Dante entre nós

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“Olhe, não fale demais nessa história de Dante. É falso que Dante e Camões tenham feito língua, isso não passa de imagem de admiradores excessivos. Você sabe bem”. É com esta frase que Manuel Bandeira (2001, p. 190) responde a uma daquelas missivas antológicas de Mário de Andrade em que o poeta paulista tentava explicar seu projeto de construção de uma língua nacional. A resposta talvez fosse injusta com o projeto do poeta paulista, mas ajuda a introduzir um comentário sobre a nova biografia de Dante Alighieri lançada pela Companhia das Letras ano retrasado, Dante: a biografia, de Alessandro Barbero. Na verdade, introduz uma questão que pode ser colocada quase a qualquer biografia de uma personalidade, como a de Dante, cujo nome sozinho parece significar um século inteiro de cultura e poesia: até que ponto vai a agência individual quando confrontada com as estruturas históricas que determinam e dão sentido à vida dos sujeitos? A pergunta se coloca porque, ao contar a vida de alguém como Dante, corre-se um duplo risco: primeiro, imaginar que ele sozinho tenha sido responsável pelas transformações culturais que seu nome evoca e simboliza; segundo, imaginar que sua contribuição individual tenha sido de todo substituível e, não fosse aquela individualidade, as estruturas históricas teriam produzido outra igual. Ou, para dizer com Mário e Bandeira: de um lado Dante foi um inventor da língua italiana e, por outro lado, ele não fez nada que outro não pudesse ter feito. As duas opções são arriscadas porque se excluem, quando deveriam conviver. Basta que nos lembremos daquele capítulo antológico do Mimesis de Auerbach em que o crítico insiste tanto no fato de que, fruto da cultura medieval, Dante a supera por dentro.

As boas biografias, e creio que a de Barbero seja uma delas, não se deixam enganar nem pela edulcoração dos heróis nem pelo cinismo das estruturas. Temos ali um Dante de carne e osso, filho de seu período histórico, envolvido nos conflitos políticos entre Guelfos e Gibelinos, mas, ao mesmo tempo, enquanto é um sujeito de seu tempo, produz a obra que o faz sobreviver os 700 anos que nos separam dele. E ele é capaz de nos fazer entrever esse Dante que não pode ser apenas o sujeito de seu tempo talvez exatamente porque nos revele tão acuradamente esse tempo e esse outro sujeito que dificilmente imaginamos quando nos engajamos na leitura da Comédia. Isso porque o poema dantesco, embora revele a estrutura do além, introjeta neste mesmo além seu mundo, sem o qual, em verdade, os versos são ilegíveis. É difícil para o leitor afastado tantos séculos imaginar que os sujeitos citados no poema tenham sido sujeitos reais com os quais Dante de alguma forma conviveu. Mas, sem a compreensão concreta desse elemento mundano, o poema perde uma de suas facetas mais intrigantes. A natureza do trabalho de Dante, de alguma forma, facilita ao biógrafo o trabalho de não cair em armadilhas.

Outra armadilha de que o autor foge, e muito bem, é a do mistério. Sejamos sincero: não sabemos praticamente nada sobre a vida de Dante, e mesmo os especialistas na questão possuem pouquíssima informação. Num momento revelador, o autor nos diz: “A decisão de dedicar quase toda a sua energia mental à criação de um ‘poema sacro’ formidável é, obviamente, o fato mais importante da vida de Dante, e o biógrafo pagaria qualquer coisa para conhecer melhor as circunstâncias em que essa ideia lhe ocorreu” (BARBERO, 2021, p. 209) e, analisando um emaranhado de hipóteses e possíveis meses em que o autor teria começado a escrever seu poema, Barbero, na verdade, não é capaz de nos dizer muito sobre as circunstâncias a que se refere. Isso porque a documentação à disposição sobreviveu aos séculos pelo acaso e de forma caprichosa, quase sempre relacionada a questões financeiras (aspecto detalhadamente analisado pelo autor). Não sabemos, além do que podemos inferir de sua própria obra, muito sobre a formação intelectual de Dante: que autores lia em cada momento de sua vida, com que professores teve aula em Bolonha, se esteve depois de exilado em Bolonha uma segunda vez, se esteve em Paris nos anos do exílio e, se lá esteve, em que meio circulou, com o que teve contato. Não sabemos nada e, por isso, as lendas são muitas. Uma figura tão apagada pelo tempo e também tão imune a ele normalmente acaba virando objeto de muitas lendas, e o autor se recusa a cair em todas elas, e de criar suas próprias no intuito de preencher as lacunas. Ele nos entrega o Dante que temos à nossa disposição, aquele que a documentação é capaz de nos revelar.

