Tudo começou diante da estante de livros de um amigo meu. Uma lombada cor azul e aveludada gravava o título Noite do oráculo, um romance publicado em 2004, no início do século XXI. Este foi meu primeiro contato com a literatura de Paul Auster, escritor americano que nos deixou em 30 de abril de 2024, vítima de um câncer de pulmão, aos 77 anos.
Paul Auster publicou diversos livros, escreveu roteiros para o cinema e é considerado um dos principais escritores da contemporaneidade, dono de um estilo que reúne características da literatura policial e filosófica, permeado por referências diretas a outros escritores que constavam na sua lista de autores favoritos.
Reconhecemos em seus romances o interesse por imaginar a cidade como lugar labiríntico e a identidade humana como um jogo móvel entre a singularidade e o anonimato. Além disto, o escritor norte americano, radicado na cidade de Nova York, pensava que as relações humanas são guiadas pela força do acaso, um tipo de evento aleatório que nos leva a percorrer novos caminhos sem que estejamos preparados para tal mudança. Homens e mulheres, em algum ponto de suas vidas, são tragados pelo desconhecido e estão sujeitos a profundas alterações em suas existências.
O escritor descreveu certa sensibilidade de uma época em que a incompreensão se tornava um sentimento constante. Podemos identificar essa descrição na fala de um de seus personagens: “Morei em Nova York a minha vida inteira, mas não entendia mais as ruas e as multidões e, toda vez que saía em minhas pequenas excursões, me sentia um homem que se perdeu numa cidade estranha” (AUSTER, 2004, p. 8).
O sentimento de estar perdido, de vagar por entre ruas desconhecidas, abrindo-se para a possibilidade do imponderável, do inusitado, parece ser uma das marcas do estilo do escritor. A recorrência desses temas em sua obra indica que Paul Auster gostava de criar uma atmosfera literária em que a surpresa e o acaso produzissem mudanças de perspectivas na vida dos personagens, provocando os leitores a suspeitarem da própria narrativa e das aparentes certezas que o narrador descrevesse.
Aos lermos livros como A trilogia de Nova York, Noite do Oráculo e Desvarios do Brooklyn, assumimos um comportamento detetivesco e observador das pistas depositadas pelos narradores e que devem revelar, ao menos parcialmente, o sentido das mudanças na trama. Paul Auster prezava por um leitor atento e capaz de acompanhar as alternâncias de ângulo que suas narrativas ofereciam. Um leitor com este compromisso também seria capaz de perceber o mundo contemporâneo pela chave da inconstância. Isto é, não só sua ficção era cambiante, mas o próprio mundo com o qual ela dialogava.
O olhar sensível do ficcionista sobre a cidade de Nova York e certa cultura ocidental produzida nos anos pós Segunda Guerra propunha o debate de como poderíamos elaborar identidades humanas e noções de pertencimento ante um período de intensas modificações e reiteradas tragédias – em Noite do oráculo ele repercute o Holocausto, Homem no escuro imagina uma guerra civil americana no ano eleitoral de 2000 e em Desvarios no Brooklyn encerra a última página com uma referência ao ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001.
Mas o evento histórico não é a tônica de seus romances. Embora apareça em algumas de suas tramas, acaba por ocupar uma posição secundária na construção da narrativa. A desconstrução de identidades, a experiência do anonimato ou ação do acaso nas nossas vidas não estavam subordinadas a um acontecimento de grandes proporções. Esses temas eram apreendidos na própria forma da contemporaneidade, de certa imprecisão que, então, passou a nos definir: “Quanto a Quinn, há pouca coisa para comentar. Quem era, de onde veio, e o que fazia não tinha muita importância” (AUSTER, 1999, p. 9).
A relação entre a cidade e o indivíduo – e as nuanças da vida – é o que pode melhor determinar a abordagem de Paul Auster. Os personagens ocupam as ruas de Nova York e a observam em seus detalhes. Sidney Orr, em Noite do oráculo, ao rememorar eventos de sua vida em 1982, descreve um mundo caótico e frenético onde as pessoas caminham para sentidos opostos: “tudo trepidava, bamboleava, fugindo em diferentes direções” (AUSTER, 2004, p. 8).
