Outros caminhos para a liberdade: Tiradentes e(m) nós

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Como boa mineira e apaixonada por história desde criança, eu ouvi e guardei bem fundo na memória uma imagem forte de Tiradentes. Joaquim José da Silva Xavier, eu ainda costumava achar que era meu parente. Um herói da liberdade, minhas professoras e professores de História sempre foram unânimes em salientar. Um mártir da desigualdade, presente nos diferentes status quo dos inconfidentes. Tornou-se um modelo dos diferentes Brasis periodizados, de um ponto de continuidade quase “pura”: a repressão como ato memorável de Estado.

O que não imaginava é que, para além da sua forte inscrição na construção de nossa mineiridade, Tiradentes faria parte de momentos tão chaves, tanto da minha vida, quanto da história recente desse país. Diz-se que ele havia afirmado lá nos idos do século XVIII: “o certo é que já não há homens; porém que havia de armar uma meada tal, que em dez, vinte ou cem anos, não se havia de desembaraçar” (FURTADO, 2002, p. 11). Dito e feito, a Inconfidência Mineira se tornou um daqueles “acontecimentos-monstros”, que nos alertou Nora (1995), difíceis de interpretar em sua emergência e ainda mais difíceis de dimensionar em seus renascimentos.

Quando cheguei à Praça Tiradentes pela primeira vez, parecia criança dos anos 1990 vendo roda-gigante. Quem foi, sabe como é. Os olhos brilham, brilham. Nada pequenos olhos que brilhavam de êxtase, que conseguiam me transportar para o “dia do batizado”[1] e para as “bravatas etílicas” que uniram aqueles homens. Pois é, eu não teria espaço nesse movimento, que logo eu descobri que nem em prol de igualdade e liberdade de fato era. Não conseguirei aprofundar nesse ponto aqui. Mas preciso acalentar um pouco mais minha alma com a lembrança (que se tornou recorrente) de atravessar os corredores do Museu da Inconfidência, passar pelos Autos da Devassa, ficar ali tentando decifrá-los como uma jovem historiadora que descobria a paleografia e, enfim, chegar no panteão, onde estão guardados os corpos. Treze já ali repousavam quando entrei pela primeira vez, além de Maria Dorotéia Joaquina de Seixas (Marília de Dirceu), Bárbara Eliodora e Chica da Silva. Em 2011, os restos mortais de outros três inconfidentes, que morreram no exílio também foram incorporados. Eu podia morar ali!

É engraçado que o museu nunca é um lugar silencioso, pelo menos não o era antes do apocalipse chamado Bolsovid. Mas, ainda assim, eu conseguia contemplar um silêncio inexplicável ali, vendo excursões e escutando falas bem equivocadas sobre os tais heróis. Só um lugar ali dentro me faz sentir ainda mais parte da nossa história: bem ali no lado esquerdo, no segundo andar, olhar das grandes janelas frontais a praça, em dias típicos de neblina e serração, do clima que arde por revolução.

Eu poderia largar tudo e trabalhar no Museu da Inconfidência, voluntariamente (se não fosse o capitalismo), para contar às/aos visitantes um pouco sobre o que a historiografia descobriu nos últimos anos (mesmo não sendo especialista no assunto). Ali está monumentalizado, em mármore, o imaginário em torno daqueles homens, que sobrepujou as “inconfidências” expostas pelas fontes e pela historiografia. Muito já se especulou sobre o caráter dos inconfidentes e não é este o foco deste ensaio. Mas desconstruir algumas verdades que alimentam mitologias que, sucessivamente, são evocadas por sua força de inscrição na sociedade talvez seja aqui necessário. Nessas circunstâncias, nosso olhar precisa estar direcionado à Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, porque em torno da sua imagem em diferentes contextos assumiram-se e disputaram projetos de (re)fundação da nação e de luta pelo povo brasileiro.

