Paradoxos da autenticidade na hipermodernidade

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Claude Lévi-Strauss no seu livro Antropologia Estrutural I destacou as Missões Próprias da Antropologia[1]. Texto que compõe o capítulo O lugar da antropologia nas ciências sociais e problemas colocados por seu ensino. Lévi-Strauss nessa obra estabelece a tarefa primordial do antropólogo, qual seja, “reconhecer e isolar níveis de autenticidade” (1975, p. 408-9). Diante desta missão categórica, correntemente esquecida e mal compreendida, se verifica a força de um pensamento renovador. Contudo, hoje mais do que nunca, muita confusão permanece em relação a esta premissa. Muitos ainda relutam em admitir que há uma impossibilidade de se viver em sociedade sem algum regime de autenticidade; que nessa época está à deriva. Como escreveu Maurice Merleau-Ponty: “A Etnologia não é uma especialidade definida por um objeto particular – etnia, sociedades primitivas, etc. – é a maneira de pensar que se impõe quando o objeto é ‘outro’ e que exige nossa própria transformação” (1984, p. 199).

O presente ensaio trata do problema da ‘crise dos critérios da autenticidade’ e não da ‘crise da autenticidade’. A ‘crise da autenticidade’ é algo inerente à modernidade, enquanto que na tradição não há crise de tal ordem[2]. É na hipermodernidade que surge algo específico, designado como a ‘crise dos critérios da autenticidade’. Isto é, a hipermodernidade ao levar aos extremos vertiginosos os paradoxos da autenticidade, nos conduz a crise mais profunda, isto é, àquela da ‘crise dos critérios’, exasperados num contexto de desorientação crescente no plano da ética e da política. E tudo isto recrudesce a partir da ascensão dos usos da inteligência artificial (ChatGPT).

Nas pesquisas na área da preservação da cultura, especialmente com os acervos e bens de natureza etnográfica e folclórica, percebe-se hodiernamente a ocorrência de uma espécie de crise radical. Na década de 1960, Lévi-Strauss sugeriu que o trabalho do antropólogo estava ligado à construção de quadros de referência para aferição da autenticidade. Hoje parece que esse trabalho é muito mais complexo. Uma crise sem precedentes alastra-se, contaminando diversos setores da sociedade contemporânea. A questão central parece ser como sair dessa crise labiríntica, verdadeira encruzilhada do conhecimento que se manifesta em diferentes domínios do saber (CASTORIADIS, 1987).

A vertigem da simulação aflige com cada vez mais virulência. A sociedade vive o sintoma da proliferação das cópias, das réplicas e das simulações. A todo o momento exige-se algum atestado de autenticidade. São documentos e cadastros de todo tipo que se somam aos códigos e as senhas, em seqüências de letras e números que crescentemente perturbam a vida dos usuários – pagando alto preço por uma confiança oferecida e supostamente garantida. Diante desse cenário, será que não estamos presenciando uma crise da autenticidade dos operadores, ou regimes de autenticação, num plano que não tem precedentes na história? E com o advento da inteligência artificial o quadro torna-se ainda mais movediço?

Caçadores de réplicas

Considerando os princípios delineados para a antropologia, sugeridos por Lévi-Strauss, será que se pode afirmar hoje que o antropologista está se tornando um tipo paródico de “caçador de replicantes”? Será impertinente fazer uma analogia provocativa com a narrativa ficcional do filme de Ridley Scott Blade Runner[3]?

O antropologista tornou-se recentemente no “cientista social” que tem o poder de oferecer ‘certificados da autenticidade’[4] aos bens culturais e etnológicos. Retornando aos argumentos apresentados se pode traçar um paralelismo epistemológico que parece manter-se latente na consciência científica contemporânea. As simultaneidades, ou homologias, nos diferentes domínios do saber evidenciam paralelos: a gestão da natureza e da genética, de um lado; e a gestão da cultura, de outro. Ou seja, ocorrem fenômenos semelhantes em domínios tidos anteriormente como incomunicáveis. Sendo assim, se pode dizer com segurança: Marcel Mauss tinha razão, é necessário recompor a totalidade (MAUSS, 2003). Novas maneiras de pensar isso surgem nesse contexto e tem se destacado cada vez mais a proposta de pensarmos num domínio integrado dos patrimônios bioculturais (CORREA, 2007; 2008)).

