Oito sinais de que você não entendeu Marx direito: Os riscos políticos da simplificação teórica

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O nome “Marx”, assim como “Freud” ou “Einstein”, ultrapassou as fronteiras da academia, não sendo apenas um rótulo técnico aplicado por certos especialistas, muito menos um significante solto e vazio. Mesmo não conhecendo em detalhes sua doutrina, seu nome ganhou bastante acolhimento em espaços informais, em especial dentro de eventos políticos ou coisas do gênero, passando por reuniões de centros acadêmicos e debates em sindicatos. Além disso, Marx é basicamente um símbolo nos cursos de humanas, um tipo de campo de discursividade, como diria Foucault, indo muito além de uma simples figura autoral. Ele produziu todo um espaço inédito de jogo, um terceiro continente ainda inexplorado, como disse Althusser, ou seja, uma figura que gerou, e ainda gera, não apenas uma “visão de mundo”, mas as condições de possibilidade dessas mesmas visões. Afirmar que o significante “M-A-R-X” indica algo bem definido, com um contorno claro, ou muitas vezes simplificado, não apenas é um grande erro, como também um perigo, como vamos perceber daqui a pouco.

Diante desse processo político alucinado que o Brasil vive, Marx vem sofrendo críticas pesadas dos setores da direita reacionária. Memes, Fake News e Xingamentos são apenas alguns exemplos encontrados pelos quatro cantos do universo digital, apenas a ponta de um iceberg feito de ódio, medo e insegurança. Embora os ataques sejam muito irracionais, na beira do ressentimento e da pura agressão, existe uma verdade no meio de tanta loucura. E essa verdade se encontra no fato da crítica ser direcionada não a Marx, mas à imagem que muitos oferecem de Marx, quase sempre um retrato distorcido e simplificado. Nós, cientistas sociais, temos também nossa responsabilidade no surgimento desse ódio no coração dos reacionários, principalmente porque criamos o pretexto ideal, ao simplificar os contornos de um autor muito mais complexo do que parece. Logo abaixo temos oito simplificações encontradas em postagens (e falas públicas) de estudantes de Ciências Sociais a respeito do pensamento de Marx.  Meu propósito não é apenas apontar falhas, numa espécie de crítica vazia, mas também sugerir a ideia de que essas mesmas falhas alimentaram, e continuam alimentando, o ódio dos setores reacionários:

 

1- A dialética não trabalha com opostos: É muito comum, talvez por conta de uma certa militância, e de um tipo de demanda política específica, acreditar que existe um abismo profundo e óbvio entre o Eu e o Outro, principalmente entre polos contraditórios, como acontece no jogo político. Na dialética, por outro lado, não existem oposições, muito menos dualismo. Na verdade, a oposição é uma miragem, uma ilusão de ótica produzida por circunstâncias pontuais, ou, no caso de Hegel, uma etapa ainda imatura da consciência em seu deslocamento espiritual. Os opostos participam não apenas de um mesmo jogo, mas de um mesmo fluxo, inclusive de complementaridade. Žižek oferece o famoso exemplo do “café”. Um sujeito comum entra numa cafeteria e pede café sem creme. O atendente, de uma forma enigmática, responde: “lamento, não temos creme. Temos leite. Posso te dar café sem leite”. Se você usa uma abordagem positivista, se concentrando na materialidade do líquido, e nada além disso, essa resposta não faz sentido. Café sem creme ou café sem leite é, objetivamente falando, a mesma substância, o mesmo café. Apesar disso, no campo do simbólico as coisas mudam, mesmo quando a materialidade do líquido permanece a mesma. Segundo Žižek, o café muda dependendo daquilo que ele recusa, ou seja, da sua negação. Nesse sentido, o café sem creme ou café sem leite são dois tipos diferentes de café, apesar da mesma “materialidade”. Se você substituir a palavra “café” por sujeito e “creme” (leite) por adversário político, vai ficar bem claro o argumento zizekiano. Com esse exemplo ele sinaliza a importância simbólica da resistência, o papel que o outro desempenha nas definições da minha própria identidade. Ou seja, minha resistência contra um outro nunca é inocente, nunca é um simples exercício bem-intencionado, muito menos manifesta uma fronteira clara entre os polos. A antítese não apenas faz parte da tese, mas define seus contornos identitários por conta dessa mesma tese. Em outras palavras, resistência e resistido, dominante e dominado, são mais próximos do que o Facebook nos faz acreditar. O dualismo entre os dois, presos em um tipo de abismo ontológico, tão compartilhado nas redes sociais, não se justifica pela dialética materialista.