O clamor em torno da Inconfidência mineira remonta às primeiras décadas do século XIX, quando as elites imperiais articularam o discurso em torno do evento como sendo a primeira tentativa de libertação nacional, inspiração para D. Pedro I no “grito do Ipiranga”. Mas é no final desse século que uma articulação mais específica começa a ser direcionada ao vínculo do movimento com ideais republicanos e, especialmente, à exaltação do herói e mártir – talvez mais o segundo que o primeiro – Tiradentes[2]. Depois de 1930, a mitologia política em torno da Inconfidência foi articulada pelas elites urbanas, que a transformavam em precursora da luta contra as oligarquias. A articulação de todo esse discurso seria ainda muito bem desenvolvida por outro mineiro, Juscelino Kubitschek, que não por acaso inaugurou Brasília no 21 de abril, no dia “consagrado ao Alferes Joaquim José da Silva Xavier” (BRASÍLIA, 1960).

Uma coisa é o homem (e o acontecimento), registrados em sua temporalidade. A outra é o que fizeram deles, em diversas repercussões. Raoul Girardet (1987), ao estudar as representações da Revolução Francesa, concluiu que sua imagem foi cristalizada através dos tempos a partir de quatro modelos míticos: o de Cincinnatus, o de Alexandre, o de Sólon e o de Moisés[3]. O modelo que mais se aproxima das construções míticas criadas e atualizadas sobre Tiradentes é o de Moisés. O “arquétipo do profeta” carrega o futuro no bolso, traça caminhos que a sociedade ainda não consegue discernir como melhores. Possui “um olhar inspirado que atravessa a opacidade do presente: uma voz que vem de mais alto ou de mais longe, que revela o que deve ser visto e reconhecido como verdadeiro” (GIRARDET, 1987, p. 78).

Só que as simbologias são pensadas por Girardet especialmente na construção narcisística de lideranças políticas, na maioria das vezes delimitada pela conjuntura de suas vidas. Por isso, acredito que seja um tanto quanto mais complexo de encaixar o mito em torno de Tiradentes nesses modelos. Ainda assim, há um bom encaixe quando pensamos na relação que o autor faz entre a capacidade de vidência, até mesmo de cunho religioso, que forma esse arquétipo e sua capacidade de encarnar todas as dimensões sociais e históricas, ao ponto de integralizar uma identidade coletiva, intrinsecamente ligada à perspectiva fundacional ou, nas palavras do autor, a uma “comunidade mãe”. Se pensarmos na utilização da sua figura desde início do XIX ela sempre esteve vinculada a processos e ações movidos por mudanças expressivas no constructo do que deveria ser a sociedade brasileira.

Esta dimensão torna-se ainda mais clara se analisamos suas atualizações pelos ditadores militares. Na ânsia por definir-se como um “estado de direito em aparência” (PEREIRA, 2010, p. 54), fundamentado na narrativa do golpe como revolução e do extermínio enquanto defesa da liberdade e da ordem nacionais – a qual não podemos negar ter uma forte inscrição social ainda hoje – a associação do alferes com a liberdade ganhava novo contorno para legitimação do Estado autoritário. Nesse sentido, em 09 de dezembro de 1965, Tiradentes foi elevado à “patrono cívico da Nação brasileira”, pela Lei nº 4.897 e foi instituída a comemoração nacional em todas as instituições públicas pelo dia do “nosso maior compatriota de todos os tempos” (SILVEIRA et al., 2018, p. 36).

Em pesquisa recente sobre a articulação da luta estudantil e da rede repressiva na região de Ouro Preto, verificou-se que após o golpe todo 21 de abril tornou-se uma espécie de vitrine atemporal, cuja associação direta entre os inconfidentes com os militares que comandavam o país era sempre ressaltada. Ao mesmo tempo, as comemorações desse dia tornaram-se importantes marcos da construção da luta de estudantes e trabalhadores da região. Conforme relatório do GT-UFOP,

Episódios exemplares ocorreram nos anos de 1966 e 1980, mas a data foi sempre marcada por manifestações recorrentes, pichações e panfletagens, que levaram ao endurecimento da repressão na cidade durante as festividades. As operações iniciavam-se dias antes com a invasão de repúblicas estudantis e a busca de “agitadores”, em uma verdadeira “limpeza do terreno” a fim de se evitarem protestos (SILVEIRA et al., 2018, p. 211).

