Os Ratos, a História e o Fubá

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Problemas Contemporâneos Sobre Filosofia da História[1]

 

Em um grupo de WhatsApp, discutindo o contexto político do Brasil, um amigo, também formado em História pela UFOP, perguntou se eu achava que o Brasil vivia um regime de exceção. Como bom historiador, disse que deveria esperar o distanciamento dos fatos para respondê-lo. A réplica – inesperada – e por cansaço da desgraça que assolava o país de Jair Bolsonaro e sua tentativa de golpe, no feriado da independência foi: “No final das contas, os historiadores vão chegar quando os ratos já tiverem passeado no fubá, pra falar que era um período muito autoritário e blá, blá, blá. Como sempre foi e você bem sabe”. Pois bem, a partir de um debate cotidiano, desenvolverei algumas questões sobre “a História”.

Não por motivos de fé, mas pela própria experiência histórica, adianto que não acredito em um retorno ao modelo clássico das filosofias da história, organizadas em um telos; início, meio e fim, contendo um agente portador da mudança, transcendente e universal, que levaria a humanidade até um futuro, necessariamente, melhor do que o passado. O ponto fundamental é que não há progresso linear, e as experiências decorrentes desse pensamento, desenvolvidas a partir dos séculos XV e XVI, foram colocadas em xeque já na primeira metade do século XX, com as duas grandes guerras mundiais, e depois, com a queda do socialismo real, eventos que demonstraram como a sociedade não caminha, logicamente, para um futuro melhor.

Seja através da ciência e razão; técnica; liberdade ou igualdade econômica e política, tudo passa pela imanência e contingência do mundo da vida, a historicidade – condição das coisas de/em serem e estarem no tempo – e no espaço; rupturas e continuidades de longos processos, em um amálgama impossível de ser previsto e controlado. Essa História, então, que teria dentro de si mecanismos de desenvolvimento a serem descobertos ou sistematizados por grandes tratados filosóficos, mostrou-se, ironicamente, a-histórica e anacrônica, pois não comporta o próprio desenvolvimento histórico dos eventos, que contradizem a lógica filosófica pré-estabelecida.

A ciência moderna, no desenvolvimento da física, possibilitou as ferramentas necessárias para a criação da bomba atômica. O Liberalismo político e econômico conviveu e criou mecanismos que justificaram a escravidão e o coloniasmo. Liberté, égalité e fraternité não serviam enquanto a metrópole francesa suprimia a revolução haitiana. A revolução russa e a participação dos soviets durou até o momento em que os interesses da classe proletária colidiram com a burocratização do estado soviético. A “solução final” foi uma forma técnico-industrial de matar. Poderia descrever inúmeros exemplos, mas que extrapolariam a intenção do trabalho. A questão é que não há linearidade no desenvolvimento histórico; há contextos de usos das tecnologias e ferramentas, sejam quais forem, no tempo e no espaço.

Se é assim, então, qual a função da História? Se o topos antigo, a história “mestra da vida”; um mundo de mudanças lentas – marcado pela repetição dos ciclos biológicos da natureza – e também como apreensão e organização o tempo, com os exemplos sendo mobilizados como forma pedagógica de organização da vida, em que o sentido era o uso do passado como ferramenta de orientação da ação humana no presente; foi superado, e o moderno perdeu sua legitimidade após os horrores da primeira metade do séc. XX, a História, também, teria perdido sua função, certo?

A resposta é não, e por outro motivo cotidiano, que pode ser demonstrado com um exercício básico ao leitor: relembre de experiências geralmente vividas quando somos novos em algum lugar, ou quando conhecemos alguém, e é pedido uma apresentação. Agora, de maneira rápida, se apresente ou resgate da memória algum momento desse tipo, pessoal ou não. Nome, data de nascimento, lugar de origem, profissão, status de relacionamento; ou pelos menos três (nome, idade e lugar de origem), com quase certeza, foram os mais escolhidos para se apresentar. É a organização narrativa de quem se é, através do tempo e do espaço (idade, lugar de origem e nome).

Agora, se apresente ou relembre um episódio em que as informações não foram organizadas no tempo e no espaço. Poderia apostar que não é possível, ou a tentativa não cumpriu o objetivo. Mesmo que os termos mudem, a organização de explicar quem se é, organiza-se sobre algum lugar, em algum tempo, e em algum espaço. Apresentar-se, é se destacar do todo, como indivíduo em meio à espécie humana, diferente entre os iguais. Isso é, ao fim, a identidade, que se organiza pela diferenciação em relação ao outro. Talvez, de todas as variações semântica que a palavra história possui, o caráter formador da identidade, de se colocar no mundo a partir de uma localização no tempo e no espaço, por meio do tipo narrativo, seja o fio que liga os seus diferentes sentidos. Tal qual os antigos e sua forma de apreensão histórica, que almejavam se destacar dentre todas as criaturas vivas, principalmente dos animais, por meio dos grandes feitos narrados através do tempo, tornando os humanos os únicos mortais no reino dos imortais – os deuses -, rompendo, a circularidade da vida biológica e do tempo, que têm como único fim, a morte.

Então, se “a história é a ciência que estuda os homens no tempo”, ou “as mudanças das coisas humanas no tempo” – acrescento às duas: no tempo e no espaço – tem como base historicizar, dar ou organizar a historicidade de algo. E também, se narrar é contar histórias e contar histórias é narrar, não sendo possível se colocar como indivíduo sem narrar histórias sobre si, em algum lugar no tempo e no espaço, a história serve, primordialmente, como a forma do ser humano se colocar no mundo como indivíduo. A história é, assim, o substrato principal da identidade. Ser humano é ser histórico ao narrar histórias sobre si, e é essa função da história: dar sentido ao indivíduo, como sujeito histórico, através da identidade.

