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Por que Filosofia popular brasileira?

 

Para Vladimir Safatle, pelo debate ao qual tanto esperamos

Para Noeli Ramme, in memoriam

 

Dorival Caymmi falou para Oxum

Com Silas tô em boa companhia

O Céu abraça a Terra

Deságua o rio na Bahia.

(Nação, João Bosco)

 

***

Esse texto foi escrito ao som de Clara Nunes.

***

 

A voz de Clara Nunes retumba a letra de João Bosco, que narra o segredo que Caymmi conta para Oxum. Talvez, arrependido por ter se confrontado com o orixá da beleza, ao ter tentado impedir que Marina Morena usasse um dos feitiços mais importantes que Oxum ensinara às suas filhas, o cantor lhe segreda que, assim como céu abraça a terra, o rio corre para a baía: o Rio, seja o de Janeiro ou não, que aliás era nome de outra baía, a da Guanabara, como que exorbitando, descentrando-se, margeando, dirige-se à de Todos os Santos. Um Rio, este de Janeiro, de Janeiro também por ser de São Sebastião, mártir flechado que em nossas terras simboliza inversamente a vitória sobre os índios, este Rio, que, como todo rio, é o elemento de Oxum, precisa escorrer e desaguar para as terras de muitos, ou de todos os santos, orixás, inquices e voduns.

Mas Dorival Caymmi, João Bosco e Clara Nunes dizem mais:

 

“Jêje, minha sede é dos rios / A minha cor é o arco-íris / Minha fome é tanta / Planta flor, irmã da bandeira / A minha sina é verde-amarela / Feito a bananeira / Ouro cobre o espelho esmeralda / No berço-esplêndido a floresta em calda / Manjedoura d’alma / Labarágua, sete quedas em chama / Cobra de ferro, Oxumaré / Homem e mulher na cama”.

 

Ao povo de Daomé, confessam que sua sede dos rios coincide com sua multi-coloridade, e o ouro, que cobre o verde esmeralda, neste verde e amarelo tão conhecido por nós, esconde o fio de contas de Oxumaré, orixá macho e fêmea, também dos rios, mas do arco-íris, como a cobra que, do céu, abraça a terra, enquanto os narradores nos obrigam a pensar para além da branquitude.

Essa introdução, que pode ser vista como apenas um esforço poético, já consiste em um exercício, um esforço, para empreender o que aprendi com o filósofo ao qual mais me dediquei em quase toda minha vida acadêmica: um filósofo hiper-marrano, judeu indígena, árabe desterritorializado, africano desenraizado, enfim, um produto da colonialidade. Em sua empresa contra a mitologia branca, Derrida nos obriga a enxergar os limites do ocidente e a, num mesmo gesto, olharmos para o que de singular possuímos em nossas terras. Quando batiza a metafísica ocidental como “mitologia branca”, ele quer nos chamar a atenção para o fato de que o ocidente cria seu mito, o logos, a partir da suposição de que ele não é mito e que, além disso, é superior a todos os mitos, na medida em que representaria (e não há nada de mais mítico do que isso) uma razão universal.

Apontar o mitológico por detrás da racionalidade é também lembrar-nos de sua regionalidade: trata-se de um saber que nasce em certo momento e em certo lugar do globo e, se for imposto mundialmente, tal atitude será sempre da ordem da violência e da colonização. Mas abandonar essa roupagem universalista parece insuportável ao ocidente que, como nos lembra Renato Noguera, parafraseando Appiah, tem na filosofia o ursinho de pelúcia do qual não quer de modo algum abrir mão[1]. Mas, para além desse caráter obviamente epistemicida e alérgico à alteridade que ela apresenta, a metafísica acaba, por isso mesmo, abrindo mão daquilo que tem de mais belo e potente, ao apagar sua origem fabulosa e assumir a pretensa roupagem de ciência.