Em 1966, momento que o movimento estudantil se rearticulava em todo território nacional e com grande expressividade em Belo Horizonte, Costa e Silva (que ocupava o Ministério de Guerra) confirmou sua presença nas comemorações do 21 de abril, na cidade. As manifestações contrárias à ditadura contaram com estudantes de várias partes de Minas Gerais, chamados a se unirem na Praça Tiradentes. Dali sairia uma das chapas mais combativas que liderariam a União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais (UEE/MG).

Já em 1980, a ação planejada envolvia estudantes, professores e trabalhadores da região, que lançariam uma greve no meio das comemorações. Naquela semana, entre os dias 17 e 19 de abril, várias repúblicas estudantis foram invadidas por policiais que, por meio de prisões arbitrárias, conseguiriam dissipar os protestos daquele ano. No início da manhã do dia 20, na República dos Deuses – já conhecida dos órgãos repressivos – após as festividades tradicionais do “21”, reuniam-se as principais lideranças que eram de outras partes do estado, além dos integrantes do Diretório Acadêmico da Escola de Minas. Todas as pessoas que estavam na casa foram presas e fichadas após invasão dos agentes do DOPS/MG. Nove foram mantidos na usual prática de sequestro das forças de repressão, conduzidos até Mariana, onde ficaram incomunicáveis até o fim das comemorações do dia de Tiradentes.

Por outro lado, não podemos esquecer também que a figura de Tiradentes foi requerida pela organização fundada em 1969, proveniente de cisões da Ala Vermelha do PCdoB. O Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) era uma das organizações de esquerda armada que agregava especialmente operários e camponeses, inclusive em cargos de direção. A luta por liberdade requerida pelo movimento, associava Tiradentes ao homem do povo que, assim como eles, tinha lutado pela nossa independência, nunca efetivada na história. Em panfletos distribuídos em 1970, assinados pelo MRT e por outras duas organizações de esquerda, a identificação com a herança de luta por libertação que teria sido empreendida por Tiradentes ficava muito evidente. Os dizeres demarcavam que

A verdadeira independência do Brasil ainda está para se fazer. Primeiro eram os portugueses que mandavam aqui, depois os ingleses. Agora são os americanos que dão as ordens. Tiradentes foi morto e esquartejado porque lutou pela independência do Brasil. Hoje, as forças armadas, instruídas pelos americanos, torturam e matam os que lutam pelo povo brasileiro e pela verdadeira independência do Brasil[4].

Ainda que nesse contexto específico haja uma contradição bem demarcada quanto a utilização do mito Tiradentes, ora delimitando ordem e progresso, ora independência, há de comum nessas apropriações a elaboração de sentidos de liberdade.

No curso de demarcar momentos chaves da história de Brasis calculados, recentemente o alferes apareceu – de forma mais tímida, mas ainda simbólica – no roteiro que destituiu do cargo a primeira presidenta do país. Por mais de uma vez, a imprensa fez analogias ao calvário do governo de Dilma Roussef, já profetizado na tela Tiradentes ante ao Carrasco[5], que emoldurava as inúmeras reuniões realizadas pela comissão de impeachment. E é importante ressaltar de novo: referia-se a uma analogia ao calvário do GOVERNO, não da presidenta, da mulher. Talvez este fator indicasse algo que já estávamos percebendo com profundidade desde 2013: o personalismo político não era mais o foco da política no Brasil. Poderia ser isso, se não estivéssemos falando das camadas de violência expressas por parte da sociedade e da imprensa pelo gênero da ocupante do cargo máximo do executivo.