 

2- A crítica dialética é imanente: No mês passado, passeando pelo Facebook, percebi uma postagem curiosa de um dos meus colegas de trabalho.  Ela dizia: “o capitalismo produz tantos problemas psicológicos e tantas desigualdades”. É claro que essa frase faz sentido, mas é tão incompleta e simplificada que precisa de um esclarecimento urgente, caso contrário teremos problemas. Segundo o marxismo, seja ele o ortodoxo, ao defender uma ontologia de classe, ou o alternativo, aqueles que seguem por outras ontologias, como Adorno, Badiou e Žižek, o capitalismo não apenas “produz problemas psicológicos e desigualdades”, mas também as próprias condições que me permitem reconhecer “esses problemas psicológicos e essas desigualdades”. Em outras palavras, o capitalismo não apenas constrói suas próprias condições materiais de superação, mas também espirituais, envolvendo aqui críticas, métodos e epistemologias. Isso significa que, seguindo um modelo dialético, a crítica marxista do modo de produção atual é sempre de forma imanente, e não transcendente, como se observasse o “sistema” de cima ou de fora. As ferramentas usadas como crítica do capitalismo são capitalistas, sendo esse o motivo da dialética se apresentar de um modo mais complexo do que muitos dizem por aí nas redes sociais.

 

3- Não existe ninguém controlando o processo histórico: Marx jamais disse que o burguês vivia nos bastidores dos arranjos históricos, como se controlasse as variáveis de maneira reflexiva. Sem dúvida, a burguesia leva vantagem no modo como a realidade opera, e na distribuição material das coisas, mas isso não significa dizer que estão no controle. Segundo Marx, especialmente na Introdução à crítica da economia política, o processo histórico é definido pela sua irracionalidade, por forças que ultrapassam o controle humano. A própria desigualdade, em Marx, é fruto desse movimento irracional das forças materiais e não de um jogo arquitetado por dimensões sombrias. O comunismo, ao contrário, acaba sendo justamente o instante em que os humanos “tomam as rédeas da história”, o que revela um humanismo profundo no pensamento de Marx. A ideia de que existe algum grupo manipulando o processo produtivo, talvez querendo acabar com a classe trabalhadora de forma maquiavélica, não encontra fundamento teórico em Marx, mas apenas nas postagens soltas e inconsequentes do Facebook. Segundo ele, ninguém, ao menos ainda, conseguiu o controle dos processos históricos, embora, nesse fluxo irracional, alguns levem muito mais vantagens do que outros.

 

4- Não existe crítica moral, mas estrutural. Ao contrário do que circula no Facebook, o marxismo jamais trabalhou com categorias morais, como “certo” ou “errado”, muito menos “Bom” e “Mal”. Segundo Marx, o burguês não é alguém corrupto que se esconde por trás de um discurso bem-intencionado. Como ele é capturado também pelo processo irracional que atravessa a história, o burguês realmente acredita no que faz, realmente acredita no potencial que o capitalismo tem de transformar a vida de todos para melhor. A ideia, portanto, de que o burguês é hipócrita, e que apenas acredita no lucro, não faz sentido. Ele também é capturado pelas amarras ideológicas. Ou seja, quando você encontrar no caminho grandes CEOs falando do papel social de seus grandes monopólios, não entre naquela análise simplificada do tipo: “eles estão mentindo. No fundo, eles apenas querem lucro”. Não é bem assim que a ideologia funciona. Eles REALMENTE acreditam no que fazem e no que dizem, sendo esse um dos grandes segredos de qualquer estrutura ideológica. A sua eficácia, por esse motivo, depende de um tipo de auto crença, uma certeza inabalável naquilo que se diz e se faz.

 

5- A ideologia é material e não discursiva. Segundo Marx, a ideologia não é elaborada por alguém, numa espécie de comitê estratégico. A ideologia é reflexo da maneira como os elementos materiais da realidade se organizam. Por exemplo, os proletários são capturados pela ideologia não porque o burguês aprisiona o trabalhador em algum discurso convincente ou maligno. O proletário é capturado pela ideologia pela maneira como a produção é organizada e descentrada. Pelo fato de não ter consciência de todo o processo produtivo, pelo fato da produção ser pulverizada e dispersa, o trabalhador é capturado pela ideologia. Ou seja, para Marx a matriz ideológica é material e não produto de discursos elaborados por certas pessoas ou grupos.

