Uma notícia varreu a internet de cima a baixo, inundando cada fresta digital com comentários, debates e explosões de ódio. A antropóloga (branca) Lilia Schwarcz, especialista em estudos raciais, além de uma referência no campo antropológico dentro e fora do país, publicou um texto na Folha de São Paulo criticando a “glamourização da África” no álbum mais recente da cantora norte-americana Beyoncé (Black is King). Como era de esperar, a internet caiu com tudo nas costas da antropóloga, o que gerou centenas de comentários indignados, além de pedidos de cancelamento. Todos eles tinham como premissa o “Lugar de Fala”, conceito famoso nos setores da esquerda liberal, aquela das políticas identitárias. Depois de uma análise cuidadosa dos comentários, além de perceber a regularidade da premissa do “Lugar de Fala”, eu percebi algo de curioso… ELES NÃO ERAM HOMOGÊNEOS!!! Os comentários podiam ser agrupados de duas maneiras diferentes: a) Aqueles que usaram o conceito de forma amadora e b) Aqueles que utilizaram o conceito de forma genial, dando um verdadeiro exemplo de como política e ciência podem caminhar juntas.
Muitos usaram o critério do “Lugar de Fala” como um elemento autoexplicativo, como se fosse autoevidente, não devendo maiores explicações, o que se resumiu ao simples fato de Lilia ser branca, como nesse exemplo:
“Eu preciso entender que privilégio é esse que te faz pensar que você tem alguma autoridade para ensinar uma mulher negra como ela deve ou não falar sobre o seu povo. Se eu fosse você (valeu Deus), estaria com vergonha agora. Melhore!”
Por outro lado, alguns foram além, oferecendo um outro tipo de crítica. Sem dúvida, eles usaram o critério do “Lugar de Fala”, como todos os outros, mas apontaram os problemas no argumento de Lilia, acompanhando seu raciocínio e os contornos do seu texto. Um deles afirmou que a romantização da África é uma ferramenta política importante, uma arma pragmática decisiva na luta do movimento negro, e que Lilia, por ser branca, não conseguiu visualizar esse detalhe. Segundo ele, o ponto não é e nunca foi a “realidade” da África, e se, de fato, ela existiu ou não, mas o seu efeito no mundo, ou seja, a forma como mobiliza lutas concretas, como a antirracista. Observe a diferença entre os dois tipos de comentário: no primeiro caso, o conceito de “Lugar de Fala” é usado como critério autoexplicativo, como uma cartada mágica, nada mais do que um truque cheio de ressentimento. No segundo caso, ao contrário, o “Lugar de Fala” é apresentado como apenas um ponto de partida, um instante inicial que abre espaço para uma série de argumentos e possibilidades.
Da mesma forma que conceitos como Estrutura e Sistema, o critério do “Lugar de Fala” é usado na maioria das vezes como uma ferramenta autoexplicativa, quando, na verdade, deveria ser explicada. É preciso mostrar as conexões, as falhas e os problemas no discurso alheio, ou seja, é preciso trazer à tona toda uma rede de fundo, toda uma série de associações, evitando assim truques de mágica e estratégias de silenciamento. Da mesma forma que frases como “a estrutura nos domina” ou “o sistema nos oprime”, a frase “Lilia Schwarcz é branca” não diz nada sem um complemento. Eu preciso explicar as falhas no que foi dito, o que Lilia não conseguiu ver por conta de sua branquitude. Infelizmente, foram poucos os comentários que seguiram por esse caminho de prudência. A maior parte usou o critério de “Lugar de Fala” não apenas como um traço autoexplicativo, o que chamei de truque de mágica, mas também como uma tática antiética, agressiva e anticientífica, ignorando completamente as décadas de estudos raciais de Lilia Schwarcz, além da sua própria luta no campo antirracista.
O conceito de “Lugar de Fala” é fundamental, e deve ser defendido a qualquer preço, já que o privilégio da linguagem sempre foi do homem branco e europeu. Mas precisamos ter cuidado nesse terreno, principalmente porque os amadores gostam de usar conceitos complexos como armas de vigilância, ressentimento e moralização. O fato de um conceito ter importância na luta política, não significa que ser usado de qualquer forma, sem nenhum cuidado. Conceitos são armas, e como qualquer arma demanda preparo, caso contrário tragédias podem acontecer.