A tinta branca através da qual o ocidente escreve sua filosofia reluz branquitude como transparência, como universalidade e neutralidade, portanto, como ausência de cor, apresentando vários aspectos que, como viventes do hemisfério sul, precisamos evitar: sua brancura que se pretende pureza, ainda que revestida de altivez, nada mais é que sua maior fragilidade – por ser muito sensível, evita o contato com o outro, para não se promiscuir e, perde, com isso, toda possibilidade de jogo, de novidade, de invenção; sua pretensa ausência de cor precisa denunciar toda filosofia de cor, todo saber impuro, mestiço, negro, amarelo, pardo, marrom ou vermelho; sua tinta branca, que compõe a escrita do sêmen e do sema, além de branca é viril, máscula, e pretende inseminar toda e qualquer superfície sobre a qual se ejacula, pois carrega em si, na aversão ao outro, o imperativo da conquista, da catequese, senão dos estupros e dos assassinatos coloniais.

Tendo apagado sua fabulosidade (ficando branca também, no sentido de pálida, sem graça, ressentida e invejosa das mitologias que conseguem ser coloridas e alegres), a mitologia europeia se autoproclama a destinação global, com seu monoteísmo, sua monogamia e sua monotonia. Contudo, ao chegar em nossas terras, tão coloridas já pelos habitantes originais disso que chamariam ainda Brasil, trazida pelas caravelas, também brancas e pálidas, essa mitologia continuou tentando preservar aqui sua brancura e sua pretensa pureza. Não se deixou seduzir pelas tantas cores das praias e das matas que lhe apresentavam as pessoas, pássaros, frutas, pedras e peixes que aqui habitavam; muito menos por aqueles que, de pele mais escura ainda, os mesmos navios desbravadores e heroicos sequestravam de suas terras. Em meio a uma multiplicidade única de cores, raças, etnias, culturas, imagens, sexos, gêneros, gestos, paisagens, deuses, animais e plantas, dos quais poderia retirar uma potência mito-filosófica única, ela preferiu, nas academias e nas instituições de ensino, preservar sua pretensa pureza.

E são essas cores e esses sexos e gêneros múltiplos que o deus-serpente do arco-íris do povo Jeje vem, na letra de Bosco, nos lembrar, que aqui, em terras também chamadas tupiniquins, mas sobretudo tupinambás, goitacazes e guaianases, uma outra filosofia pode ser tão mais potente quanto alegre, como sonharia Nietzsche ou invejaria Derrida, sobretudo se se debruçar sobre a cultura popular brasileira.

 

Ainda insistir em uma Filosofia Brasileira?

Posso dizer, também, que esse texto é uma tentativa de responder à provocação lançada por Gerd Bornheim há exatos 30 anos, quando, no texto intitulado “Filosofia e realidade nacional”, ele dizia o seguinte: “deveria haver, portanto, uma filosofia brasileira, provida de categorias que desvendassem aquilo que o país é, a sua verdade”, se perguntando logo em seguida: “porque um determinado país não poderia expressar através de conceitos filosóficos os seus problemas, as suas aporias, o seu modo específico de ser?”[2]. Sem querer entrar no mérito do léxico ainda tanto ontológico do professor Bornheim, podemos ver que, para ele, o que o Brasil é, sua verdade, seu modo específico de ser, seriam determinados pelos seus problemas específicos e por suas aporias – o que me interessa sobremaneira. Além disso, Gerd diz mais, ele observa que não se trata apenas de ter uma filosofia, no sentido de que existem pessoas que fazem filosofia e que nascem em nosso solo; ele diz que é preciso ser uma filosofia de fato brasileira, como se nosso país “encontrasse como que seu espelho intelectual numa bem urdida trama de categorias[3].

Desse modo, para Bornheim, a questão seria se buscamos uma filosofia adjetivamente nacional ou substantivamente nacional, o que o leva, ao longo do artigo, a defender que, se temos de procurar essa “verdade” ou esse “próprio”, devemos, a todo custo, nos afastarmos da ideia de identidade e fugirmos de qualquer espécie de nacionalismo. Já, no final do artigo, nosso professor nos aponta o começo para se pensar tal questão. Diz ele: “Toda a problemática das relações entre filosofia e realidade nacional [termo este utilizado para evitar ‘identidade’] acaba girando, necessariamente, em torno do conceito de diferença. E é apenas então que o problema pode começar a ser equacionado”[4]. E, movido por essas provocações do Gerd, gostaria de retomar uma discussão que alguns de vocês podem já conhecer, mas que penso ser importante para a recolocação de minha questão sobre filosofia brasileira.

