Publicado em 1986 no periódico American Historical Review, o artigo “O gênero como categoria útil de análise”, de autoria de Joan Wallach Scott, é para os estudos em história das mulheres e para a história dos feminismos uma referência basilar. Nascida na cidade de Nova York em 1941, Scott é uma historiadora feminista norte-americana. É professora de Ciências Sociais na cátedra Harold F. Linder, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton. Sua obra, cuja contribuição aos estudos sobre gênero e história social é bastante reconhecida em diversos países, propõe reconfigurações e rearticulações junto às historiografias através da interdisciplinaridade e da análise crítica. Nesse seu texto mais conhecido, a autora trabalha as disposições relacionais “gênero”, “poder” e “conhecimento”. Dentre as principais teses defendidas destaca-se a definição do gênero não apenas como elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, mas como uma forma possível de atribuição de significados às relações de poder. A autora se dedica à discussão sobre os processos históricos e as suas interconexões com o gênero, problematizando os sentidos dos papéis sexuais. A contribuição do artigo é de grande relevância, repercutindo através da constituição e da institucionalização dos estudos de gêneros no Brasil. Joan Scott se propôs a reavaliar a sua produção intelectual lançando o livro A fantasia da história feminista, publicado em 2024 no Brasil, contando com a generosa e perspicaz apresentação de Maria da Glória de Oliveira. Passemos, assim, a resenha da obra.

Em A fantasia da história feminista, Joan Scott se dedica a objetivos diversos, porém, entrelaçados. O livro se inicia com uma retomada sobre a história dos feminismos e da sua fortuna crítica. Ela questiona se os objetivos divididos com as suas contemporâneas em relação a constituição e a inclusão da história feminista, ainda nas décadas de 1970 e 1980, foram realmente alcançados. Ela observa que embora a institucionalização tenha aberto portas para a criação de cátedras, de disciplinas e de outras instâncias que buscaram incluir e incentivar a continuidade da produção de conhecimento sobre o movimento, há, ainda, itinerários a serem percorridos. Seu primeiro questionamento diz respeito ao insistente isolamento que percebe nos estudos feministas. Quer dizer, há pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam a esses estudos, mas o que a autora americana destaca é: será que o gênero, enquanto categoria útil de análise, está sendo levado em conta pelas historiografias, ou será que lhe foi apenas conferido um lugar específico, encontrando-se, ainda hoje, numa comunidade quase fechada em si mesma? Ou ainda, o que está por trás do destaque conferido às pesquisas feministas que, ainda assim, não permitem a elas um alcance junto às escritas da história enquanto referências pulsantes para a sua reavaliação? Os estudos feministas permanecem em uma condição de “suplemento” para as historiografias disponíveis?
Os limites da institucionalização dos estudos da história feminista levam, nesse sentido, a autora a fazer uma revisão da sua própria obra, com destaque para The Glassworkers of Carmaux [Os vidreiros de Carmaux] e “O gênero como categoria útil de análise”. Joan Scott identifica, em sua própria análise, certa “frieza”, aqui entendida como a falta de fantasia ou a falta da observação dos processos psíquicos que fogem à leitura objetiva em uma abordagem de pesquisa. A transparência quanto à importância do ato da reavaliação e o avanço em direção aos problemas psicanalíticos são o cerne da sua preocupação inicial no livro em tela. Isso porque ao elaborar as suas considerações acerca da bibliografia já produzida pela história feminista e seus contextos de produção, Scott discute a sua relação com os ativismos, levando em consideração os impulsos emocionais e de ação envolvidos (ou não) no processo da sua institucionalização.
