O homem de meia-idade entrou apressado e pisando firme na sala de aula que se tornara seção eleitoral, respirava rápido e superficialmente, apertando seus documentos contra as mãos. Após ser atendido pelos mesários, ele foi até cabine de votação, seus dedos apertaram rapidamente as teclas da urna e, com um soco numa das carteiras que ali estavam, o homem finalizou a operação berrando: “Agora chegou a hora do cidadão ter sua vez!”
Todos ficamos momentaneamente petrificados pela ação do sujeito, que não foi a primeira e nem a única manifestação exagerada do dia, característica de nossa mais recente eleição marcada pelo ódio e pela violência. Na arena de conflitos políticos e sociais que marcaram o debate desde o Congresso Nacional até os grupos de família em aplicativos de smartphones, a noção de ser cidadão ganhou alguns sentidos e atributos, e foi invocada com diferentes objetivos.
Demarcar os contornos de cidadania é algo feito há séculos por grupos sociais em diferentes partes do mundo, e mesmo dentro de um Estado-nação a ideia de quem é cidadão foi se transformando ao longo do tempo, em uma arena de tensões e conflitos muito mais agitados do que as discussões sobre a política brasileira em um churrasco de família do nosso tempo. O historiador Jaime Pinsky é um dos estudiosos que destaca, nas disputas sobre cidadania, o processo de ampliação dos direitos ao longo da história no mundo ocidental, desdobrando-se em três aspectos: os direitos civis (à vida, à liberdade, à igualdade perante a lei); os direitos políticos (votar e ser votado, participar dos processos decisórios da sociedade) e os direitos sociais (à saúde, à educação, ao trabalho e salário dignos).
É interessante perceber que, nos debates políticos atuais, a noção de cidadania invocada por algumas pessoas e grupos perde parte do seu potencial para garantir a dignidade e tornar a vida humana melhor e mais harmônica. Como berrou o sujeito na seção eleitoral, a “sua” noção de cidadão começa por excluir outras pessoas, excluir quem pensa diferente, eliminar o oponente. Na contramão da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a noção de ser cidadão ganha status quase de “super-poderes”, porque a defesa de seus ideais justifica certas fórmulas como andar armado e matar bandidos, usar da violência física ou simbólica para “fazer justiça”, prender pessoas e defender interesses mais particulares.
Nessa cidadania em “preto e branco”, marcada pelo certo e errado, pelo nós contra eles, a humanidade do outro desaparece, em favor do eu e da defesa de sua propriedade e suas ideias. Assim como muitos outros super-heróis das histórias em quadrinhos, o super-cidadão não procura combater a desigualdade social ou propor justiça social através da superação do capitalismo. O super-cidadão defende o que é propriedade privada, o super-cidadão justifica seus poderes com base na defesa de seus interesses. Combater o assaltante é mais importante do que criticar e resolver a pobreza.
O super-cidadão é mais um sintoma de que perdemos a possibilidade de (re)encontrar e respeitar a humanidade do outro – talvez porque tenhamos perdido a nós mesmos. Uma idosa que entrou na seção eleitoral depois do homem que berrara pela sua cidadania nos deixou surpresos: ela disse que o super-cidadão a impediu de passar na frente dele – mesmo sendo idosa e tendo preferência – pois o sujeito não queria esperar para fazer justiça.
* Jaime Pinsky traz algumas ideias bacanas sobre cidadania nesse livro organizado por ele: História da cidadania (Editora Contexto, 2003)
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Doan Ricardo Cruz
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História da Historiografia
História da Historiografia: International
Journal of Theory and History of Historiography
ISSN: 1983-9928
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