 

6- A ideologia não é uma mentira, muito menos Fake News. A ideologia não trabalha com critérios epistemológicos, envolvendo verdadeiro ou falso. É comum encontrar nas redes sociais a ideia de que a estrutura ideológica é uma farsa, sendo uma mentira contada pelos dominantes numa tentativa de enganar os dominados. Essa abordagem não tem nada de marxista. A ideologia não se opõe à verdade, como se fosse uma mentira elaborada, muito pelo contrário. Ela trabalha com fatos, dados, procedimentos jurídicos, estatísticas, e muito mais. Um exemplo: Durante o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, o debate girou em torno de um critério epistemológico, envolvendo verdadeiro ou falso: “Dilma cometeu ou não as pedaladas fiscais?”. A análise marxista, por outro lado, não se prende ao terreno rasteiro e comum dos fatos. Não é à tona que o marxismo nunca foi simpatizante do positivismo, desse compromisso com fatos ou com algum tipo de linguagem tautológica (é só lembrar da resistência de Marx à Comte ou a resistência de Adorno a Popper). Em outras palavras, ainda que Dilma tivesse REALMENTE cometido as pedaladas fiscais, a manobra continuaria sendo ideológica. A ideologia, ao contrário do que circula no Facebook, não tem nada de Fake News. Ao invés de verdadeiro ou falso, a estrutura ideológica nos lança no terreno da “verdade mentirosa”, uma manobra muito mais complexa do que o simples e ingênuo debate epistemológico sobre os acontecimentos.

 

7- A ideologia não é uma ilusão: É comum acreditar que a matriz ideológica nos afasta de um contato concreto com o mundo e com nós mesmos. Da mesma forma que no filme Matrix, muitos defendem esse tipo de dualismo: Por um lado, a aparência, enquanto ideologia, e, por outro, a essência ou a verdade sobre as coisas. Como foi dito no ponto 1, a dialética não trabalha com dualismos, muito menos entre essência e aparência. Como a ideologia é concreta, material, ela não é um simples manto que cobre nossos olhos, mas uma substância que compõe a própria materialidade das coisas. Acabar com a ideologia, portanto, não é acabar com falas preconceituosas ou práticas inconvenientes, mas com o modo “como amo”, “como sirvo o café”, “como vou ao banheiro”, “como saiu na rua”, “como dou uma gargalhada”, “como converso com amigos”, etc. A ideologia constitui aquilo de mais concreto na minha realidade, sendo, inclusive, as condições de definição de tudo aquilo que vejo, toco e sinto. Uma crítica profunda da estrutura ideológica colocaria em risco não apenas discursos e práticas inconvenientes, aquelas que oprimem o meu EU, mas também colocaria em risco esse próprio “EU”, essa própria identidade, assim como todo o circuito material que o define. Em outras palavras, a crítica da ideologia é bem mais complexa e arriscada do que muitos poderiam imaginar.

 

8- Não existe nostalgia. Uma das críticas de Marx ao socialismo utópico, é sua insistência de voltar ao passado em busca de algo que foi perdido e que precisa ser recuperado. Segundo Marx, o materialismo dialético não encontra suas respostas naquilo que já passou, muito menos no futuro, mas no presente. É no fluxo material do próprio capitalismo, e na própria vivência concreta dos seus participantes, que a verdade é capaz de escorrer pelas brechas da linguagem, assim como os mecanismos de crítica ou emancipação. Marx não busca pela sabedoria de povos tradicionais, como se eles soubessem de algo que não sabemos, ou tivessem algo que nós perdemos, mas ao contrário. É na própria irracionalidade do capitalismo, e no próprio modo como tudo que é sólido se desmancha no ar, que as ferramentas críticas e de emancipação brotam no horizonte. Em outras palavras, não existe nostalgia em Marx.

 

Enfim, essas são apenas algumas falhas que encontrei em alguns espaços informais, como no Facebook ou em pequenos eventos acadêmicos, o que não inclui, claro, artigos, ensaios ou livros. Essas falhas são visíveis APENAS no instante que o cientista social entra na esfera pública e compartilha de suas próprias ideias. Como disse na introdução, precisamos ter cuidado com o que dito e feito, porque essas oito falhas não são apenas falhas, mas brechas que foram aproveitadas pela direita reacionária. Essas falhas produziram uma caricatura do pensamento de Marx, uma caricatura que despertou o ódio de milhares e milhares de pessoas no Brasil. Nós precisamos ter o mesmo cuidado, e o mesmo rigor, que temos em artigos e ensaios acadêmicos, ainda que a linguagem precise ser mais simplificada. Infelizmente, o Facebook não filtra nossas postagens, assim como não temos pares e especialistas que avaliem e julguem o conteúdo do que é postado. A postagem é de nossa inteira responsabilidade, o que pede por muito mais cuidado e consciência.

 

 

 


Créditos na imagem: Escultura de Marx em Trier / Reprodução.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago de Araujo Pinho

Thiago Pinho é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com estágio doutoral na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi pesquisador convidado na Sci-Arc (Los Angeles, EUA), em 2020. Atualmente é professor substituto da própria UFBA-IHAC e tutor na SPIRES (British Tutoring). Também escreveu dois livros sobre Teoria Social: “Descentrando a Linguagem” (Zarte, 2018) e “Sintomas” (Paco, 2019).

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