No ano de 1926, duas exposições voltadas à atuação feminina nas artes foram abertas ao público, uma em Paris e a outra, no Rio de Janeiro, então epicentro da arte acadêmica no País. Embora distantes geograficamente, ambos se encontram sob concepções semelhantes colocadas pela crítica de arte do período, formada majoritariamente por homens. A título de explanação, a figura do crítico de arte era de grande importância no campo artístico pois o discurso escrito poderia tanto atrair quanto afastar o público das exposições, obras e artistas de que tratavam. Estes textos eram publicados em jornais e revistas especializadas em arte ou não – no caso destas últimas, haviam as seções específicas para os assuntos artísticos. Considerando-se que, neste ano de 1926, as mulheres ainda encontravam obstáculos para sua entrada, emancipação e consolidação profissional na arte, é preciso que analisemos a semânica utilizada pela crítica no que diz respeito aos dois salões femininos também sob a perspectiva de gênero, pois o uso dos termos e colocações pode apontar elementos de mudanças ou permanências de cânones da História da Arte relacionados à atuação feminina. Nossas fontes serão os textos dos periódicos O Paiz, Revista da Semana e Para Todos, disponíveis na Heemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Comecemos pelo Salão da União das Mulheres Pintoras e Escultoras, que teve lugar no Grand Palais, na França. O texto do O Paiz traz uma perspectiva que possibilita diversas problematizações aos estudos da relação arte/gênero. A começar pelo título “O valor artístico da mulher na pintura e escultura”, título que se encarrega de deixar clara sua impressão geral sobre o mesmo. Mas, que valor artístico seria este e como ele é apresentado ao leitor? O texto nos informa que, no mesmo Grand Palais estariam o Salão das Mulheres e a Exposição Retrospectiva dos Independentes, que contou com alguns dos artistas mais conhecidos do período; com conceitos quase opostos entre si, as duas exposições coexistiram num mesmo ambiente, aspecto que faz com que o autor se surpreenda pela ausência de receio por parte das muheres ao dividir o espaço. A seguir, paradoxalmente, a direção tomada pelas produções das artistas tem seu valor questionado por demonstrar sua evolução quanto à universilidade de sentimento e expressão, que estaria lhe tirando o sentido original. Vejamos os trechos:
É uma artista que trabalha, mas independente das solicitações que o sexo poderia impor na ideação de sua obra. (…) A mulher compreendeu muito bem que para refletir a vida é preciso mais do que nunca abstrair se si própria. Só o universal e o eterno é que interessam o artista: o mais são acidentes que não podem nos retardar a marcha da inteligência rumo à beleza. (…) Esses quadros acusam, em geral, um masculo vigor na expressão.
Aqui, o lugar de valor do feminino é reconhecido quando este se aproxima o máximo possível do masculino; a vida, o universal e o eterno pertencem também ao outro sexo, de modo que, para inserir-se neste lugar de privilégio e prestígio, é preciso esquecer-se de si enquanto mulher, pois o que foge destas noções estabelecidas é considerado um acidente, isto é, algo não desejado ou uma falta de sorte. O texto da Revista da Semana sobre o salão francês, por sua vez, questiona o leitor como era possível que artistas se mantivessem fechadas às tendências artísticas mais modernas, uma vez que, enquanto mulheres, mantinham-se tão ligadas à moda? Ambígua, a pergunta ignora os fatores mais amplos ligados às experiências do gênero feminino com uma e outra lignuagem artística. Em ambos os casos, por ocasião das convenções atribuídas ao feminino e também por preferências individuais, estas duas linguagens tendem a seguir caminhos diferentes, pois as transições entre as tendências da moda se davam de forma rápida tanto na França quanto no Brasil, que ainda se espelhava na cena cultural francesa. Já na pintura, por exemplo, os espaços de formação mantinham certa resistência aos modernismos. No Brasil, mesmo após a realização da Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo e o avanço destas novas perspectivas, a arte acadêmica ainda não havia deixado de ter a sua relevância e validação, sobretudo, no Rio de Janeiro, ainda que já fosse possível identificar também uma lenta transição. O texto traz algumas imagens e nomes de algumas das expositoras, mas os comentários se encerram sem que haja ao menos uma ou duas análises das obras apresentadas, passando ao leitor a imagem de um salão nada significativo à produção artística francesa.
Este ponto de vista também se faz presente no texto de Adalberto Mattos sobre o Salão Feminino de Bellas Artes do Rio de Janeiro no mesmo ano, publicado na revista Para Todos. Mattos trará novamente a ambiguidade discursiva ao celebrar o aumento do número de mulheres artistas nas exposições, mas atribuindo ao feminino um lugar ideal onde não se perdessem características como a delicadeza e a suavidade. Há um esforço por parte do autor em não recair sobre falas como as do autor anterior, de modo que Mattos apresenta ainda alguns dados quantitativos e históricos sobre a atuação feminina no Rio, que ele identifica como ponto inicial os primeiros anos do século XX – algo que, como sabemos hoje, não compreende o real contexto da atuação feminina, ainda que sob informalidades e falta de apoio institucional, como foi o caso de Abigail de Andrade. Ao finalizar o texto, o autor nomeia algumas das artistas presentes no salão carioca, porém, por “ordem hierárquica”, onde mais uma vez vemos como opera a construção discursiva quando a perspectiva de gênero entra em cena. Neste salão tivemos algumas das mais prestigiadas artistas do período, como Georgina de Albuquerque, Regina Veiga, Haydéa Santiago, Nicolina Vaz de Assis e Julieta de França.
Estes dois eventos foram de grande importância para que o olhar da crítica se atentasse mais à atuação feminina enquanto um amplo entrelaçar de novas perspectivas para a arte, ainda que houvesse certa resistência em admiti-las. Até então, as artistas brasileiras obtinham maior atenção sobretudo com suas exposições individuais mas, nem todas tiveram tal oportunidade, o que mantinha a Exposição de Geral de Belas Artes, realizada na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) como a principal vitrine artística da cidade. Tratando-se de uma exposição coletiva, as análises das semânticas de crítica de arte das EGBA’s tornam-se ainda mais díspares sob a perspectiva de gênero. A organização de espaços dedicados às produções das artistas, tanto francesas quanto brasileiras, fez com que a coletividade reafirmasse a importância de cada trajetória que a integra para a constituição de um campo artístico mais amplo e sólido no Brasil.
REFERÊNCIAS
MATTOS, Adalberto. Salão Feminino de Bellas Artes. Para Todos. 6 de mar. 1926. Ilustrada, p.14. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/124451/17085
O Salão das Mulheres Pintoras e Escultoras. Revista da Semana. 30 de abr. 1927. Ilustrada, p. 40. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/025909_02/13787
O Valor Artístico da Mulher na Pintura e Escultura. O Paiz. 25 de abr. 1926. Ilustrada, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/178691_05/25079
Crédito na imagem: Reprodução. CANTO do Rio. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra3298/canto-do-rio. Acesso em: 31 de março de 2022. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
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Paula de Souza Ribeiro
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