pessoas diriam: ‘Ora, a História é isso mesmo!’”

 

 

 


REFERÊNCIAS:

MISHIMA, Yukio. Mar da fertilidade [(豊饒の海)
Hōjō no Umi], volume 1: Neve de Primavera [春の雪
Haru no Yuki]. Lisboa: Editorial Presença, 1986 [1965-7].

SWIFT, Jonathan.  Travels into Several Remote Nations of the World. In Four Parts. By Lemuel Gulliver, first a Surgeon, and then a Captain of Several Ships. London: Benjamin Motte, 1726.

WELLS, H. G. The Time Machine: An Invention. London: William Heinemann, 1895.

 

 


NOTAS:

[1] Mesmo que o historiador tivesse a capacidade de ressuscitar quem quisesse, desde o princípio do mundo até ao tempo presente, e lhe ordenasse responder às perguntas que lhe dirigisse, com a condição de que as questões se reduzissem ao período em que tinha vivido, e que as respostas fossem a verdade indubitável, de nada serviria pois o historiador continuaria a ficar apenas com uma visão parcial da História, isto assumindo que a pessoa ressuscitada e o historiador conseguiam encontrar uma base comum de entendimento: ressuscitar todos os que viveram antes de nós seria – como dizer? – logisticamente complicado, pelo que, logo aqui, o historiador era forçado a escolher.

[2] No caso da(s) história(s) de Portugal e do Brasil, esses critérios, essas expressões, descrições e divisões cronológicas só fazem sentido se se considerar aquela(s) como dependente(s) e subsidiária(s) do que se passava em França e/ou na “Europa”, uma forma de auto-colonialismo intelectual, mas este é outro assunto e que fica, talvez, para outra ocasião.

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: “I want to make a poem of my life.” Modern Learning Lab by Bill Tolley.

 

 

SOBRE O AUTOR

Carimo Mohomed

Carimo Mohomed nasceu em Lourenço Marques (Moçambique) em 1973, e vive e trabalha em Lisboa. Licenciou-se em História (1995); especializou-se em Ciências Documentais (Biblioteca e Documentação, 2004), e em Cultura, Civilização e Religião Islâmicas (2006); e doutorou-se em Teoria e Análise Política (2012). Membro de várias associações académicas e de corpos editoriais de diversas publicações científicas internacionais, tem como áreas de interesse e de investigação a História e o Pensamento Político Contemporâneos do Mundo Islâmico bem como as relações entre Religião e Política, e os impactos da Modernidade, em diversos contextos civilizacionais e culturais, e a forma como a História e a Historiografia são criadas e usadas politicamente.

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