Outra questão: quem deve contar a História no/do tempo presente? A resposta cotidiana, e se podemos dizer, leiga, sobre qual a função da história seria, nas suas diversas variações “entender o passado para não cometer os mesmos erros no futuro”; é a resposta predominante, por exemplo, entre os iniciantes do curso de história. É a reprodução simplificada da fórmula antiga da magistra vitae, dado que pode ser interpretado como um sintoma de que, no mundo da vida, a história ainda é interpretada e organizada assim, e que o conceito moderno, pelo menos desse ponto de vista, não substituiu completamente o antigo. O indivíduo, no seu dia a dia, usa ou entende os exemplos como forma de orientação da ação no presente, e a história acadêmica, moderna, com H maiúsculo, científica; teoria, objeto e método – o palavrão epistemologia – não foi interiorizada de maneira efetiva na sociedade (e deveria?). A história universal, singular-coletiva; a aceleração do tempo; a abertura dos horizontes de expectativa; o alargamento do tempo presente; não são conceitos que aparecem na ponta da língua do cidadão comum (e devem?).

Podemos trazer definições sofisticadas – acadêmicas – sobre a função da história: “orientação pela experiência” ou “orientação das ações humanas no tempo – e no espaço”. De toda forma, tanto a “leiga” quanto a profissional, guardam em si uma ligação, que é a ação depois do acontecido; uma articulação entre “horizonte de expectativa” e “espaço de experiência”, com a intenção de que algo não se repita. Pois bem, se temos que esperar para agirmos, a história, então, não se tornaria estéril? Uma resposta corporativista seria não. Por exemplo, já sabemos como um regime fascista se desenvolve, com base nas experiências europeias no início do século XX. Uma resposta diferente é que os regimes nazi-fascistas, por mais que à época já existisse o uso da propaganda em massa, não contavam com as ferramentas de propagação de fake news, como Facebook e WhatsApp, que podem ser usadas e alimentadas por qualquer cidadão com acesso à internet, de maneira mais horizontal e orgânica.

A experiência anterior não foi suficiente para dar conta da ascensão da nova direita – fascista – que recuperou poder no Brasil, com Bolsonaro, e nos EUA, com Donald Trump, ou a emergência da extrema-direita, na Alemanha, reconhecida como referência na mobilização da história pública pós Nazismo e reunificação. O que desejo ressaltar é: nem os exemplos recentes, como a ascensão de Trump e sua tentativa de golpe com a invasão do Capitólio – reeditada em Brasília -, foram suficientes para barrar a eleição de Bolsonaro e sua resposta à derrota. O que nos leva, novamente, à questão: se tivermos que esperar algo acontecer para agirmos, e quando acontece, esse processo já é tão diferente do anterior, “os ratos já não terão baseado no fubá”? Parece-nos ser a fórmula do distanciamento no tempo e no espaço em relação aos acontecimentos no presente que não suporta, mais, a velocidade pela qual os fenômenos históricos se modificam no contemporâneo, à medida que sua orientação pelo acontecido já não dá conta de apreender o processo em um tempo hábil para ação.

Voltando à identidade, ela é, também, orientação da ação no tempo presente, que é, também, identidade; pois é se colocar diante do mundo, através da localização no tempo e no espaço, e agir a partir daquilo que nos identifica como indivíduos inseridos em um contexto cultural. O tempo da história – histórico -, é diferente do tempo do corpo dos homens – natural. Talvez seja por isso que a forma moderna de história não tenha suprimido, no cotidiano, a antiga, que se adapta melhor às demandas do mundo da vida, dos ciclos biológicos da natureza, e não com a linha reta, evolutiva, de longos processos estruturais modernos. Precisamos, como seres humanos, nos colocar no mundo em um espaço curto de tempo. É o paradoxo da falta do excesso: o tempo como grandeza é longo e lento demais para um ser que vive pouco, e à medida que vive pouco, esse tempo parece passar rápido.

Assim, é muito mais fácil se orientar pela repetição, que demanda um tempo curto e compatível com a vida humana. E mais, só uma parte ínfima da população mobilizará a história como os historiadores. Então, talvez, a história dos historiadores tenha que desenvolver novos meios para servir mais rápido como forma de orientação do agir humano no presente. Não é, então, o que a história deveria ser – um ideal -, mas o que precisa ser, à medida que também é histórica, imanente, sujeita às contingências do tempo, espaço e demandas do tempo presente. E o tempo presente demanda ação, e ação rápida.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo Perspectiva, 2016.

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.”

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

MARQUARD, Odo. Apología del contingente. Reflexiones filosóficas sobre el ser humano. In: _____. Apología del contingente. Valencia: El Magnanìm, 2000, p. 127-147.

MARTINS, Estevão de Resende. O conhecimento histórico e sua rede fatorial. In: MARTINS, Estevão C. de Resende. Teoria e Filosofia da História: contribuições para o ensino de História. Curitiba W e A Editores, 2017. p. 15-36.

RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Ed. UNB, 2001.

SIMON, Zoltán B. A transformação do tempo histórico. Revista de Teoria da História, v. 24, n. 1, p. 139-155, 2021.

 

 

 


NOTAS:

[1] Primeira parte, adaptada, de um ensaio maior, que discute os problemas contemporâneos relacionados à agência histórica no Antropoceno, em que as formas tradicionais de orientação pela ciência histórica parecem não mais dar conta das demandas do tempo presente

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: La grotte de Lascaux a été découverte. Dan Courtic, 1940.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago Rodrigo Oliveira de Lima

Graduado em História-Licenciatura e Mestrando na área de Teoria da História pela Universidade Federal de Ouro Preto.

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