Há cerca de três anos, a ANPOF inaugurava sua coluna e pedia a alguns professores convidados que, através de provocações, estimulassem um debate dentro de nosso campo. Dos três textos que escrevi, apenas um obteve certa repercussão: trata-se de um pequeno artigo intitulado “Filosofia brasileira – uma questão?”[5]. Nesse texto, inicio perguntando o que tornaria um filósofo um “filósofo brasileiro”, se se trata de uma questão de nacionalidade apenas ou se haveria um certo “jeito brasileiro” de se fazer filosofia. Tentando, ao mesmo tempo, fugir do nacionalismo e de qualquer pressuposto identitário, pareço não ter me feito compreender naquele momento. Talvez, pelo fato de o termo que utilizo no texto para tentar reunir esta experiência à qual tentava me referir, “assinatura”, ser de fato problemático.

Parecendo ponto pacífico falarmos, grosso modo, de “filosofia alemã”, “filosofia francesa” ou “filosofia anglo-saxã”, parece escandaloso defender uma “filosofia brasileira” sem cair na xenofobia, no ufanismo ou no delírio identitário. Contudo, o fato de em tantas outras áreas do saber termos conseguido empreender o que eu, ali, chamei de “nossa assinatura”, por exemplo, nas literaturas, no cinema, nas artes plásticas, na música e no teatro, me faz ainda hoje questionar se o que fazemos, em termos institucionais e acadêmicos, pode ser chamado de “filosofia brasileira”.

Hoje, passados três anos e tendo discutido isso com muitos colegas, creio que se, ao invés de ter utilizado o termo “filosofia com assinatura brasileira”, eu tivesse proposto pensarmos uma “filosofia com sotaques brasileiros”, no plural, minha tentativa de diálogo teria sido melhor recebida. Alguns textos que se seguiram ao meu me ajudam, hoje, a recolocar a questão. Gostaria de sublinhar os textos de Vladimir Safatle[6] (que chama atenção aos riscos do nacionalismo e denuncia o problema da filiação como o real problema de nossas instituições acadêmicas), de Júlio Cabrera[7] (que afirma que já existe uma tradição filosófica, não apenas no Brasil, mas também na América Latina), de Carla Rodrigues[8] (que nos lembra que a filosofia brasileira não é feita apenas por homens, apontando cirurgicamente o fato de todos os textos anteriores, incluindo o meu, não ter, em nenhum momento, citado uma única filósofa mulher), bem como os textos de Filipe Ceppas[9], Ronie Alexsando Teles[10], Renato Noguera[11] e Marcos Lopes[12], que, sob diferentes aspectos, corroboram a necessidade de pensar a filosofia brasileira não apenas a partir de sua matriz europeia. Esses e alguns outros textos[13] me ajudam a recolocar a questão que me persegue desde que ingresso como professor na UFRJ, há 10 anos.

A questão que recoloco surge de uma prática de sala de aula, e não teria nenhuma legitimidade se não fosse posta como uma construção coletiva, minha e de meus orientandos, de inquietações e provocações de alunos e que resumiria da seguinte maneira: a primeira inquietação vem do fato de alunos de graduação se esforçarem, assim que entram no curso de filosofia, obviamente estimulados por nós, professores, se preocuparem, antes mesmo de saber bem o uso gramatical de nossa língua, a aprenderem muito bem inglês, francês, alemão, senão grego e latim; a segunda inquietação, que caminha paralelamente a esta, surge da repetição temática, sobretudo em trabalhos de estética, no que se refere às artes e à literatura europeias: graduandos, mestrandos e doutorandos, ao se debruçarem sobre questões estéticas, referem-se constantemente a Proust, Hölderlin, Homero etc., que nos chegam por contrabando de nossos queridos autores europeus, sem que, ao menos, tenham lido ou tido um contato mais cuidadoso e carinhoso com João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Tarsila do Amaral, Patativa do Assaré e assim por diante.