Na introdução da obra, a autora explica o que a motivou a fazer esta retomada crítica da sua produção, bem como os motivos que a fizeram avançar por direcionamentos e contribuições psicanalíticas, sendo as obras Michel de Certeau relevantes para as suas análises. Trata-se de um envolvimento, como a própria autora destaca, com a “teoria psicanalítica como uma prática de leitura crítica para a história” (SCOTT, 2014, p. 19). Trabalhando a diferença sexual através da teoria psicanalítica que a associa a um dilema insolúvel e enfatizando a mutabilidade do gênero ela nos indica o seguinte:
Em outras palavras, gênero não é a atribuição de papéis a corpos fisicamente diferentes, mas a atribuição de significado a algo que sempre escapa uma definição. O que a psicanálise ajuda a esclarecer é impossibilidade definitiva de conhecer a diferença sexual, e a natureza da busca de seu conhecimento, por meio da fantasia, da identificação e da projeção. A vertigem que resulta à historiadora priva-a da certeza de suas categorias de análise e a deixa buscando apenas as perguntas certas a serem feitas. (SCOTT, 2024, p. 22)
Mutabilidade e instabilidade são duas noções que permeiam a leitura de Scott. Além do gênero, a categoria “mulheres” é considerada, não de outro modo, pelos seus fundamentos históricos. A construção, notadamente a construção social, é por isso mesmo posta em questionamento pela autora, que aqui dialoga com Judith Butler quando esta afirma que “o que é construído é, por necessidade, anterior à construção, mesmo quando não parece haver qualquer acesso a esse momento anterior, exceto através da construção” (Judith Butler apud SCOTT, 2024, p. 29). Uma reflexão semelhante se dá quando Joan Scott explica a fantasia como uma forma de propiciar esteio a “algo indeterminado” ou a “algo faltante”, isto é, a definição concreta da diferença sexual. Entendido como um conceito fronteiriço, a diferença sexual traz a sensação da falta, da ausência e reflete a impossibilidade do seu conhecimento absoluto. A fantasia, na obra da autora americana, apresenta-se, por conseguinte, como elemento que procura suprir essa dificuldade de sobreposição das dimensões psíquicas, somáticas e sociais da diferença sexual, ainda que tais dimensões não sejam justapostas. É a partir da fantasia e, sobretudo da visão do Outro sobre nós, que se articulam identidades e interesses, estabelecem-se significados e atribuições de papéis que variam ao longo da história. Scott (2024, p. 42) nos traz uma definição do gênero segundo esta perspectiva:
Gênero então, é o estudo da relação entre o normativo e o psíquico. Gênero consiste nas articulações historicamente específicas e, em última instância, incontroláveis que visam resolver os paradoxos da diferença sexual, dirigindo a fantasia a algum fim político ou social: mobilização de grupo, construção da nação, apoio a uma estrutura familiar específica, consolidação étnica, ou prática religiosa.
Essa definição nos indica uma transformação importante na compreensão do gênero não apenas enquanto realidade social, mas mesmo enquanto categoria útil de análise. Observa-se que ao mesmo tempo em que a historiadora estende as possibilidades de compreensão e de leitura crítica do gênero também como articulação de elementos psíquicos, a abordagem das categorias enquanto precedentes às análises em si, algo que ela diz estar presente em seus trabalhos anteriores, apresenta agora uma nova perspectiva em que elas estão mergulhadas e emergem ao decorrer das análises.
No primeiro capítulo, Scott ensaia uma história do feminismo, em que o enfoque está na dificuldade de se prever o futuro do movimento. Há, segundo a autora, uma diferença fundamental entre o que foi feito e o que há por fazer, e essa diferença estaria, à princípio, na perda do caráter de “campanha” assumido pelo movimento antes da institucionalização da história das mulheres. Após esta conquista, Scott aponta que houve uma dispersão dos ativismos, assim como uma mudança de modos de ação. Em linhas gerais, ela problematiza o que seria o enfoque acadêmico que se excede em discussões teóricas em detrimento da continuidade da busca pela promoção das agendas feministas. Essa discussão se desenvolve de acordo com a sua percepção acerca de uma dificuldade de apreensão do que seria a especificidade dos feminismos. Ela, então, prossegue afirmando: “a especificidade histórica do feminismo provém do fato de que ele trabalha internamente e contra qualquer que sejam as premissas fundamentais prevalecentes de seu tempo. Sua força crítica decorre do fato de que ele expõe as contradições em sistemas que afirmam ser coerentes” (SCOTT, 2024, p. 61).
O que se pretende com essa colocação é exprimir a sua preocupação com certa acomodação dos ativismos após a institucionalização da história das mulheres, ainda que tenhamos avançado em campos como a história queer e as diversas histórias feministas ao redor do mundo. Nesse ponto, ela questiona, mais uma vez, o que propôs em suas obras anteriores ao ponderar que “se raça, sexualidade, etnia e nacionalidade desempenham papéis igualmente significativos na definição de ‘mulheres’, então o gênero não é uma categoria suficientemente útil” (SCOTT, 2024, p. 65). Diante de incertezas, melancolias, nostalgias e lapsos de empolgação pelo futuro, Scott deixa claro que o problema, “mesmo com que ajudamos a produzir, é desistir do trabalho de crítica, e isso vale para nossa identidade, tanto como historiadoras quanto como feministas” (SCOTT, 2024, p. 67). A lição da autora para nós, pesquisadoras e pesquisadores do gênero, é justamente essa transparência pretendida ao falar sobre as dificuldades em se aceitar questionamentos às nossas escritas da história, bem como as possibilidades que terminam por se esvair diante da recusa em avançar pelos horizontes críticos, aceitando, assim, as limitações das nossas perspectivas presentes.