Porém, por que hipermodernidade, num momento que se fala tanto de pós-modernidade? Ao contrário dos que pensam que se ultrapassa a modernidade, ou que já se habita a pós-modernidade, o que se assiste hoje é diagnosticado por Gilles Lipovetsky. Entende-se que a atualidade se caracteriza pela intensificação sem precedentes do tripé característico da modernidade: mercado, indivíduo e escalada tecno-científica. Estas coordenadas balizam integralmente os processos que estão ocorrendo em domínios tidos comumente como isolados. O incremento das forças mercadológicas, a crescente difusão da ideologia individualista e o acelerado avanço da tecnociência e da biotecnologia, comprovam as teses de Lipovetsky (2004).

Testemunha-se assim, no auge da hipermodernidade, o surgimento do novo teatro das memórias bioculturais (CORREA, 2008). A lógica cultural capitalista penetrou em todos os domínios, do inconsciente, à subjetividade e à produção da vida: parece que agora chegou o momento de os bens culturais correrem esses mesmos riscos com a nova engenharia cultural que se anuncia.

Simulacros etnográficos

Os paralelismos aqui traçados demonstram as simultaneidades epistemológicas enfatizadas acima. Este tema não tem merecido uma reflexão apurada. Estas poucas linhas, no entanto, servem como uma interlocução de pesquisa, em busca de novas trilhas através do diálogo com outras áreas do conhecimento.

Todavia, talvez seja necessário servir-se de um último exemplo, agora retirado do contexto mais propriamente etnológico, para que se possa atingir, enfim, algum nível de pertinência mais específica na ordem disciplinar. Ao enfocar um caso etnográfico específico, se destaca uma anedota que Pierre Clastres conta após uma “excursão” etnográfica pela América do Sul. Nos relatos publicados em Les Temps Modernes na década de 1970, o antropólogo francês, já falecido, narra um fato curioso que serve para ilustrar essa reflexão. Naquela ocasião o pesquisador compartilhava com alguns turistas, atravessando a região do Paraguai onde ainda residiam remanescentes de grupos indígenas guaranis. O casal que os acompanhava na excursão, o Sr. e a Sra. Brown, desejavam fotos de “autênticos” índios sul-americanos e tudo fariam por isso. Foi assim que face a face com um indivíduo em farrapos quase moribundo, encontrado numa “aldeia”, aconteceu o seguinte diálogo:

Retrato! Os olhos do índio sobem dos pés aos joelhos do Sr. Brown.

Um peso. Bom. Pelo menos ele sabe o que é dinheiro. Era de se esperar. Enfim, não é caro!

Sim, mas é preciso tirar tudo isso! Retrato, mas não com isso! O Sr. Brown imita o ato de tirar as calças e faz um sinal para que desabotoe a camisa. Despe o selvagem e livra-o de seus trapos sujos.

Eu tirar roupa, cinco pesos.

Meu Deus, como é possível alguém ser interesseiro a este ponto! Ele está exagerando, por uma ou duas fotos. A Sra. Brown impacienta-se.

E então? Vai ou não vai tirar este retrato? Pergunta impaciente a Sra. Brown.

Mas você esta vendo que a cada hora ele inventa uma coisa?

Mude de índio.

Será a mesma coisa com os outros.

O homem continua sentado, indiferente e fuma tranqüilamente.

Está bem. Cinco pesos.

Ele desaparece por alguns instantes no interior da cabana e sai inteiramente nu, atlético, calmo e livre em seu corpo. (…). Clic-Clac!

E as penas? Não tem penas?

Com grandes gestos, veste o índio com ornamentos, cobre sua cabeça com enfeites e dota-o de grandes asas.

Você tirar retrato meu com penas, quinze pesos. (…) (CLASTRES, 1982, p. 48-9).

A narrativa se desenvolve com muito mais nuances. O Sr. e a Sra. Brown ainda desejam comprar objetos de barro, enfeites e chegam a pagar mil pesos pelo arco e flecha do “índio”. Mas, afinal, que tipo de cena foi vivida por estes turistas, pelo pesquisador e pelo remanescente indígena? Nesse teatro do absurdo etnológico encenam-se personagens modernos que vivem o dilema da alteridade social e cultural de modo dramático.