Também na votação do processo de impeachment, dois parlamentares mineiros, do PSDB e do PMDB, recorreram à imagem de Tiradentes para externalizar seus votos “contra a corrupção” e pela “vontade do povo de Minas”. Seus votos, com Tiradentes, diziam sim a uma ruptura cheia de inconsistências, que se diria constitucional, mas que quanto mais analisamos mais percebemos as inconsistências da fábula antidemocrática que nos jogaria às covas de um “Fanfarrão Minésio” atualizado.

A história de Tiradentes tem sido o diorama da política nacional, recriada em réplicas cada vez mais malfeitas daqueles idos de 1789. Mas ainda não consigo perceber uma dissociação da política nacional desse mito fundador, inscrito em outro componente importante da nossa construção republicana que é o personalismo. Ao finalizar essas linhas, duras de serem escritas por esta mineira nostálgica, eu gostaria de sugerir que pensemos em um novo caminho para eleger os marcos da nossa construção social. E esse seria por meio da conspiração, da movimentação que consumaria o conflito no dia da derrama. Na movimentação, no coletivo, na orientação por um novo comprometido com a construção democrática social, reinventando os sentidos de liberdade e independência, pois agora mais do que nunca precisamos buscar a herança do “hoje é o dia do batizado!”.

 

 

 


REFERÊNCIAS

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FURTADO, João P. O manto de Penélope; História, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. (1ª ed.) São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

NORA, Pierre. O Retorno do Fato in NORA & LÊ GOFF. Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

SILVEIRA, Marco Antônio; MAIA, Marta; PEREIRA, Mateus; SILVA, Camilla C. Histórias de Repressão e Luta na UFOP, Ouro Preto e Região. Editora UFOP: Ouro Preto, 2018.

 

 

 


NOTAS

[1] A historiografia tem assegurado que foi no dia do batizado do filho de Alvarenga Peixoto, ainda em 1788, que se acertou os detalhes do movimento inconfidente, que aconteceria assim que deflagrada a derrama, através da senha “Hoje é dia do batizado” (FURTADO, 2002).

[2] Um estudo clássico sobre a construção de Tiradentes como herói da República foi desenvolvido por José Murilo de Carvalho, em A Formação das Almas (1990). Ali, o autor traz um aspecto interessante no caminho da representação mítica, ao evocar a luta intelectual evocada na segunda metade do XIX entre Pedro I e Tiradentes, emblemática na batalha entre Monarquia e República.

[3] De forma muito sucinta, os arquétipos de Girardet são construídos em torno da sabedoria adquirida pela experiência política (o velho homem representado por Cincinnatus); da ação, impetuosidade e juventude que o torna imbatível (expressado na figura de Alexandre); a parcimônia do legislador, que vem para legitimar uma nova ordem (equivalente à imagem de Sólon); e o anunciador dos novos tempos, que carrega consigo uma dimensão profética (cujo espelho é Moisés) (GIRARDET, 1987, pp. 70-80).

[4] Obra do pintor Rafael Falco, 1951.

[5] FRENTE. Por uma independência de verdade. APESP, doc. nº 50 Z 9 18746.

 

 

 


Créditos na imagem: Tiradentes ante o carrasco, Rafael Falco, 1951. In: Acervo Câmara dos Deputados. Óleo sobre tela, 128 x 182 cm.

 

 

SOBRE A AUTORA

Camilla Cristina Silva

Doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Professora no curso de História da UniProjeção/DF e da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Coordenadora do Publiciza História, página de divulgação de conhecimento histórico do passado recente.

1 comment

  1. Murilo Gentil 16 junho, 2021 at 16:43 Responder

    Boa tarde!
    Apaixonado por Tiradentes – o homem e o mito – amei seu texto.
    Não há como um historiador mineiro dizer o contrário.
    Parabéns!

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