O segundo capítulo é dedicado à reflexão sobre o fantasy echo [eco da fantasia], noção que evoca o significado de uma identificação que se estabelece pela descoberta de semelhanças entre atores presentes e passados, conformando planos de historicidades. O eco da fantasia promove certa ideia especificidade histórica. O intento da aplicação da noção de fantasia é, justamente, evitar atribuições essencialistas. Ao considerar a identidade como mutável, e não fixa e perene, argumenta-se que o eco da fantasia
não é um rótulo que, uma vez aplicado, explica a identidade. É antes a designação de um conjunto de operações psíquicas por meio das quais certas categorias de identidade são empregadas para omitir diferenças históricas e criar continuidades aparentes. O fantasy echo é uma ferramenta para analistas de movimentos sociais e políticos, ao lerem materiais históricos em sua especificidade e particularidade. (SCOTT, 2024. p. 101)
Dito isso, Joan Scott trabalha, ainda neste mesmo capítulo, as duas fantasias por ela consideradas mais presentes na história feminista: a da “oradora” e a da “mãe”.
O terceiro capítulo é onde a autora americana inicia as demonstrações da aplicação da fantasia enquanto instrumento de análise. Seu primeiro exemplo é, não de outra forma, o próprio movimento feminista. Tomando como mote as crises políticas decorrentes dos episódios terroristas que tiveram como alvo os Estados Unidos, Scott chama a atenção para os seus efeitos não apenas no território norte-americano, como também na Europa. A utilização de binarismos nos discursos circulantes referentes a este contexto, como pontua a autora, é algo que pode levar à imprecisão de análise. Aqui entraria a metodologia feminista ao propor a superação de conceitos binários, estanques e essencializados, contribuindo para análises mais atentas às possibilidades multidirecionais da história. Scott também questiona os efeitos desses binarismos com relação às mulheres, demonstrando como a fantasia se articula, em momentos de crise, através de variadas direções e meios. A fantasia que se elabora acerca do feminismo, e de suas reverberações (sucessão de ecos, potências criadoras que abalam as estruturas regidas pela aparente coerência), também entra em discussão, e aqui se figura o movimento Women In Black (W.I.B) como principal mote de reflexão para Joan Scott.
O quarto capítulo, talvez um dos mais potentes ensaios presentes no livro, apresenta uma discussão de grande relevância junto ao estudo dos movimentos políticos e sociais. A autora analisa o secularismo em sua relação com o conceito de gênero. É interessante notar que a própria autora admite ter identificado seu objeto de pesquisa após confundir, muitas vezes, duas letras em seu teclado. Mais uma vez, Scott deixa claro, através deste exemplo, o quão difícil pode ser para nós, historiadoras e historiadores, o processo de identificação da necessidade de avançar, corrigir, recuar ou refinar a nossa abordagem. A partir da atividade quase automática da digitação, que a princípio seria apenas um detalhe, a autora se permite a reflexão e assume, com perspicácia, mais uma nova possibilidade de expandir o seu campo de pesquisa. Tomando como exemplo a Revolução Francesa e o Islã, ela traça o que seriam os pontos de partida para pensar (e propor) uma espécie de genealogia dos secularismos: secularização, imperialismo e a exportação da modernidade. Agência e diferença sexual – estudados sob a ótica dos problemas evidentes na sociedade e as suas associações com a religião – são as duas principais noções debatidos pela autora.
O quinto e último capítulo traz uma análise da teoria da sedução francesa, em que Joan Scott recupera discussões feitas por ocasião da efeméride do bicentenário do país. O capítulo oferece um passo a mais em relação ao artigo “O gênero como categoria útil de análise” ao trabalhar a fantasia entrelaçada aos projetos políticos dos emergentes Estados-nação. Aqui, as noções de comunidades imaginadas de Benedict Anderson e de tradições inventadas de Eric Hobsbawn são mobilizadas. A autora argumenta que o gênero e, mais especificamente no contexto da Revolução Francesa, a sedução, enquanto uma representação da civilidade, desempenhou um papel fundamental na constituição da ideia francesa de civilização, bem como nas diferenciações percebidas a partir desta perspectiva nacionalista em relação a outros países. Traçando uma comparação com a contemporaneidade, Joan Scott observa que a atribuição de significado do poder de detenção do “falo” seria a principal diferença entre esses dois contextos. Se durante o período monárquico francês o “falo” pertencia unicamente ao Rei, nos dias atuais, sob a prerrogativa da falta, percebe-se que os jogos – ou as dinâmicas – de poder movem formas e repertórios diferentes em que o homem buscaria suprir essa ausência de um detentor absoluto do “falo”. Entrepostas à esta dificuldade imposta pela fantasia, encontram-se as dificuldades de conciliação do compromisso com o universalismo proposto à época da Revolução, tendo em vista as injustiças de longa data.