Nada criminoso nisso, certamente, mas penso que, ambas as inquietações, podem ser pensadas como um sintoma de nossa academia e que isso implica diretamente o problema da dificuldade de falarmos em uma filosofia com sotaques brasileiros. Seguramente a tradição da recepção da filosofia europeia em solo brasileiro vem se aperfeiçoando de modo notável e, asseguro, hoje não temos nada a dever com relação aos grandes intérpretes e especialistas em autores de língua e cultura europeia. Excelentes teses, dissertações e artigos são produzidos com reconhecida excelência, mas, com isso, permanecemos ainda presos unicamente ao campo da exegese e não ensaiamos nenhum salto filosoficamente mais ousado.

Preocupados em sermos aceitos pelo mainstream, precisamos virar as costas para nossa língua e nossa cultura, implorando por um lugar ao sol no Olimpo filosófico, envergonhados de nossa constituição mestiça e não-ocidental. Pois sim, parece difícil aos ouvidos acadêmicos brasileiros aceitarmos o fato de, diante da Europa ou da América do Norte, não sermos considerados ocidentais. Não somos ocidentais pois não somos unicamente ocidentais, pois o ocidente é apenas um dos traços que nos constitui. Sim, o traço violento, colonizador, destruidor de outros traços e, justamente, o que nos deixa complexados como vira-latas diante de tantos pensadores puro-sangue. E é isso que transmitimos a nossos alunos, porém com a roupagem de “rigor” e “cientificidade”, como se, apenas isso, nos redimisse de nossa “origem impura”.

Diante dessas inquietações e preocupado em como nós, professores, embutimos tais complexos nos alunos, desde que ingressam na graduação, me perguntei se seria, então, apenas uma questão territorial que uniria Kant, Heidegger e Benjamin, Descartes, Rousseau e Deleuze, Hume, Bentham e Russel. Obviamente suspeitando que não, tentei pensar, para além das infinitas distâncias que os separam, em que medida, nos filósofos alemães, franceses, britânicos etc., haveria, além da questão territorial, certa relação a uma tradição, o que se reflete em uma específica relação linguístico-cultural. Mas será que isso é o suficiente para pensarmos o problema da filosofia brasileira? Pensando dessa maneira, não parece absurdo, em termos de língua e cultura, afirmar que haveria “algo de nosso” na literatura, no cinema, na música etc., contudo ainda é extremamente insuficiente para pensarmos em que medida grandes autores de nossa tradição como Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto e Farias Brito podem ser considerados “filósofos brasileiros”.

A chave para essa questão é, sem dúvida, pensá-la à sombra da colonialidade e, no caso dos departamentos de filosofia no Brasil, tentar enxergar o estrago produzido pelo processo colonial que passaram e ainda passam nossas universidades, nossas instituições, nossos projetos de pesquisa e assim por diante. Levando isso a sério, veremos que, ao longo dos séculos em que se faz filosofia em nosso país, fomos cada vez mais nos aperfeiçoando, e esse aprimoramento permite que hoje se faça uma filosofia tão competente como a que se faz em qualquer outro país dito “desenvolvido” no mundo: tanto na área da história da filosofia como da lógica e da filosofia analítica, participamos de um amplo debate internacional e podemos afirmar que, como já disse, em nada ficamos atrás deles, “os desenvolvidos” (com exceção, é claro, de condições de trabalho, financiamentos, bibliotecas etc.). Entretanto, a pergunta que ainda faço é se isso permite afirmar que fazemos uma filosofia brasileira de excelência ou que fazemos uma filosofia que ganha cada vez mais crédito sob o crivo euro-americano do que se entende por filosofia? Em outros termos: podemos dizer que, hoje, fazemos efetivamente uma filosofia brasileira ou fazemos uma excelente filosofia aos moldes europeus?

A resposta me parece óbvia, mas caberia, então, perguntar se seria necessário fazer uma outra filosofia e se, inclusive, essa “outra filosofia”, caso não possa ser concebida como “europeia”, teria ainda resguardado a ela o nome “filosofia”, que é certamente um nome europeu e que diz respeito a certa tradição do ocidente. Ou seja, em que medida o fato de estarmos cada vez mais próximos do padrão de excelência pode ainda ser considerado insuficiente para nossa experiência filosófica e, caso tentemos experimentar outras formas de se fazer filosofia, será que, com isso, não estaríamos pondo a perder todos esses séculos de esforço para nos equipararmos aos grandes comentadores e especialistas estrangeiros?

