O tempo, para Tarsila

0

Falar de tempo deveria ser mais fácil. Preocupar-se com o tempo é algo constante, mas pouco se fala sobre ele. É que para falar de tempo, não basta fragmentá-lo, classificá-lo, colocar em caixinhas. Essa foi a primeira lição que a arte de Tarsila do Amaral (1886-1973) me trouxe. Sempre fiquei curiosa a respeito dos pequenos cadernos de desenhos que minha irmã fazia questão de levar para todos os lugares, junto a um lápis ou uma caneta, apesar de ela nem sempre os utilizar, até a ter a oportunidade de estudar e falar do tempo na visão de Tarsila.

Nascida na fazenda São Bernardo em Capivari, interior de São Paulo, Tarsila inicia sua trajetória na arte de forma muito próxima a experiência de outras mulheres artistas no início do século XX: vinda de uma família de elite e conservadora, estudou arte em escolas particulares e chegou a se casar, mas logo pediu pela anulação do matrimônio. Levando seus estudos em arte à diante, Tarsila viaja para estudar na França. Nesta época, estando envolvida na rotina de estudos e depois, de viagens frequentes entre a Europa e o Brasil, o tempo em suas obras aparecia tal como o vemos na maioria das vezes: dividido entre deveres, chegadas e partidas. Suas obras, até meados de 1923, apresentavam em sua maioria retratos e naturezas-mortas. A notícia da realização da Semana de Arte Moderna lhe foi dada pela amiga Anita Malfatti (1889-1964) em 1922 e, a partir da volta de Tarsila ao Brasil, o conceito da temporalidade passaria a aparecer com frequência em suas obras, já mais próximas do estilo cubista. O que se fará presente é, mais especificamente, o tempo da paisagem. Para tal, a expedição de Tarsila a Minas Gerais em 1924 fora essencial. Durante a viagem, a artista produziu diversos estudos de observação, em linhas simples, mas que deixavam clara a temporalidade como um de seus assuntos principais (ver MATOS, 2010 e MORAES, 2014). Aqui, Tarsila se deparou com a disparidades do tempo paisagem: de Capivari a São Paulo, de São Paulo a Paris, de Paris a Minas Gerais. Mas afinal, que tempo é este e como Tarsila o interpreta?

Na fase Pau-Brasil, identificada entre 1924 e 1928, pinturas como Estação de Ferro Central do Brasil (1924), Carnaval em Madureira (1924), São Paulo (1924) e A Gare (1925) tratam do tempo veloz, das efemeridades das cidades grandes. O movimento indicado por Tarsila através das pessoas e meios de transporte, somado ao uso de cores vibrantes, clareia esta ideia. Já em obras como Morro de Favela (1924), A Feira II (1925) e O Mamoeiro (1925), a temporalidade se suaviza, o olhar desacelera e Tarsila nos convida e refletir sobre as vivências fora do âmbito do lucro desmedido, por exemplo. A fase Antropofágica aprofunda estas concepções, à medida em que os elementos da composição passam a ser escolhidos e posicionados de forma mais objetiva. O tempo rural ou da natureza ganha destaque, como vemos em Abaporu (1928), Idílio (1929), Cartão-Postal (1929) e Paisagem com ponte (1931), por exemplo. Nestes casos, o uso das cores vibrantes já não se faz tão presente, aspecto que corrobora com a sensação de calma que a artista busca passar. Por fim, a fase Social escancara a desigualdade como produto do tempo fugaz, como em Operários e Segunda Classe, ambas de 1933. É importante destacar que cada uma destas fases se liga a momentos-chave das esferas sociopolítica e cultural brasileiras; nas duas primeiras fases, o tempo é observado e posto em pauta de maneira reflexiva. A partir de 1930, o tempo das obras surge como consequência, isto é, a artista passa a expor de perto as contradições da vida através da desigualdade, além de outras questões. Observa-se que a passagem do tempo não deixou de ser central à produção da artista, tendo sido reinventada de acordo com os questionamentos propostos para cada momento.

Partindo de suas experiências individuais, a perspectiva temporal de Tarsila do Amaral nos parece bastante atual. E é. A divisão entre o tempo urbano e o tempo da natureza – muitas vezes interpretado pela artista como o tempo do ambiente rural, aparece como um lembrete: ei, o tempo existe. Ao estudar a obra e trajetória de Tarsila, entendi que para cada desenho nos cadernos de minha irmã havia um tempo. O caderninho ao fundo da mochila aguardava apenas o reconhecimento do tempo presente para sair e ganhar um novo registro. E eu, que até então continuava a dividir rigorosamente meu tempo, decidi levar meu próprio caderno, ao invés de deixá-lo em casa, para quando chegasse a “hora de desenhar”. Percebi que o tempo é inteiro, mas nossa mania de querer reduzí-lo ou esticá-lo, de achar o sono desnecessário quando há tanto a se fazer ou adiantar, é que se torna a nossa maior luta. Pensar no tempo da paisagem é um exercício simples, mas que ajuda na compreensão de um tempo livre de amarras internas e externas; lembrar-se de uma paisagem familiar ou não, e como é que, estando nela, imaginamos o passar das horas. É diferente da rotina? Por quê? O tempo paisagem, enquanto tema artístico e objeto de estudo, segue reacendendo reflexões para além das mudanças intrínsecas ao gênero paisagem ao longo da História. Isto porque o modo como vemos e aplicamos nosso tempo também muda. E é importante que não se crie essa distância entre o tempo fragmento e o tempo em si, aquele no qual vivemos de fato.

 

 

 


REFERÊNCIAS

MATOS, Júlia Silveira. As estruturas do cotidiano brasileiro na obra de Tarsila do Amaral. In: Historiae. Rio Grande, v. 1 n. 2, 2010. P. 85-102. Disponível em: https://periodicos.furg.br/hist/article/view/2287/1184

MORAES, Naymme Tatyane Almeida. A paisagem como um discurso em Tarsila do Amaral, a construção de um diálogo entre o espaço social e pictórico na década de vinte do século XX no Brasil: do Pau Brasil a Antropofagia. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014.

Obras. In: Tarsila do Amaral. [site oficial da artista] São Paulo. Acesso em 17 de maio de 2022. Disponível em: https://tarsiladoamaral.com.br/obras/

 

 

 


Crédito na imagem: Divulgação. O Mamoeiro. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1623/o-mamoeiro.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

No comments

Veja:

Ponte Cais

Nas crostas do mar brotam anjos voadores com plumas de papagaios suburbanos a sobrevoar nos tímpanos da cidade que sangra desejos de amar os emigrantes ...