Duas considerações podem ser feitas sobre esta obra em relação aos avanços desde “O gênero como categoria útil de análise”: 1) A recusa de Joan Scott à acomodação semeia e faz frutificar uma considerável expansão das possibilidades de análise tendo o gênero como categoria. A autora busca readequar os seus instrumentos de análise crítica às novas perspectivas feministas. A introdução da noção de fantasia é significantemente atrativa e necessária às historiografias, uma vez que apela para o que está fora do domínio objetivo da leitura. A noção se aplica também a, por exemplo, estudos feministas biográficos ou que enfoquem uma área específica de atuação (exemplo: intelectuais, artistas, escritoras, políticas, dentre outras). Seria interessante, por exemplo, ler a obra da pintora Artemisia Gentileschi (1593-1653) pela perspectiva do fantasy echo, uma vez que a artista, por diversas vezes, se apropriou de fantasias e as subverteu em suas obras, com intuito de provocar reflexões ainda no período renascentista.
Tratando-se dos contextos sul-americanos, uma perspectiva ainda mais interessante se abre: se os estudos feministas locais já apontavam relevantes diferenças entre os feminismos americanos e europeus, consideramos a noção de fantasia relevante aos estudos emergentes que tenham como objeto de pesquisa a história e a historiografia da América do Sul. A contribuição se aplicaria, por exemplo, não apenas à vida privada, mas à formação dos Estado Nacionais que, por si só, apresentam uma gama de representações e atribuições de significados que envolvem projetos simbólicos em tensão e disputa. Quais poderiam ser as fantasias presentes na história feminista do Brasil? E o que dizer sobre as historiografias, estamos mesmo incluindo o gênero em nossas leituras? Ou apenas o destacamos e criamos para ele um nicho? Tão importante quanto fazer esses questionamentos, consideramos necessária a reavaliação da rotinização da nossa própria prática enquanto pesquisadores e pesquisadoras do feminismo.
2) O epílogo da obra, ao tratar sobre o arquivo feminista, volta a refletir sobre angústias e incertezas, entendimentos emocionais e, mais do que isso, reflete a manifesta preocupação da autora com o esquecimento da luta política feminista, da supressão do ativismo pela atividade acadêmica automática. A escolha desta discussão como epílogo reforça o objetivo da obra em tela, qual seja, chamar a atenção das comunidades acadêmicas, em especial de quem se dedica ao estudo de gênero, a darem continuidade ao enfoque crítico – potencializarem mesmo a crítica, mantendo-a viva através do arquivo. Scott finaliza:
No processo, não são apenas os pesquisadores que mudam, mudam também os materiais. O repositório de documentos, então, é qualquer coisa, menos uma seleção de cartas não reclamadas. Em vez disso, é o lugar e o espaço de onde podem emanar, sem fim, novas ideias. (SCOTT, 2024, p. 207)
Por fim, é interessante destacar que as noções de “diferença sexual”, “agência”, “identidade” e “mutabilidade” permanecem no cerne da crítica da historiadora, sendo potencializados pela noção de fantasy echo. A psicanálise de Lacan, notadamente, desempenha papel fundamental na elaboração das análises da autora. Nesta obra, entretanto, ela não se arrisca tanto a debater as intersecções entre raça e gênero, talvez por reconhecer o desenvolvimento das teorias feministas que a elas se dedicam mais propriamente. Ainda assim, os exemplos citados em seus estudos de caso já indicam uma possibilidade de análise sob a perspectiva do fantasy echo. A impressão que temos ao ler a obra é que ela parece ser ao mesmo tempo uma mudança e um ponto de partida para Joan Scott, que reencontra as próprias ideias, emoções e performatividades e as externaliza em forma de novas perspectivas (abertas e dialógicas), sendo outra valiosa contribuição para o campo que ajudou a estabelecer há cerca de trinta anos atrás.
REFERÊNCIAS
SCOTT, Joan Wallach. A fantasia da história feminista. Tradução de Elisa Nazarian. 1ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2024.
Créditos da imagem da capa: Reprodução. Mary Magdalene in Ecstasy, 1620-25 © Photo: Dominique Provost Art Photography – Bruges. In: TEDESCO, Cristine. Artemisia Gentileschi. Dasartes. Acesso em 15 de março de 2024. Disponível em: https://dasartes.com.br/materias/artemisia-gentileschi/
Os horizontes da história feminista como crítica: itinerários de Joan Scott
Paula de Souza Ribeiro Detoni
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