Gostaria, ainda em termos de provocação, responder a esta questão acrescentando-lhe outra: porque não há um grande nome na filosofia brasileira, como encontramos na literatura, cinema, artes plásticas etc? Certamente, não podemos negar que nomes como Tarsila do Amaral, João Cabral, Guimarães Rosa, Glauber Rocha, Lygia Clark, Egberto Gismonti, por exemplo, acabaram crivando suas marcas através de uma relação com o que precária e estrategicamente podemos chamar de “brasilidade”, sendo isto o que os tornou reconhecidos nacional e internacionalmente. E o mais belo desta nossa especificidade, chamada aqui de brasilidade, consiste simplesmente no fato de que, sendo absolutamente plurais, composta por tantos e diferentes sotaques, essa não-identidade não pode nunca se reduzir a uma unidade ou totalidade e, com isso, levar a qualquer nacionalismo. Pensar a brasilidade, nesse sentido, é ressaltar certos elementos, dependendo do sotaque daquele que se dispõe a pensar, de nossa língua e nossa cultura, colocando-os em relação com a tradição europeia, que é também e por certo a nossa. Isso porque, se pensarmos no tripé ao qual Gilberto Freire atribuía a sustentação de nossa cultura, o branco, o negro e o indígena (ou melhor, os brancos, os pretos e os vermelhos), o pensamento ocidental consiste apenas em um aspecto da nossa tradição, sendo nossa experiência muito mais ampla do que aquilo suspeita a vã e branca mitologia.

Podemos, prosseguindo a provocação, pensar o Movimento Antropofágico como uma primeira tentativa para expressar certos sotaques brasileiros, e certamente também o foram a bossa nova e o tropicalismo que, junto aos Rosas, Noel e Guimarães, Cartola, Clementina de Jesus, Clarice, e tantas outras rosas, negras e brancas, buscam, a partir de uma aprendizagem tentar fazer justiça às múltiplas vozes que sussurram ao pensamento.

Sem um olhar cuidadoso a essas experiências de pensamento, com a mesma dignidade filosófica que concedemos aos grandes pensadores europeus, nunca conseguiremos dar prosseguimento a uma necessária desconstrução da colonialidade que impera na filosofia. Enquanto não tratarmos os sistemas de pensamento iorubá, jeje, banto, por exemplo, ou os tantos acentos ameríndios que são restritos cada vez mais a pequenas porções de terras, quando não a queimadas assassinas, a todos esses e tantos mais como importantes elementos à especulação filosófica, nunca conseguiremos contribuir para que um dia possa vir a acontecer uma filosofia brasileira digna desse nome.

Mas seria “filosofia” ainda o nome desse pensamento que, como propriedade, teria apenas a confluência de distintas experiências étnicas, artísticas, culturais e religiosas? Talvez não, se o nome “filosofia” for pensado em termos apenas ocidentais. Mas, como apontou Derrida, se conseguirmos conceber tantas outras origens para a atividade do pensar, sem pensar em quem nasce primeiro ou quem é melhor do que quem, podemos facilmente aceitar que a atividade filosófica comporte uma pluralidade de perspectivas e que, talvez, seja essa uma experiência filosófica única para a qual podemos contribuir com nossas múltiplas e singulares brasilidades. Se sempre coube aos filósofos e filósofas o direito de repensar, redefinir o que seria, para elas e eles, a própria filosofia, podemos, então, lutar, ao lado de iniciativas como as de Sueli Carneiro, Renato Noguera, mas também de Davi Kopenawa, Abdias Nascimento, Nego Bispo, Ailton Krenak e Helena Teodoro, para que o nome “filosofia” não seja a marca de uma exclusão, colonialista e epistemicida, mas que, pelo contrário, este lindo nome que nos reúne aqui seja, ele mesmo, a possibilidade de pensarmos de modo mais amplo e radical a experiência de nossa cultura, de nossa sociedade e de nosso tempo.

 

Uma filosofia popular brasileira?

