Faz pouco tempo, escrevi ao redor da esperança. Bem, tratava-se de expor apreensões e convicções, remexer alguma terra já batida – o afeto da esperança calcava o caminho. O contexto então era o de eleições – sem corroer nenhum de meus quereres políticos, os expus a perspectivas afetivas que me mareiam um tanto; e só pode marear quem aceita passar pelas águas. De certo modo, eu me dirigia a uma crítica que nega o instrumental das eleições (e aquilo a que serve, a representatividade política) via sua fetichização, tornando-as aquilo que não são, que seja, um caso à parte na dinâmica das agitações sociais. Pensei: o que surge nesses momentos não é justamente a explicitação de paixões, descrenças e esperanças cotidianas, por mais espetacularizado e sujo – literalmente – que possa ser o ritual? A negação disso não convém ser simultânea ao cruzamento de perspectivas a respeito disso?
Vale sempre reiterar que a esperança – o termo e o sentimento – ocupam as linhas e os espaços de nossas vidas sem que precisemos enxugar suas características e vê-la como algo pronto, passível de consumo imediato. Como afeto, no mínimo, tensiona nossas representações temporais em todas as direções, pois a incerteza que a perpassa cobre passado, presente e futuro. Se isso serviu como mote para pensar um momento tão radiante como o das eleições nos municípios, a impregnação com o tempo igualmente serve para embaralhar um tanto as atuais visões que nascem da conjunção entre a passagem de ano (para quem consegue sentir que 2020 acabou, claro) e os inícios da vacinação que estão ocorrendo pelo mundo (e quem sabe faremos uma festa de fim de ano, finalmente, no fim deste?).
O contexto escabreia, certamente, pelas proporções dramáticas e, não menos, trágicas das dores envolvidas; algo de sentimento de impotência trava até a mais precavida e esperançosa das criaturas. Simultaneamente, os dualismos, carregados pelo medo, infiltraram-se em representações que pouco dizem de uma realidade que antecede e possibilita tal contexto, simplificando-o perigosamente. Em resumo, pôs-se de um lado um governo unido pela convicção de que é preciso que pessoas morram, rápida ou lentamente (muitas, não todas – pessoas negras e indígenas, não fetos, por exemplo) e, de outro, a ciência, a qual, unida ao esclarecimento que a situação exige, quase que monopoliza as esperanças correntes.
Com esse quase monopólio, ações mais pontuais de auxílio foram sendo minimizadas, doações para comunidades em situações precárias minguaram, cuidados mútuos, já não abundantes, foram sendo abandonados e atenções se desmembraram; na esteira dessa dicotomia, pelo menos, alguns rompantes de indignação já convergem na conclusão de que o poder executivo federal, hoje, é um campo devastado na sanha de correr com os interesses particulares de quem detém o capital. Quando corpos humanos e árvores tombam como nunca antes, todos os dias, em território dominado pelo estado brasileiro, vê-se “melhor” que cada individualidade dessas reclama uma urgência que é política na apreensão comum que pode e deve causar mudanças (e o impedimento do presidente, embora necessário, também oculta um milhão de problemas, como aquele do que é uma ação política), contra formas de sadismo que tem nas instituições um magazine. E como a necropolítica se tornou mais explícita na pandemia, reforjou-se a ideia da utilidade comum da ciência como uma arma fundamental.
Por isso, a ciência serve agora até ao que resta de ufanismo em algumas mentalidades progressistas. A ciência venceu… que batalha? Essa ciência, no singular quase sempre, luta por quem suas batalhas? Que redenção seria possível advinda dessa abstração a que se chama ciência? Com certeza, muitos meios científicos mostraram sua precisão em tempos de emergência, a compartimentação das questões e das respostas deu a ver uma já não tão nova relação com o tempo – isso mostrou-se urgente. Ao fim, a crença nessa ciência abstrata faz prescindir do fundamento da solidariedade para toda resistência – tudo teria sido possível graças aos mesmos instrumentos que nos trouxeram até aqui (há, segundo a Plataforma Intergovernamental Científico-normativa sobre Diversidade Biológica e Serviçoes de Ecossistemas – IPBES –, aproximadamente 850 mil vírus, alojados em animais, potencialmente pandêmicos caso a exploração humana sobre o planeta não tome outros rumos).
Mas, em se tratando do campo de batalha político e social, que não cede a dualismos e requer a crítica do trabalho como emprego assalariado, a solidariedade (tanto ou mais que a necessidade, às vezes) recrudesceu a atividade de muitas pessoas que estão na linha de frente dessa conjuntura, nas linhas da saúde, da alimentação, da limpeza… outras tantas ocupações – “piá, a gente sabe que cada saco desse que a gente pega ajuda um pouco contra esse vírus, a gente sabe, por isso nem pensa duas vezes”, me respondeu um coletor de lixo quando perguntei sobre a sensação de trabalhar na rotina quando quase tudo o mais está virado. Não há medo? Indaguei, já sabendo que não era essa a questão…
Esse diálogo efêmero não pode ser romantizado, é certo. Há a necessidade, há condições históricas que empurram a trabalhos adversos; mas essa fala pode ser tomada, ainda assim, pelo viés da esperança – que ignora muito, mas que também existe por experiências que nos ligam ao passado e a tudo que nos trouxe aqui e possibilita que sejam realidades a alegria e a resistência comunicativa, a solidariedade e a amizade; que paixões nasçam e cresçam em tempos adversos; que existências se vinculem pelo prazer de produzirem para si próprias. A necessidade nunca some – é preciso que as resistências mais cotidianas nunca se apaguem.
Créditos na imagem: Science for the People. Reprodução. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/quando-nega-a-politica-ciencia-cede-ao-obscurantismo/
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Daniel Santos da Silva
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