Caminhando com Lygia Clark

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Caminhar pela cidade, no inverno. Andei por aí, pensando em mudar. Atravessar a Praça da Estação, para mim, é como atravessar um tempo contínuo, uma memória que ficou por ali, gravada. A primeira vez que tive contato com a obra de Lygia Clark (1920-1988) foi por ocasião de uma oficina realizada em um dos Festivais de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Caminhando era o nome da obra. Inspirada na fita de Möbius, ou Moebius, a obra consiste em uma fita cujas extremidades são coladas uma na outra, após darmos meia volta em uma destas extremidades, formando uma superfície contínua. Feito isto, iniciamos com uma tesoura um pequeno corte vertical em algum lugar da fita, que deverá ser o nosso ponto de partida para “desfiá-la” até onde for possível.

A breve experiência de ocupar a Praça, planejar e dar vida à obra de Lygia dobrou o seu sentido ou intenção original de falar da obra enquanto ato. Sentados ao chão, desenrolando ou enrolando mais ainda as fitinhas, quase me esqueci que um dos objetivos da atividade era falarmos sobre nós e nossos planos para a vida sem interromper o processo da obra. Caminhando é uma obra que precisa do público para existir, e pode ser feita em casa; o movimento introspectivo que ela suscita é individual. Por mais que estivéssemos em grupo, nenhuma experiência ou fitinha foi igual à outra. Mesmo que quiséssemos imitar um ao outro, rasgando e cortando as fitas no mesmo lugar, os resultados não eram os mesmos. E isso foi algo que me deixou menos ansiosa.

Estava tudo bem se a minha obra não estivesse do jeito que eu queria ou tinha imaginado. E o breve momento que tive pra pensar no que falar sobre mim me ensinou mais do que muitas horas de sono perdido. Que falta fazia o autoconhecimento, centrar-se sem se perder. Esse exercício pessoal, somado ao coletivo, foi de grande relevância também por ter chamado à roda pessoas em situação de rua que, sentados conosco, logo se interessaram pela atividade de trocas e nos renderam discussões ímpares sobre o habitar a cidade, o mundo e a si mesmo. De novo, estive pelas ruas, me lembrando de Lygia. Caminhar, olhar para os lados e para a frente. Como seria esta mesma experiência de reconhecimento e apropriação do espaço, se realizada hoje? Talvez eu não mais me importe em não conseguir desfiar a fita de um jeito “bonito” ou agradável visualmente e, mais importante, não ficaria presa em inseguranças ao invés de me atentar ao que precisava ser de fato a minha caminhada. Como dirá a artista:

 

Penso também que minhas tentativas arquiteturais, nascidas ao mesmo tempo que o “Caminhando”, queriam ser uma ligação com o mundo coletivo. Tratava-se de criar um espaço-tempo novo, concreto – não apenas para mim, mas também para os outros. Fazendo essas arquiteturas, senti um grande cansaço, como se tivesse trabalhado toda uma vida. Um cansaço provocado pela absorção de uma nova experiência. Daí, algumas vezes, essa nostalgia de ser uma pedra úmida, um ser-pedra, à sombra de uma árvore, à margem do tempo.

 

Aceitar e acolher as mudanças no caminho passa também pela aceitação do imprevisível, e da nossa capacidade em lidar com isso em companhia da nossa intuição e experiência. Isto o texto de Portella (2012) traz muito bem. A mudança a nível individual me parece ser possível apenas enquanto despertar; mas e depois de despertar, como mudar toda uma realidade? O incômodo produz movimentação, e esta nos traz uma ampliação de redes que, segundo Portella, é a alternativa mais viável para a mudança como desejamos que ela seja. Sem esta rede, as chances de ficarmos parados à beira do ponto de mudança é maior; só é possível seguir em frente quando nossa visão se clareia, quando vemos mais chão para pisar. Sentir, pensar, fazer. Para onde desejamos ir? Para onde o imprevisível é capaz de me levar no meio do caminho? Tanto em Clark quanto em Portella, a questão central é estar atento à mudança, e produzi-la constantemente. Entender-se enquanto ser criativo. Como continua Lygia Clark sobre a obra:

 

Quando você tiver dado a volta na fita de Moebius, escolha entre cortar à direita e cortar à esquerda do corte já feito. Essa noção de escolha é decisiva e nela reside o único sentido dessa experiência. A obra é o seu ato. À medida em que se corta a fita, ela se afina e se desdobra em entrelaçamentos. No fim, o caminho é tão estreito que não pode mais ser aberto. É o fim do atalho (…). Cada “Caminhando” é uma realidade imanente que se revela em sua totalidade durante o tempo de expressão do espectador-autor. Inicialmente, o “Caminhando” é apenas uma potencialidade. Vocês e ele formarão uma realidade única, total, existencial. Nenhuma separação entre sujeito-objeto. É um corpo-a-corpo, uma fusão. As diversas respostas surgirão de sua escolha

 

Talvez minha memória tenha ficado por lá, pelas andanças na Praça. Por algum tempo, me esqueci dessa experiência, porque só enxergava a frustração de não ter falado bem, de não ter desfiado bem a fitinha. Agora, cerca de três anos depois, procurava algo para falar sobre Lygia Clark, e lá estava a fita. O tempo – três anos, ou um pouco mais – me deu a compreensão que faltava para aquela obra e que talvez, na minha correria e insegurança, eu não tenha entendido que estava dentro de uma espiral de mudanças: de casa, de curso, de ciclos.

Agora, me encontro novamente nesse fim de ciclo, e Caminhando ainda ressoa na minha cabeça; amadurecer não é tarefa fácil e é algo contínuo. A questão das escolhas reflete o incômodo de que falamos anteriormente; se eu não me incomodo com a mesmice, não faço a escolha de sair dela, e muito menos dos meios através dos quais posso sair dessa mesmice. É claro que nem todas as escolhas serão acertadas – algumas vão dar uma certa dor de cabeça, mas perder a oportunidade de mudar é parar no próprio tempo. Repetindo a experiência com Caminhando, percebi que a minha preocupação é apenas não parar no meio do nada, sair do caminho. Se antes eu desfiava a fita rapidamente, cortando-a em vários pedaços soltos por impaciência, essa visão mudou. E os questionamentos também são outros enquanto penso na minha vida – e isso me dá uma alegria muito grande. Te convido a replicar a obra de Lygia, e a ficar à vontade para compartilhar sua experiência por aqui.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Caminhando. In: Portal Lygia Clark. [S.l]. Acesso em 13 de junho de 2022. Disponível em: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/189/caminhando

PORTELLA, Fernando. Engenharia Cultural: como transformar ideias em projetos e projetos em realidade. Rio de Janeiro: Editora Cidade Viva, 2012.

 

 

 


Créditos na imagem: Caminhando. In: Portal Lygia Clark. [S.l]. Disponível em: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/189/caminhando

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

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