Portanto, sim ao nome filosofia. Trata-se de um asseguramento epistemológico e político para essas outras experiências de pensamento que merecem e precisam ter suas dignidades reconhecidas. Isso para, em um primeiro momento, pensar que o que queremos reivindicar por filosofia brasileira é certamente composto pelas filosofias ameríndias e pelas filosofias africanas e afro-diaspóricas. Mas tudo isso que venho aqui elencando, desde o início desse texto, me faz, hoje, pensar um pouco para além do termo “filosofia brasileira”.

Em primeiro lugar, se pensarmos que Nietzsche nos convoca a experimentar a reflexão filosófica como uma necessária filosofia da cultura, conquanto tenha em mente todos os problemas aos quais o termo “cultura” pode conduzir, podemos, somando às análises que apresentei, pensar que uma filosofia brasileira deveria, portanto, ser necessariamente uma filosofia da cultura brasileira. Meus devaneios me levaram, em um primeiro momento, então, a responder dessa maneira a questão dos sotaques: para termos tal filosofia justa com as alteridades que nos sussurram, em diferentes sotaques, a filosofia brasileira digna desse nome deveria, por princípio, se dedicar a ouvir o que tem a nos contar nossa cultura. Portanto, além do termo filosofia, que sei ser problemático, insisto na importância do termo cultura, para apontar um certo modo de olhar para o que está ao nosso lado, ao nosso redor, para pensar a filosofia como uma experiência com aquilo que vem ao encontro dela no mundo.

Em seguida, além de reivindicar o uso do termo “cultura”, podemos pensar seu limite, no sentido de que aquilo a que me refiro é de tal modo múltiplo que só poderia ser pensado no plural. Portanto, é certo que é de culturas que tratamos. Mas para dar um passo além, para compreender como penso hoje a tarefa dos filósofos e das filósofas, ou pelo menos que tenho como minha tarefa atual, preciso trazer mais uma das minhas inquietações que surgem de aulas e textos meus.

Trabalhando em especial uma das obras que considero fundamentais para meus propósitos, Grande sertão: veredas, especialmente tentando apresentar Riobaldo como um filósofo brasileiro, me surpreendo com a facilidade com a qual analisei a obra, que de fácil não tem nada. Algumas reflexões surgiram dessa inquietação: em primeiro lugar, a facilidade com a qual o filósofo tem de se apropriar de objetos escritos, como é fácil para ele ou ela escrever a partir de um livro; além disso, Guimarães Rosa é um erudito, versado em línguas, leitor de filosofia, o que o torna um perfeito interlocutor para a filosofia. Diante disso, penso que algumas medidas metodológicas precisam ser tomadas: a primeira delas é a necessidade de não nos atermos aos livros para experimentarmos o que seria esta cultura brasileira – músicas, imagens, lugares e pessoas também devem ser experimentados a fim de assombrarem nossa escrita; a segunda é que precisamos desenvolver uma escuta não apenas para a cultura, pois isso, de algum modo já temos, mas o real desafio é aprendermos a pensar a partir de uma experimentação da cultura popular brasileira, ou, melhor ainda, das culturas populares brasileiras.

Se Guimarães Rosa, ou Oswald de Andrade, ou Tarsila do Amaral, podem, facilmente se tornarem “objetos de reflexão”, por serem pensadores e artistas que têm acesso à língua da elite, que é a acadêmica, eles, todavia, não como “objetos”, mas como pesquisadores, têm muito a nos ensinar. Guimarães Rosa, ao se lançar no trajeto dos sertões, com seu caderninho, anotando suas experiências, ouvindo os sotaques, saboreando as comidas, sentindo os cheiros, faz dessa experiência sua motivação de escrita. E é nesse sentido que acredito, hoje, que o grande desafio ao qual a filosofia deva se dedicar é aprender a desenvolver tal escuta a partir de uma real experimentação do chamado (pela elite) de popular.