Labirinto da política e da ética

Destarte, diante dessas considerações e reflexões, ressalta-se que o problema de fundo, subjacente aos exemplos comentados, reside nos fundamentos da política e da ética. Especialmente no que tange ao debate jurídico sobre o acesso e uso do genoma humano, além dos problemas relacionados ao que se convencionou designar como os usos dos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético (URSINI, 2004). Porém, problemas como os sublinhados aqui surgem desafortunadamente numa época em que os fundamentos políticos e éticos estão à deriva, isto é, ao mesmo tempo em que testemunhamos estes novos investimentos coletivos, assistimos a uma deriva da política e da ética na ordem simbólica dominante. Em suma, a denominada ‘crise dos critérios da autenticidade’ é, na verdade, uma crise da política e da ética na contemporaneidade. Nossa responsabilidade social mais urgente é encontrar a saída dessa encruzilhada, que talvez passe pela refundação de uma visão científica re-integradora sobre esses novos problemas.

Nas pesquisas sobre as metamorfoses e mutações conceituais que estão ocorrendo nesses domínios diferentes do conhecimento, se observa que esse processo toca o problema de fundo crucial relacionado ao futuro da própria natureza humana (HABERMAS, 2004)[5]. As encruzilhadas deste labirinto[6] mal começaram a se desenhar no horizonte antropológico. Não parece cedo ou precipitado adiantar algumas reflexões sobre o tema; especialmente agora que se populariza o uso da inteligência artificial. Talvez nossa responsabilidade social maior seja recompor um novo quadro de referências para que se possa tomar decisões urgentes e decisivas em domínios tão importantes como o da gestão da vida, das imagens, da cultura e da natureza.

 

 

 

 


 REFERÊNCIAS

CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. São Paulo: Ed. Brasiliense. 1982

CORRÊA, Alexandre F. Patrimônios bioculturais na hipermodernidade: a crise dos critérios da autenticidade. Tenerife: PASOS. Vol. 5 Nº2 págs. 243-251. 2007 https://doi.org/10.25145/j.pasos.2007.05.018

___. 2008. Patrimônios bioculturais: ensaio de antropologia das memórias sociais e do patrimônio cultural. São Luís: EDUFMA. 2008

GRUZINSKI, Serge. La guerra de las imágenes: de cristóbal Colón a “Blade Runner” (1492-2019). México: FCE. 1995

HABERMAS, J. O futuro da natureza humana. São Paulo: Ed. Martins Fontes. 2004

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural I. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro. 1975

LIPOVETSKY, Gilles. Les temps hypermodèrne. Paris: Ed. Grasset. 2004

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify. 2003

MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural. 1984

MONTELLO, Josué. Pedra Viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1983

MORIN, Edgar. Religação dos saberes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2001

URSINI, Leslye B. Territórios dos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético. Texto apresentado no FP 01 ABA Recife. 2004

 

 

 


NOTAS

[1]Missões Próprias da Antropologia: Objetividade, Totalidade, Significação e o Critério da Autenticidade (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 404-10)

[2] Sintetizando esse raciocínio: “Só há originalidade verdadeira quando estamos dentro de uma tradição; tudo o que não é tradição é plágio” (Eugênio D’Ors apud Josué Montello, 1983, p. 8).

[3] BLADE Runner. Direção: Ridley Scott. Produção: Michael Deeley. Los Angeles: Warner Brothers, c. 1991. Produzido Warner Video Home. No referido filme, numa das versões, o protagonista vive o dilema de sua própria humanidade.  Ver Serge Gruzinski (1995).

[4] Assim como oferecer ‘laudos antropológicos’ e/ou ‘relatórios de identificação’.

[5] Especialmente o texto: A caminho de uma eugenia liberal? A discussão em torno da autocompreensão ética da espécie (Habermas, 2004).

[6] Expressão que se aplica no sentido dado por Castoriadis (1987).

 

 

 


Créditos na imagem: Getty Images

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Alexandre Fernandes Correa

Sociólogo com formação pós-graduada em Antropologia Cultural. Professor Associado na UFRJ-Macaé.

 

 

 

 

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