O segundo grupo de comentários, de forma interessante, mostrou que o fato de ser branco não é uma desvantagem epistemológica, como se alguém estivesse mais afastado da verdade do mundo, mas apenas um ponto de vista limitado, como se espera de qualquer postura. O fato de ser negro não torna alguém mais verdadeiro, ou mais autorizado a falar, muito menos transforma alguém em um especialista no continente Africano e nas dinâmicas raciais que atravessam a sociedade, embora a EXPERIÊNCIA de ser negro traga novas perguntas, novos caminhos, coisas que jamais um branco enxergaria. Ou seja, o “ser negro” (ou qualquer outra forma de EXPERIÊNCIA) é um critério pragmático, sendo um ingrediente que expande o debate, envolvendo novas conexões e alternativas, mas nada tem de epistemológico, como se oferece um acesso privilegiado ao que acontece.
Provavelmente você não sabe disso, mas eu não sou um cineasta, não tenho a EXPERIÊNCIA do universo cinematográfico e seus bastidores, mas escrevo sobre filmes e gosto muito disso. O ponto de vista do cineasta não é mais ou menos verdadeiro do que o meu, embora possa lançar luz sobre coisas invisíveis a mim, já que não tenho a experiência de um cineasta e não vivo nesse universo. Da mesma forma, eu não sou um literato, não tenho a EXPERIÊNCIA de escrever romances, embora produza ensaios e artigos sobre eles. A EXPERIÊNCIA do literato, da mesma forma que do cineasta, não é mais ou menos verdadeira que a minha, não a torna mais próxima de uma verdade lá fora, embora essa experiência possa levantar pontos e questões que jamais passariam pela minha cabeça.
Outro exemplo: imagine um psicólogo que recebe em seu escritório um paciente depressivo. O fato de não ter tido a EXPERIÊNCIA da depressão, não faz desse profissional alguém mais ou menos capaz de compreender o problema do seu paciente, embora essa EXPERIÊNCIA possa levantar pontos interessantes que jamais seriam considerados de outra forma. Ou seja, o critério da EXPERIÊNCIA é sempre pragmático, envolvendo um campo de possibilidades, e novas articulações, e não um critério epistêmico sobre verdade ou mentira. O ponto não é quem está mais próximo da verdade das coisas, mas quais contribuições eu posso fazer, quais portas meu corpo negro pode abrir. Essa experiência de corpo é um ingrediente fundamental, mas não enquanto um critério epistemológico, como pensam por aí. Por conta da insistência nesse critério, o primeiro grupo fechou o debate, criou guetos, verdadeiras muralhas discursivas, enquanto o segundo, ao usar o critério pragmático, produziu pontes, conexões, oferecendo assim um espaço produtivo.
Esse meu ensaio é uma crítica aos que acreditam na homogeneidade da luta “negra”, “gay”, “feminista”, aos que apostam na ideia de um espaço fixo, óbvio e essencial. Eu tentei mostrar que por trás de todos os comentários contra a antropóloga Lilia Schwarcz, não existia nada de homogêneo, mas dois grupos distintos mobilizando o mesmo conceito (Lugar de Fala). Eles não apenas eram diferentes entre si, como contraditórios, já que o primeiro usava o conceito como pretexto de vigilância e ressentimento, enquanto o segundo movimentava o debate, aperfeiçoando o campo científico e político. O primeiro disseminava ódio e violência, enquanto o segundo permitia novas possibilidades, criando pontos de contato. O primeiro criou guetos, muralhas inquestionáveis, já o segundo criou pontes. Ou seja, ambos criticaram Lilia Schwarcz, e que mereceu ser criticada, mas usando duas premissas diferentes, cada uma delas com desdobramentos práticos distintos. O primeiro grupo foi infantil, amador e antiético, já o segundo nos brindou com um verdadeiro exemplo de como a ciência e a política podem, e devem, andar juntas.
Por conta disso, o pedido de desculpa feito por Lilia, postura que deve ser aplaudida, sem dúvida, não foi direcionado ao primeiro grupo de comentários, já que eles não contribuíram em nada. O pedido, ao contrário, foi direcionado ao segundo grupo, aos que, de fato, ofereceram algo a ser pensado, além de novas possibilidades de melhoramento. É a esse grupo que dedico esse ensaio, aos negros e negras que fizeram uma crítica construtiva a Lilia, sem perder com isso sua negritude e seu compromisso com o movimento. É a esse grupo de homens e mulheres que esse ensaio é dedicado, ao pouco de bom senso que ainda resta nos grupos de esquerda. Parabéns por terem dado uma verdadeira aula sobre como fazer ciência e militância.
Créditos na imagem: jc.ne10.uol / Reprodução disponível em: https://jc.ne10.uol.com.
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Thiago de Araujo Pinho
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