Tal empirismo radical como ensina Preciado é o que possibilita aquilo que, como provocação, como uma séria brincadeira, chamo de filosofia popular brasileira. Essa FPB, que na verdade são filosofias, que são populares e que são brasileiras, seria, ao mesmo tempo, aceitar os limites do que pode fazer o saber acadêmico, juntamente com uma tentativa de forçar esse limite para além de suas margens, tentando diminuir as barreiras que separam as universidades daqueles que não estão lá. E tais barreiras só serão enfraquecidas se, num mesmo movimento, tentarmos trazer para as universidades as vozes destes e dessas que lhe são estranhos, mas também de levar a academia para fora da universidade, como Rosa em seu enveredamento pelos sertões. A FPB, portanto, obriga a um trabalho de campo, obriga aquele ou aquela que se dedica à tarefa de pensar a cultura popular brasileira a que abandone a solidão, o silêncio e o conforto das salas, escritórios e bibliotecas, como fez Walter Benjamin, e vá às ruas, também com seu caderninho, aberto às experiências múltiplas que, somente assim, poderá vivenciar.

Não apenas Macunaíma, Abaporu, nem mesmo apenas a música de João Bosco com a qual iniciei este texto, ou Maria Bethânia, que tenho tanto citado em outros momentos. É claro que a experiência de escrever a partir da música e de obras visuais é, também, muito importante nesse nosso intuito, mas apenas como exercício de treino de olhos e ouvidos, e também, porque não, narizes, mãos e o corpos como um todo, para, com isso, podermos aprender a traduzir a experiência que nos oferece um artista de rua com o qual esbarramos em nossa ida à universidade, a sabedoria de um pensador que mora na periferia e que não tem estudo, a conversa com uma entidade em um centro de umbanda e tantas mais experiências radicais pudermos aqui elencar.

Creio que uma menção aqui ao pensamento de Gayatri Spivak é fundamental. Quando ela se pergunta se pode o subalterno falar, ela está denunciando toda a ideia de representação que esconde o elitismo e o colonialismo dos quais precisamos fugir. Pessimista quanto à possibilidade de fala (isto é, de escuta) dentro das universidades, dentro da academia, Spivak nos convida, como professora de uma renomada universidade estadunidense, mas que buscou desenvolver a escuta das mulheres indianas pobres, tentar quebrar a estrutura do “falar por” e, ao invés disso, tentar fazer com que essas vozes caladas, mas que nos sussurram, falem conosco, ou, melhor ainda, que nós falemos com elas, que nos ocupemos delas, que dediquemos nossos tempos a elas e eles e, a partir disso, como uma espécie de tradutores, sabendo que a tradução nunca será perfeita, senão ela calará justamente toda alteridade do outro, tentemos especular e elaborar conceitos a partir dessas experiências que, em nossos cadernos, anotamos quando estávamos efetivamente nas ruas.

É nesse sentido que eu preciso repetidamente observar o quão fundamental foi, e tem sido, meu encontro com Luiz Simas e Luiz Rufino, que não só me motivam a insistir na ideia de uma FPB, mas que também, e sobretudo, são companheiros nessas veredas.

 

Cantando pra subir

Vários pontos de Umbanda falam da importância do fundamento. Contudo, ainda que cantasse e ensinasse tais pontos, Dona Concheta, falecida mãe de santo do Centro de Umbanda Caboclo Pena Verde, em São Cristóvão, me disse uma vez que cada espírito que baixa em um centro traz um novo ensinamento, uma nova experiência que vem se somar ao que se sabe. Que tal fundamento, portanto, não é fixo, ele se constrói no mesmo movimento em que os espíritos vêm e vão, ritmado por atabaques e sempre cantados. Por conseguinte, não pretendo de modo algum propor a criação de bases sólidas para um movimento, erguer uma bandeira ou fixar axiomas. Os ensinamentos de Derrida e de Mãe Concheta me servem de diretriz na medida em que mostram a constante necessidade de abertura e de escuta para todo e qualquer outro que nos chegue. Além disso, como a gira sempre já começou, o que aqui trago não representa nenhuma novidade, apenas uma tentativa de me incluir em algo que já vejo se delineando há certo tempo.

Quando entram em cena grandes pensadores do candomblé como Professor Agenor, Mãe Beata de Iemanjá, Mãe Stella de Oxossi, Omindarewá, os quilombismos de Abdias Nascimento e Nego Bispo, o pretuguês de Conceição Evaristo, filósofos e filósofas ameríndias como Kopenawa, Krenak, Sandra Benites Guarani e Tonkyre, filósofas pretas como Sueli Carneiro, bell hooks e Grada Kilomba, o terreno já está posto e cabe a nós, como fazem tão bem Muniz Sodré, Luiz Antônio Simas, Luiz Rufino, Marcelo Moraes e Uã Nascimento, saber escutar o chamado e entrarmos na gira.