Ponto de referência incontornável nas suas narrativas é o efeito demolidor do acaso. Ruas inesperadas são descobertas, comércios aparecem, desaparecem e reaparecem sem aviso prévio, apartamentos aparentemente seguros são invadidos e personagens relativamente importantes para a trama somem sem deixar rastro. Todos esses pequenos acontecimentos geram no leitor a sensação de que a contemporaneidade é tão inesgotável quanto arriscada, reconhecível, mas sujeita a transformações iminentes. Nossa vida pode mudar a qualquer instante e basta estar vivo para que a ideia de destino se multiplique, obedecendo a leis misteriosas: “Todo destino é arbitrário, toda decisão, governada pelo acaso” (AUSTER, 2005, p. 36).
Tomamos decisões com base em alguma racionalidade, alguma tentativa de controle sobre as consequências advindas de nossos atos, porém, o futuro não está assegurado, o presente pode parecer embaralhado e o passado soa confuso na instabilidade da memória. Nesse sentido, os tempos históricos também ocupam parte da obra de Paul Auster ao propor que façamos uma reflexão sobre como interpretamos as diferentes temporalidades: “Foi aí que o deixei naquela manhã – suspenso no ar, voando loucamente para um futuro incerto, implausível. Não tinha certeza de quanto tempo fazia que estava ali” (AUSTER, 2004, p. 30).
Vida, cotidiano, identidade, tempo, acaso e cidade. Paul Auster fez de seu trabalho uma maneira de conhecermos os modos de sentir a contemporaneidade e a descreveu como conjunto de expectativas que pode sofrer frustrações e adiamentos. O que não é ruim. É essa indefinição que permite não sucumbirmos às formas de controle definitivas, dando-nos a liberdade para recomeçar diferentes caminhos e experimentar outros horizontes possíveis. Vivemos em uma época volátil e insegura, contudo, repleta de energia criativa e retomadas. Tudo pode acontecer, desde que haja uma chance: “Bowen não questiona o que está fazendo. Não lamenta nada, não repensa sua decisão de deixar a cidade e abandonar o emprego, não sente a menor pontada de remorso de deixar Eva para trás” (AUSTER, 2004, p. 60).
A ficção de Paul Auster impõe a força da possibilidade e da alternativa. Não possuímos o controle efetivo sobre nossa existência, a intensidade das mudanças é capaz de nos lançar para situações em que somos obrigados a tomar decisões irreversíveis, mergulhamos no desconhecido e sentindo o dever de pensar – e imaginar – outras saídas para os labirintos em que entramos.
Se ele detalhou um tempo contemporâneo assinado por tantas indefinições e novidades, há outra dimensão fundamental em sua literatura: o poder criador da palavra. A ficção não é meramente uma fábula ou representação da realidade. A ficção é a realidade. Nada seria possível de ser vivido sem o sinal da narrativa, o uso dos gestos, a construção de sentidos por meio do que denominamos linguagem. Usamo-la como forma de dizer o que sentimos, vivemos e pensamos. A narrativa ficcional tem a habilidade de exteriorizar o mundo interno e internalizar o mundo externo. Meio de comunicação em sua acepção básica, a palavra organizada em sequência, com suas sentenças e parágrafos, expressa aquilo que autores e autoras desejam falar. E escutamos com atenção essas narrativas projetadas a partir de um universo comum: “Palavras são reais, tudo que é humano é real” (AUSTER, 2004, p. 205).
Paul Auster disse certa vez que ler um romance é a forma mais íntima que compartilhamos com alguém desconhecido. Ao ler alguns de seus livros, penso que me tornei íntimo de um grupo seleto de afortunados, um grupo de desconhecidos que via num distinto morador do Brooklyn – um homem de olhos riscados e voz grave, charmosa – um sujeito com a sabedoria suficiente para nos fazer recordar que a vida, além de passageira, é inusitada. Que se prestarmos atenção nos fragmentos que formam a realidade é possível entrever a matéria de que somos feitos: o mistério.
Se o enigma e o desconhecido estão dentro de nós, constituindo-nos como passado, presente e futuro, compondo os espaços inesgotáveis da cidade – e da vida –, talvez, seja recomendável seguir lendo alguém que fez da imaginação um real inesgotável.
Referências
AUSTER, Paul. A trilogia de Nova York. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 [1985].
AUSTER, Paul. Desvarios no Brooklyn. Tradução de Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
AUSTER, Paul. Noite do oráculo. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Créditos na imagem: Reprodução:Steve Pyke – Getty Images
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