E, mesmo para quem conhece a Comédia e mesmo alguns dos tratados do autor, esse Dante e sua Florença são surpreendentes. Passamos a conhecer um universo completamente insuspeitado para quem tem a visão de uma Idade Média uniforme, autoritária, castradora, unidimensional. O livro começa pela incerteza sobre a definição de nobreza, passa pela organização política de uma cidade democrática, governada pelo povo, numa espécie de regime de participação direta das corporações no destino da cidade. E chega finalmente a um Dante partidário do povo: não um radical, um revolucionário, mas uma figura dos segmentos médios (que sua renda e posição confirmam que ele realmente foi) que procura constituir uma nova forma de sociabilidade, marcada pelo fim das violências e arbitrariedades. Trata-se de um sujeito engajado na constituição de uma convivência civilizada.

Logo depois, quando a facção política de que faz parte perde o poder e ele se vê obrigado a exilar-se, vemos um Dante humano, obrigado a mudar de convicções dada sua necessidade de subsistência e a perda de seu patrimônio, obrigado a viver da caridade de senhores que dificilmente participariam do governo do povo da comuna de Florença. Esse sujeito afastado das tradições políticas populares é que vai escrever a obra que chegou até nós, 700 anos depois. O começo da Comédia, datado em 1300 marca exatamente esse momento de profundo desespero do poeta: a selva em que se encontra é a do exílio, da confusão política e do emaranhado complexo de mudanças a que precisa se submeter nesses anos.

A verdade é que apesar de toda essa aproximação ao sujeito Dante Alighieri, ainda sentimos, quando terminamos a leitura, que estamos diante de um mistério. Não no sentido do gênio romântico. O autor não nos autoriza esse tipo de bobagem. Mas um mistério evidente, um “claro enigma”: como pode esse homem, tão humano, tão envolvido nas questões mais práticas, casado, que tinha filhos, irmãos, um pai e uma mãe, como pode um homem de verdade desses, que tinha carne e tinha ossos, como pode ter sido alguém assim o criador de algo tão grandioso e etéreo quanto a Divina Comédia? Essa é a pergunta que o equilíbrio entre agência individual e estrutura histórica nunca consegue responder.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

BARBERO, Alessandro. Dante: a biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, 370 p.

ANDRADE, Mário de; BANDEIRA, Manuel. Correspondência. Organização, introdução e notas: Marcos Antonio de Moraes. São Paulo: Edusp, 2001. 744 p.

 

 

 


Créditos na imagem: Pintura William Blake – Dante e Virgílio entrar na floresta.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Filipe de Freitas Gonçalves

Doutorando em Estudos Literários com ênfase em Literatura Brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Estudos Literários com ênfase em Literatura Brasileira (2021) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduação em Letras (Bacharelado em Língua Portuguesa, com ênfase em Estudos Literários (2017) e Licenciatura (2018)) na Faculdade de Letras da mesma instituição. O interesse de pesquisa está voltado à história da literatura brasileira, teoria da literatura (gêneros literários, especialmente o romance), a relação entre a história literária e questões sociais no Brasil. Atuou, ao longo do ano de 2021, como estagiário-docente no programa Apoio Pedagógico da Faculdade de Letras (UFMG). Trabalha com ensino de Português, Literatura e Produção de Texto para alunos do Ensino Médio e Fundamental.

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