 

 

 


NOTAS

[1] A fala de Noguera é uma irônica paráfrase de Kwame Appiah. Enquanto Appiah diz: “a ‘Filosofia’ é o rótulo de maior status no humanismo ocidental. Pretender-se com direito à Filosofia é reivindicar o que há de mais importante, mais difícil e mais fundamental na tradição do ocidente” (APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura, pg. 131), Noguera, seriamente, brinca (porque sabe brincar): “Um filósofo ganense diz que a filosofia é o suprassumo da cultura ocidental. Eu diria que a filosofia é o bichinho de pelúcia do Ocidente. O Ocidente adora brincar, mas não gosta de dividir o brinquedo.” (https://biblioo.cartacapital.com.br/renato-noguera-professor-e-pensador/).

[2] Bornheim, Gerd. “Filosofia e realidade nacional”, in: O idiota e o espírito objetivo. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1998, p. 163.

[3] Idem., p. 164. Grifo meu.

[4] Idem., p. 181.

[5] Rafael Haddock-Lobo. “Filosofia brasileira – uma questão?” (05/10/2016), disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/848-filosofia-brasileira-uma-questao

[6] Vladimir Pinheiro Safatle. “Seria necessário algo como uma ‘filosofia brasileira’?” (19/10/2016), disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/921-seria-necessario-algo-como-uma-filosofia-brasileira

[7] Julio Cabrera. “Filosofar desde Brasil: além de uma mera questão ‘nacional’ (acerca de um texto de Haddock-Lobo e uma réplica de Vladimir Safatle), (20/12/2016). Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/1032-filosofar-desde-brasil-alem-de-uma-mera-questao-nacional-acerca-de-um-texto-de-haddock-lobo-e-uma-replica-de-vladimir-safatle

[8] Carla Rodrigues. “A filosofia (brasileira) não é feita só por homens” (22/12/2016). Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/1033-a-filosofia-brasileira-nao-e-feita-so-por-homens

[9] Filipe Ceppas. “Por uma disciplina para estudar o pensamento ameríndio nos cursos de filosofia” (06/02/2017). Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/1071-por-uma-disciplina-para-estudar-o-pensamento-amerindio-nos-cursos-de-filosofia

[10] Ronie Alexsandro Teles da Silveira. “O Debate sobre Filosofia Brasileira” (09/02/2017). Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/1083-o-debate-sobre-filosofia-brasileira

[11] Renato Noguera. “Filosofando com sotaques africanos e indígenas” (20/02/2017). Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/1089-filosofando-com-sotaques-africanos-e-indigenas

[12] Marcos Carvalho Lopes. “O Brasil e a filosofia africana” (21/02/2017). Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/1090-o-brasil-e-a-filosofia-africana

[13] J. Crisóstomo de Souza. “Safatle, o nacional impopular e o nosso desejo de fazer filosofia” (01/02/2017) Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/1067-safatle-o-nacional-impopular-e-nosso-desejo-de-fazer-filosofia; Susana de Castro e Carla Rodrigues. “As mulheres ou os ‘silêncios’ da história da filosofia” (07/03/2017). Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/1099-as-mulheres-ou-os-silencios-da-historia-da-filosofia; Ivan Domingues. “Filosofia no Brasil – Ensaios Metafilosóficos” (02/09/2017). Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/1272-filosofia-no-brasil-ensaios-metafilosoficos; Henry Martin Burnett Junior. “10 (Anti-) Teses sobre a filosofia brasileira” (05/04/2018). Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/1565-10-anti-teses-sobre-a-filosofia-brasileira; e Murilo Seabra, Laura Tolton. “O servilismo tem que morrer: resposta a Vladimir Safatle” (Revista Ideação, N. 36, Julho/Dezembro 2017). Disponível em: http://periodicos.uefs.br/index.php/revistaideacao/article/view/3156/2821.

 

 

 


Créditos na imagem: Contracapa do álbum Nação, Clara Nunes, 1982.

 

 

 

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